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    Carlos Arthur Nuzman, ex-presidente do COB: falta transparência sobre como entidades esportivas gastam patrocínio público FOTO: LUCAS FIGUEIREDO_FOLHAPRESS

questões esportivas

Fraude olímpica

Empresas estatais repassaram ao menos 611 milhões de reais ao Comitê Olímpico Brasileiro e a confederações. Os órgãos de controle não têm ideia de como esse dinheiro foi gasto

Rafael Moro Martins | 24 nov 2017_21h27
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O ministro do Esporte, Leonardo Picciani – que, assim como o pai, o presidente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, Jorge Picciani, é filiado ao PMDB –, tinha um compromisso importante agendado para o último dia 14 de novembro, uma terça-feira. Ele assinaria um termo de ajustamento de conduta com o Comitê Olímpico Brasileiro, o COB. O documento aponta uma série de exigências a que a entidade, até há pouco tempo presidida por Carlos Arthur Nuzman, terá de se submeter para não ficar sem dinheiro público. Hoje, o COB embolsa 1,7% da arrecadação das loterias federais – estimados 210 milhões de reais em 2017 – e distribui o dinheiro entre as confederações de esportes olímpicos. Outro 1% dessa receita cabe ao Comitê Paralímpico Brasileiro, conhecido no meio pela sigla CPB.

Mas foi justamente em 14 de novembro que um desdobramento do braço carioca da operação Lava Jato prendeu Felipe Picciani, irmão do ministro, e levou o patriarca do clã, Jorge, a depor forçosamente. O compromisso, claro, foi cancelado. O ministro alegou precisar “dar suporte à família”, segundo sua assessoria. A agenda dele, suspensa, só voltou a aparecer no site do Ministério uma semana depois. O acordo, por fim, foi assinado em 24 de novembro, com dez dias de atraso.

A assinatura do TAC, a bem da verdade, é apenas um dos passos necessários para dar transparência a como se gasta o dinheiro público que jorra para COB, CPB e confederações de esportes olímpicos brasileiros. Via Lei de Acesso à Informação, a piauí obteve as relações de patrocínios feitos desde 2008 pelas maiores empresas estatais brasileiras (elas podem ser vistas aqui). Dos cofres de Caixa Econômica Federal, Correios, BNDES, Eletrobras, Petrobras e Petrobras Distribuidora saíram mais de 611 milhões de reais (em valores não corrigidos) em patrocínios para um rol de treze confederações, algumas delas com notórias suspeitas de irregularidades – Desportos Aquáticos (suspeita de desvios de, pelo menos, 40 milhões de reais), Basquete (inadimplência, mesmo tendo recebido recursos para pagar dívidas) e Ciclismo (suspeita de direcionamento de licitação), por exemplo.

O dinheiro entregue às confederações chega a um quarto de tudo o que Correios e BNDES aplicaram em patrocínios no período em todas as áreas, não somente no esporte – em alguns anos, chegaram a 70% do total, no caso da estatal que foi o estopim do mensalão. Analisadas ano a ano, as planilhas revelam que, quase sempre, os patrocínios a entidades esportivas são os mais dispendiosos do exercício.

 

Em comum entre as entidades do esporte que receberam os 611 milhões de patrocínio desde 2008 estão os indícios de mau uso do dinheiro público. A Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos, por exemplo, reapareceu no noticiário na manhã de 6 de abril, quando a Polícia Federal prendeu, no Rio de Janeiro, Coaracy Nunes, então com 78 anos, quase 30 deles à frente da CBDA. Ele é suspeito de desviar pelo menos 40 milhões de reais da entidade. A operação Águas Claras, que levou Nunes e outros dirigentes ao presídio de Bangu 8, imputou ao cartola a suspeita de crimes como licitações fraudulentas, superfaturamento de passagens aéreas e hospedagem e desvio de premiações devidas a atletas.

A confederação é uma velha conhecida do TCU – é uma das treze entidades que tiveram vasculhadas as verbas recebidas via lei Agnelo/Piva (que destina a entidades do tipo o dinheiro das loterias) em 2016. No documento que relatou os achados de outra varredura na CBDA, realizada um ano antes, auditores do Tribunal anotaram que “os apontamentos aqui tratados corroboram investigações da Polícia Federal e ações de improbidade já instauradas pelo Ministério Público Federal amplamente divulgadas pela imprensa, no sentido da existência de fraudes nas contratações realizadas por algumas confederações. Exemplo disso é a Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos, cuja decisão pautou-se na autuação de processo específico para apurar suspeitas de direcionamento e montagem de licitações na entidade”.

“A princípio, avaliamos 13 entidades, mas, como percebemos um modus operandi muito parecido entre elas, nada indica que o quadro nas demais seja diferente”, disse-me Ismar Cruz, secretário de Controle Externo da Educação, da Cultura e do Desporto do Tribunal de Contas da União. Ele se refere a outras 47 instituições olímpicas que estão na mira do TCU – aí incluídos os comitês olímpico e paralímpico, e a Confederação Brasileira de Clubes (esses três últimos estão entre as treze verificadas). “Chamou a atenção a frequência de irregularidades graves, como os frequentes indícios de licitações fraudadas.”

O TCU também fez uma varredura, nos sites de 47 entidades, para averiguar a publicidade de itens exigidos por lei como balanços, editais, estatutos, planos estratégicos e relações de receitas e despesas. Nenhuma cumpre a legislação integralmente.

Entre as descobertas que levantaram suspeitas no Tribunal estão o uso de uma conta única para gerir o dinheiro recebido de diferentes fontes de recursos – “um mecanismo de burla ao que prescreve a legislação de convênios”, nas palavras dos auditores –, a compra de passagens aéreas internacionais em classe executiva e indícios de licitações fraudadas ou dirigidas. Passaram pela peneira mais de 337 milhões de reais, o equivalente a apenas 16% do dinheiro público que COB e CPB receberam, via Agnelo/Piva, entre 2013 e 2015.

Mesmo com as suspeitas de fraudes, o patrocínio à CBDA não deixou de chegar. A entidade recebe recursos há tempos pelos Correios – entre 2008 e 2017, a estatal repassou mais de 98 milhões de reais à confederação, em valores não corrigidos, segundo os dados que a piauí recebeu. Questionada, a entidade afirmou que, ao tomar conhecimento dos motivos da prisão de Coaracy Nunes, foi “imediatamente instaurado processo administrativo com vistas a uma possível rescisão do contrato”. Depois de uma campanha dos atletas da confederação sobre os efeitos de romper o contrato, porém, a entidade reconsiderou a possibilidade. “Os atletas deixaram claro que a rescisão do contrato traria prejuízos irreparáveis às modalidades patrocinadas. Os impactados não seriam os ex-dirigentes presos, mas os atletas. Após ajustes para apresentação de plano de aprimoramento da governança e de controles, ficou definida a manutenção do contrato.”

Em fins de junho, Nunes e os demais cartolas foram soltos graças a um habeas corpus concedido pela Justiça, mas permanecem afastados do comando da entidade. Em 2017 e 18, a CBDA deverá receber mais de 11 milhões dos Correios.

 

Algumas entidades chegaram a ter o patrocínio suspenso após denúncias de fraudes mesmo depois de anos embolsando verbas públicas. Em fevereiro passado, uma reportagem do portal Globo Esporte afirmava que, “afundada em dívidas de cerca de 17 milhões de reais e suspensa desde novembro pela Federação Internacional de Basquete, a CBB agoniza”. Comandada desde 2009 por Carlos Nunes, a entidade estava, àquela altura, em frangalhos: funcionários tinham salários atrasados e faltava dinheiro até para manter o site no ar. Nem a máquina de café funcionava mais.

É uma situação espantosa, a se considerar que a CBB recebeu da Eletrobras, segundo as planilhas, mais de 52 milhões de reais de 2009 a 2013 – em valores da época. O patrocínio foi suspenso, porém, quando a estatal foi informada que a confederação vinha fazendo mal uso do dinheiro que recebia. “Foi apurado débito em face da CBB sem que houvesse pagamento da dívida pela entidade, a qual manteve-se inadimplente”, disse-me a assessoria da estatal. A Eletrobras foi à Justiça contra a confederação – “ingressou com ação de cobrança de débito apurado no último contrato. O processo encontra-se concluso ao juiz, pendente de sentença”, relatou a assessoria.

Para Ismar Cruz, do TCU, o próprio modelo dos contratos de patrocínios – que cobram, em troca do dinheiro, a exposição da imagem de quem o concede – facilita ocorrências como essas. “Não é preciso que o patrocinado revele o que fez com os recursos do patrocínio. O que se busca, aqui, é retorno de imagem, exposição na mídia”, explicou-me. Perguntei a um técnico do Tribunal, que acompanhou algumas das auditorias realizadas em confederações, se as entidades aparentam ter estrutura administrativa compatível com o volume de dinheiro que movimentam. “Não”, respondeu-me, categórico.

 

Suspeitas claras de direcionamento em processos licitatórios tampouco são suficientes para suspender alguns patrocínios. No caso da Confederação Brasileira de Ciclismo, por exemplo, em uma tomada de contas realizada em 2016, o TCU encontrou uma licitação em que “os nomes das duas empresas convidadas já estavam escritos nas minutas de contrato previamente elaboradas aos respectivos editais. (…) O valor contratado era exatamente o publicado no edital, sendo que as duas outras empresas convidadas, nos dois convites analisados, foram pró-forma”.

“Constatou-se que mais de 3 milhões de reais por ano, que deveriam ser aplicados no estímulo da formação de novos atletas da modalidade ciclismo, estão sendo aplicados em despesas voltadas à manutenção da entidade ou que servem aos dirigentes da CBCiclismo”, lê-se noutro trecho do documento. Questionada, a entidade respondeu que “já encaminhou todas as justificativas e documentos comprobatórios da regularidade das contratações e prestações de contas, sendo que o processo continua em tramitação [no TCU]”.

Trata-se, aí, de um processo relativo a dinheiro recebido via lei Agnelo/Piva. Mas a Caixa entregou 22 milhões de reais à entidade sob suspeita, em patrocínio direto, entre 2013 e 2016 – e entregaria ainda mais 2,5 milhões este ano, mas recuou. Foi uma decisão tomada, segundo a assessoria do banco, para “revisar a estratégia de marketing esportivo para este ano”. Questionado sobre os detalhes da decisão, o banco foi lacônico: “Não comentaremos”, encerrou a assessoria.

 

Em 17 de agosto passado, uma postagem no site da Confederação Brasileira de Canoagem, a CBCa, relatava que a entidade recebera um certificado de qualidade em prestação de contas do Ministério do Esporte. Anos antes, o TCU também lhe fizera elogios, pela forma como realizou algumas compras de equipamentos no exterior.

Mas a CBCa tem problemas: teve bloqueados pela Justiça 503 mil reais de um convênio firmado com o governo federal, em 2011, decorrentes de penhoras de dívidas tributárias de bingos com que a empresa teve ligação – a legislação que tratava do tema obrigava os donos de casas de jogos a se unirem a alguma entidade esportiva para poderem funcionar.

“Esse dinheiro não poderia ser retido. A AGU [Advocacia-Geral da União] está nos ajudando a tentar liberá-lo”, disse-me o presidente da CBCa, João Tomasini Schwertner, um gaúcho de 58 anos, calvo e de carregado sotaque sulista, que fundou a entidade em 1988 e desde então a preside – o que faz dele o mais longevo cartola brasileiro. Tomasini recebeu-me no início de novembro na sede da entidade, no sexto andar do edifício localizado numa rua estreita do Centro de Curitiba.

As querelas herdadas dos tempos dos bingos levaram Tomasini a fundar, em 2010, outra entidade, a Academia Brasileira de Canoagem, a ABraCan. O estatuto da nova organização – presidida por um ex-secretário dele – deixa claro a que ela veio: para “trabalhar em parceria com a Confederação Brasileira de Canoagem no desenvolvimento do esporte, inclusive com possibilidades de troca de incentivos”. Foi à ABraCan que o BNDES entregou, via Lei de Incentivo ao Esporte, mais de 39 milhões de reais entre 2012 e 2016 – ano em que, aparentemente com as pendências em ordem, a CBCa pôde receber 18,7 milhões de reais do banco.

“Foi uma maneira de a modalidade não morrer por um problema que não era nosso, era dos bingos”, justificou-se Tomasini. “A CBCa, como 90% do esporte brasileiro, vive de patrocínios de estatais, da Lei de Incentivo e da lei Agnelo/Piva. O patrocínio privado não representa nada em nossa receita”, atalhou. “Em algumas, 100% da receita é dinheiro público”, lembrou Ismar Cruz, do TCU. “E é pouco transparente o que cada confederação recebe de cada fonte de recurso público. É preciso botar tudo isso a público, na internet, mostrar o que resultou de cada fonte de recurso.”

O balanço de 2016 da CBCa, até há pouco tempo, era uma página de jornal escaneada, dificilmente legível, e sem as notas explicativas do que é cada um dos itens listados. Questionei Tomasini a respeito: “é só verificar porque não foi colocado, não tem nenhuma determinação de fazer diferente”, respondeu-me, pedindo a um assessor que providenciasse a mudança do balanço. Ele de fato foi atualizado – para uma versão mais legível do mesmo balanço incompleto de dias atrás.

 

Num documento de 755 páginas publicado em 31 de julho passado, o Ministério da Transparência, Fiscalização e Controladoria-Geral da União, novo nome da antiga CGU, recomenda que as contas de vários setores do Ministério do Esporte sejam consideradas “regulares com ressalvas”.

“Mesmo após mais de uma década de criação da Lei de Incentivo ao Esporte, o Ministério do Esporte ainda tem uma estrutura de controle interno deficiente para tratar das renúncias tributárias no âmbito dessa lei”, justifica-se a CGU no documento. A Lei de Incentivo ao Esporte, urdida nos mesmos moldes da Rouanet – que permite que pessoas físicas e empresas, inclusive estatais, troquem pagamento de imposto por financiamento de projetos –, é outra importante fonte de dinheiro para as confederações.

“Na Lei de Incentivo ao Esporte, os critérios para o uso do dinheiro são muito mais frouxos. Não se exige, por exemplo, que se façam licitações, mas tão somente a comprovação de que os preços contratados estão de acordo com os praticados no mercado”, disse-me Ismar Cruz. “Já patrocínios são uma caixa-preta. A confederação não tem nenhuma obrigação de gastar o dinheiro que recebe numa determinada finalidade.”

No caso da Lei de Incentivo, cabe ao Ministério do Esporte fiscalizar a execução e a prestação de contas dos projetos. “Mas eles têm problemas na análise dessas prestações. Não dão conta. E continuam repassando o dinheiro”, contou-me Eliane Viegas Mota, diretora-substituta de Auditoria de Políticas Sociais da CGU, falando por telefone a partir de Brasília. Em 2016, por exemplo, a pasta analisou 55 prestações de contas de projetos da Lei de Incentivo, que somam 57 milhões de reais, mas não teve fôlego para dar conta de outras 224, que tratam de 183 milhões de reais em projetos, segundo o TCU. “A verdade é que o ministério não sabe dizer se o dinheiro foi bem aplicado ou não”, cravou Mota.

Os 611 milhões de reais de patrocínio às treze entidades informados à piauí via Lei de Acesso estão longe de ser uma cifra definitiva. O Banco do Brasil, que estampa sua marca nas camisas das seleções de vôlei, recusou-se a entregar as solicitações feitas via Lei de Acesso à Informação. Em respostas sucessivas, Karen Machado, gerente executiva da diretoria de Marketing e Comunicação, e Paulo Henrique Moreira, gestor do Sistema de Informação ao Cidadão do Banco do Brasil, afirmaram que o pedido é “genérico” – um argumento que não foi usado por nenhuma das outras empresas que o receberam e responderam. Como para as demais estatais, piauí pediu ao banco a relação completa de patrocínios feitos entre 2008 e 2017, incluindo valores, nome e CNPJ dos beneficiados.

O Tribunal de Contas abriu, este ano, processos para fiscalizar especificamente os patrocínios de estatais a confederações – além do Banco do Brasil, estão na lista a Caixa e os Correios. O órgão também pretende botar lupa sobre a contabilidade das entidades esportivas, para saber como elas manejam o que recebem de diferentes fontes de recursos públicos. “É possível que uma fonte esteja cobrindo o rombo de outra: você usa dinheiro público para cobrir o desvio de outro dinheiro público”, afirmou o técnico do TCU Ismar Cruz. “Temos indícios disso.”

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