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    Arábia conta a história de Cristiano, jovem operário em uma fábrica de alumínio que encontra o diário de um trabalhador acidentado

questões cinematográficas

Arábia – quando o excesso de elogios pode ser contraproducente

Recebido como um dos filmes do ano, longa não repercute junto ao público, um paradoxo do cinema brasileiro

Eduardo Escorel | 26 abr 2018_16h32
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*Atualizado em 30 de abril de 2018, às 14:28

Escolhido como melhor filme do 50º Festival de Brasília, realizado em setembro do ano passado, Arábia chegou a ser considerado, na época, uma “pequena joia”. Quase sete meses depois, ao estrear há três semanas, foi recebido com aplausos de oito dos onze críticos do Globo (dois não opinaram e um terceiro apenas se manteve atento).

Para Luiz Carlos Merten, “é o maior filme do ano – temerário, afirmar-se isso em abril, quando ainda restam oito meses pela frente –, o maior filme brasileiro em muitos anos. Uma obra de prosódia mineira, uma investigação sobre o universo dos trabalhadores”. (O Estado de S. Paulo, Caderno 2, 5 de abril de 2018.)

André Miranda, embora mais contido, não poupa elogios: “O texto dito pelo personagem [o operário Cristiano (interpretado por Aristides de Sousa, premiado também, no Festival de Brasília, como melhor ator)] é de uma beleza ímpar, terno e bruto. E cheio de entrelinhas. A cada vírgula, há uma palavra que mostra a tragédia da desigualdade brasileira. A cada respiração, ouve-se a angústia que sujeitos humildes como Cristiano passam no Brasil.” (O Globo, Segundo Caderno, 5 de abril de 2018.)

“As palavras me consomem”, disse certa vez Chico Antônio, o cantador de coco do Rio Grande do Norte, celebrado por Mário de Andrade. É essa minha impressão ao ler esses trechos das críticas de Merten e Miranda – ambos parecem consumidos por suas próprias palavras.

Só assisti a Arábia há oito dias, no Rio, onde o filme dirigido por Affonso Uchoa e João Dumans, ao iniciar sua terceira semana em exibição, estava sendo projetado uma vez por dia em apenas uma pequena sala de 33 lugares, um para cadeirante, além de uma vez por semana em outra sala (sem contar o Cine Arte UFF, em Niterói, com três sessões ao todo na semana, uma por dia).

Arábia estreou em 5 de abril, em várias cidades do país e dezessete cinemas. No Rio, foi lançado em três salas com o total de cinco sessões por dia. Mas em pouco tempo, em âmbito nacional, só estava sendo exibido em seis cinemas, foi reduzido à semiclandestinidade habitual da maioria dos filmes brasileiros. O resultado de bilheteria indica a razão – 5 200 espectadores assistiram a Arábia de 5 a 22 de abril. A média por cinema é baixa, em especial se for levada em conta a expectativa criada a partir dos prêmios recebidos, da profusão de elogios da crítica e do número de telas ocupadas no lançamento.

Chama atenção, em primeiro lugar, a desconexão entre as hipérboles críticas e o modesto resultado comercial, um dos paradoxos agudos do cinema brasileiro – sucesso de estima por um lado e, de outro, demanda restrita por parte do público.

Digo isso por experiência própria – Imagens do Estado Novo 1937-45, documentário que dirigi e que foi lançado recentemente, apesar de ter sido, de modo geral, bem recebido pela crítica, ainda que de maneira nem de longe comparável à acolhida dada a Arábia, foi visto por poucos espectadores – 2 300 pagantes até agora, além do público das sessões gratuitas do festival É Tudo Verdade, em 2016, e as do Instituto Moreira Salles, nas quais houve debates, este ano.

Essa dicotomia, que é frequente, indica uma inadequação dos filmes ao mercado. Responsabilizar o público por esse desajuste, como se faz com frequência, não passa de uma forma de negar evidências que põem em questão a própria subsistência de grande parte do cinema produzido no Brasil.

Arábia é um caso extremo dessa crise profunda e persistente. Os encômios que o filme recebeu, sem terem repercutido junto aos frequentadores de cinema e beneficiado o resultado comercial, caíram no vazio.

“Pequena pérola”, “o maior filme brasileiro em muitos anos”, “O texto […] é de uma beleza ímpar, terno e bruto” são expressões que talvez só façam sentido para a própria crítica, os realizadores do filme, seus familiares e amigos – trata-se de um diálogo em circuito fechado.

Por motivos difíceis de explicar, há filmes em torno dos quais se forma uma onda de consagração que a própria imprensa galvaniza. Arábia parece ser um bom exemplo disso. As entrevistas dos diretores, Uchoa e Dumans, parecem ter induzido reações favoráveis ao insistirem em se filiar a uma tradição literária ilustre, apesar de ser muito tênue a relação do filme com essa origem proclamada. Nesse sentido, a própria apropriação do título do conto de James Joyce – “Araby” – resulta arbitrária. Essa e outras fontes de inspiração mencionadas – como As Mil e Uma Noites – não careciam ser alardeadas e acatadas como instâncias de legitimação.

Não se trata de desconsiderar as qualidades que Arábia, sem dúvida, tem. Os diálogos de algumas sequências são mesmo memoráveis, como a sempre citada conversa sobre sacos bons e ruins de carregar. E, no todo, o filme é bem ambientado e fotografado, com alguns planos de grande beleza plástica. Menos convincentes, porém, são a encenação desdramatizada e fragmentária, além do relato das memórias de Cristiano, um operário metalúrgico só encontrável mesmo na fantasia de Uchoa e Dumans.

*

Com perspectiva diversa deste post, recebi de Lu Bustamante, doutoranda no Departamento de Comunicação da PUC-RJ, e minha ex-aluna no curso de Cinema Documentário da Fundação Getulio Vargas, o e-mail transcrito abaixo. Sugeri a ela que o publicássemos, pois, além do suave, mas merecido  puxão de orelha que me dá, traz uma perspectiva para mim inesperada e interessante sobre o filme de Affonso Uchoa e João Dumans. Segue:

Arábia – outra perspectiva

Atualmente só consigo ver filmes em duas situações: 1º. Quando eles já estão disponíveis para ver em casa; 2º. Porque as aulas da PUC exigem.

Foi assim com A Vizinhança do Tigre (2014), de Affonso Uchoa – que vi há três semanas – e também com Arábia, já que os diretores iriam à universidade para uma conversa com os alunos.

Não li nenhuma das críticas que você cita no texto da piauí, não costumo ler críticas. Mas li o que você escreveu e tendo a concordar. Também acho que os elogios são exagerados – não acho o filme essa “joia” toda.

Discordo por outro lado porque gostei bastante do filme e você me parece não ter gostado – estou muito orgulhosa da minha total independência.

Mas sabe, eu gostei mais do que o filme causou nos alunos, do que pelas suas qualidades cinematográficas.

Explico melhor. Desde que comecei o estágio de docência na graduação em Comunicação, com a profª Andrea França, há mais ou menos um ano (como parte do curso de Doutorado), tenho sentido um esvaziamento gradativo no entusiasmo desses alunos muito jovens, que deveriam estar cheios de sonhos e expectativas.

E não é para menos, estamos mesmo vivendo numa época de caos e descrença na qual, em meio a tantas urgências, fazer cinema parece perder completamente o sentido. Eles se sentem absolutamente inseguros e paralisados, sem poder algum para mudar a situação atual e mesmo o futuro, que lhes pertence por direito. O cinema nesse contexto parece não encontrar seu lugar.

E não deveria ser assim. Posso apostar que um dia você também foi um jovem cineasta, que pensava poder mudar as coisas com a sua arte.

E então eles assistiram ao A Vizinhança do Tigre, em sala de aula, e acharam diferente e interessante. Filme feito no Brasil, por gente jovem (como eles) e sem “grana” (como eles), que os surpreendeu e aturdiu. Mais do que isso: “falou com eles”.

Isso os levou ao Arábia, que num momento pós-assassinato da Marielle Franco e pós-prisão do Lula, os deixou animados, extasiados, com vontade de continuar filmando, montando e… mudando o mundo.

Então, ponto para os dois jovens cineastas de Minas que conseguem fazer os cariocas, cansados de uma violência e um desgoverno que só aumentam, conectar-se com um sotaque diferente.

E isso inclui os alunos dos coletivos negros, LGBTs, budistas, iogues, cabelos azuis e cor-de-rosa, crossdressers, intelectuais que amam o Chris Marker e alternativos que adoram Jia Zhangke.

E inclui também os que fazem cinema, mas gostam mesmo é de literatura.

Então, a menos que nós dois assumíssemos aquela postura antiga que diz que “os jovens não têm gosto, não sabem o que querem e são alienados crônicos” – jamais pensaríamos assim –, vamos ter que concordar que, para além dos elogios exagerados e certamente “contraproducentes” como você mesmo disse, existe algo importante ali…

Luciane Moreira Bustamante

 

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