Adeus à linguagem
Adeus à linguagem – despedida e boas vindas
“Na Suiça romanda [francesa], onde eu moro no cantão de Vaud, ‘adeus’ também quer dizer ‘olá’.[...] Quando digo Adeus à linguagem, quero dizer adeus à minha maneira de falar.”
Nesse breve trecho de uma entrevista de 44 minutos concedida em março de 2014, Jean-Luc Godard esclarece a ambivalência do título Adeus à linguagem que pretende ser, ao mesmo tempo, uma despedida e uma saudação
“Na Suiça romanda [francesa], onde eu moro no cantão de Vaud, ‘adeus’ também quer dizer ‘olá’. […] Quando digo , quero dizer adeus à minha maneira de falar.”
Nesse breve trecho de uma entrevista de 44 minutos concedida em março de 2014, Jean-Luc Godard esclarece a ambivalência do título que pretende ser, ao mesmo tempo, uma despedida e uma saudação (gravação integral da entrevista disponível aqui)
Godard é sempre paradoxal. Ele afirma e contradiz a mesma coisa. Tudo é algo e seu contrário, simultaneamente. No mesmo fôlego, ele se despede do seu uso da linguagem do cinema e lhe dá boas vindas.
“Quem não tem imaginação se refugia na realidade” é uma das primeiras legendas superpostas à imagem em . Será uma citação? Não há como saber ao certo. Como em toda a obra de Godard, nesse filme há um amálgama de múltiplas referências sem qualquer preocupação em informar fontes, nem conferir se estão corretas. Há apenas uma série de nomes de autores nos créditos finais.
Nessa legenda inicial, a imaginação é valorizada em detrimento da realidade. Realidade entendida como o factual, o que pode ser observado “de olhos abertos”, diz Godard na entrevista citada, enquanto para imaginar, ele observa, os olhos podem estar fechados.
Em outro momento de , Godard atribui a Claude Monet a intenção de pintar o que não via. E volta ao assunto de maneira mais detalhada na entrevista. Segundo Godard, Monet teria dito a si mesmo que não via nada ao entrever os pântanos floridos na luz da manhã. Como poderia pintar, então, se só pintasse o que via, Godard pergunta.
“Posso pintar…”. Godard hesita antes de completar: “há ainda outra frase”. Sua memória falha e ele pergunta a alguém fora de quadro: “Como é a frase?” Uma voz em off responde: “É preciso pintar o que não se pode ver”. E Godard completa: “Não se deve pintar o que se vê, pois não vemos nada. Só resta a possibilidade de pintar o que não se vê.”
Mas Monet teria mesmo dito que pretendia pintar o que não via? Ou a atribuição feita por Godard é apócrifa? Só um especialista em Monet poderia esclarecer. Parece mais provável, porém, que Monet nunca tenha dito exatamente isso, o que, para Godard, não faz a menor diferença.
Em ao menos um livro sobre Monet é mencionado um suposto diálogo dele com o barítono e colecionador Jean-Baptiste Faure, a quem procurava para vender seus quadros. Diante de Le lever du soleil à Vétheuil, Faure teria dito a Monet que apenas a tela não era suficiente, faltava a pintura que ele naturalmente esquecera de fazer. E Monet teria respondido: “Não creio. Sei que isso representa o nascer do sol através da neblina de Vétheuil, sobre o Sena. Eu estava desde cedo no meu pequeno barco a remo, esperando o efeito de luz. O sol apareceu, e eu, correndo o risco de não lhe agradar, pintei o que eu via.”
Onde há algo mais próximo ao que Godard atribui a Monet é em Proust, a propósito dos Monet do Marquês de Réveillon: “Quando, o sol já penetrante, o rio ainda dorme nos sonhos da névoa, nós não o vemos mais do que ele se vê a si mesmo. Aqui já é o rio, mas lá a vista não alcança, não vemos nada além do vazio, uma neblina nos impede de ver mais longe. Nesse lugar da tela, nem pintar o que vemos por que não vemos mais nada, nem o que não vemos pois só devemos pintar o que vemos. Mas pintar o que não vemos, que a falha do olho que não pode vagar pela neblina seja imposta na tela como sobre o rio, é bem bonito.” (Jean Santeuil, em tradução pela qual peço a indulgência do leitor).
No livro inacabado, Proust considera a possibilidade de pintar o que o olhar não alcança. Em Godard, essa é uma ideia antiga. Foi baseado nela que há vinte anos ele fez o elogio de Norman McLaren (1914-1987), o documentarista canadense nascido na Escócia, autor de filmes abstratos e de animação. McLaren teria sido, segundo Godard, o único cineasta que ficou cego olhando um negativo muito de perto. Materializava o diretor que procurava o outro lado do visível, o que estava além do celulóide. “McLaren filmava o invisível”, disse Godard.
Outra legenda, também no início , faz uma conjectura: “resta saber até que ponto o não pensamento contamina o pensamento” (citado de memória). Sempre na mesma entrevista, Godard diz o que lhe serviu de inspiração para fazer o filme: “Foi escapar da ideia, se possível. Fazer sem ideias demais ou sem ideias preconcebidas. […] As ideias vêm pouco a pouco. Não há roteiro. Há 70 anos eu achava que era preciso ter um roteiro. Depois percebi que o roteiro vem não só depois da filmagem, mas depois da montagem.”
Adeus à linguagem teria uma mensagem, pergunta a entrevistadora. “Tem a mensagem da ausência de mensagem”, responde Godard. E completa: “Não, não há nenhuma ideia servindo de mensagem.”
O que atraiu Godard a filmar em 3D foi, segundo ele, não haver regras. “É uma área na qual não há regras. Enquanto a técnica está no início, como a criança, ela não tem regras. Com 3D, eu me disse: ‘Ei, não há regras.’ O que me interessa é que o 3D não tem nenhum interesse. Quando vemos a imagem na tela, é uma loucura que nos quer fazer crer que não é plana. O que me interessa é seguir pela margem. Estamos em 3D e não podemos ver nada além do que já podíamos ver. Com 3D, tudo que ele faz é isso [estica o braço] e nos faz crer que há um metro entre nós. Disso nós já sabíamos.”
Entre as inúmeras citações feitas ao longo de Adeus à linguagem há a referência à pergunta que teria sido feita a Mao Tsé-Tung. Ao ser perguntado o que pensava da Revolução Francesa, ele teria respondido que era cedo para dizer. Nesse caso, Godard adota a versão que foi chamada de “deliciosa demais para ser corrigida”. É difícil acreditar, porém, que ele não saiba que a pergunta, na verdade, foi feita, no início da década de 1970, ao primeiro-ministro Chu En-Lai, e não a Mao Tsé-Tung. E que por erro da tradução ou por má compreensão, Chu pensou que se referisse ao Maio de 1968 francês. Daí a resposta de que era cedo para dizer. A confusão foi amplamente esclarecida em um artigo publicado no Financial Times, em 2011, reproduzido por Giba Assis Brasil em seu blog, dois anos depois. Godard, porém, parece ter preferido a versão ao fato.
, além da virtude de durar apenas 70’, é feito de belas imagens e sons, combina fragmentos, faz múltiplas citações, sem maiores propósitos narrativos. Godard é um bricoleur nesse filme depurado com o qual continua a demonstrar o propósito de reinventar seu cinema. Em um futuro próximo, ninguém poderá responder que é cedo para dizer o que pensa de Jean-Luc Godard.
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