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    Nascida na Argentina, criada no Brasil e cidadã do mundo, Zappi expõe suas referências literárias sem culpa. “Nenhuma palavra, nenhuma frase pertence a ninguém.” FOTO: TODAVIA_DIVULGAÇÃO

questões literárias

Gema Subterrânea

Uma conversa com Lucrecia Zappi sobre seu livro Acre e a vida mundo afora

Mateus Baldi | 15 ago 2017_11h14
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Um.
Subterrâneos

Em janeiro deste ano, os editores Flávio Moura e André Conti anunciaram que deixariam a Companhia das Letras para abrir uma nova casa editorial. A eles se somariam antigos colegas da editora paulista, como Leandro Sarmatz, Marcelo Levy e Ana Paula Hisayama. Seis meses depois, durante a Flip, a Todavia já chegava ao mercado com quatro livros: O Vendido, de Paul Beatty (primeiro americano a vencer o Man Booker Prize); O Boulevard dos Sonhos Partidos, HQ de Kim Deitch; O Palácio da Memória, compilação de episódios do podcast homônimo do americano Nate DiMeo; e o romance Acre, de Lucrecia Zappi.

Acre, o único título brasileiro nesse pontapé inicial, parte de uma moldura simples – o narrador confronta o passado quando o novo vizinho calha de ser o ex-namorado de sua mulher –, mas o impacto é tremendo: o texto de Lucrecia Zappi se esconde pelos subterrâneos – reais ou não – de seus personagens e cenários para criar um panorama melancólico do que é existir no Brasil no fim dos anos 2010: lenta e gradualmente, a rotina maçante do casal Oscar e Marcela vai sendo contaminada pela paranoia que cerca tanto suas vidas como suas memórias de juventude.

A obsessão de Zappi pelo oculto se destacava em seu primeiro romance, Onça Preta, publicado pela Benvirá. Escrito em Nova York, onde ela vive há onze anos, o livro foi orientado por E. L. Doctorow, autor do celebrado Ragtime, como parte do mestrado em escrita criativa na Universidade de Nova York (NYU).

– Eu entrei na sala e o professor me olhou meio estranho – ela conta –, perguntou o que eu tava fazendo ali. Eu disse que eu era a Lucrecia, e ele riu, achava que era um pseudônimo, que meu texto era muito longo, que parecia um cara, tinha um quê de Thomas Bernhard com aqueles parágrafos de asma infinita.

Ela faz uma pausa e confessa:

– Eu tava numa fase meio Thomas Bernhard mesmo, inspirada nele, fazendo parágrafos sem fim, aquela falta de ar toda, uma mistura de urgência e irreverência, assim como eu tive outras fases também, Kafka e  Philip Roth, por exemplo.

No começo de agosto, horas antes de Zappi lançar Acre no Rio de Janeiro, nos encontramos num restaurante no subsolo de um shopping no Leblon. Ela esperava sentada numa mesa, vestia blusa de listras azuis e cinzas, tecido leve, e uma calça jeans encaixando nos quadris; calçava sandálias.

– Olha, desculpa, pedi uma água com limão, tá?, disse ela.

– Fica à vontade, respondi.

– Água com limão é tão comum aqui, não é? Lá em Nova York ninguém toma assim, o suco espremido e misturado na água, eu tava com saudade disso.

De raciocínio rápido, Lucrecia Zappi é brutalmente honesta e organiza seu pensamento numa espécie de cadeia, onde um assunto leva a outro aparentemente desconexo. E funciona. Em menos de cinco minutos de conversa, já tinha feito dezenas de gestos amplos e soltado sorrisos entremeados com sua fala amena e baixa, e um sotaque indecifrável. Acre foi elogiado pelo crítico Manuel da Costa Pinto, será lançado em Setembro na Espanha, pela editora La Huerta Grande, e no fim do ano na feira de Guadalajara, no México, e teve comentários positivos vindos de escritores como Daniel Galera e Michel Laub – este último participou de uma conversa durante o lançamento em São Paulo.

Nascida em Buenos Aires em 1972, Zappi chegou em São Paulo aos 4 anos, quando os pais fugiam da ditadura argentina – ele, argentino, ela, brasileira. Aos 16, foi morar no México.

– Meu pai se separou da minha mãe e foi trabalhar para as revistas Time e Life. Morar no México foi super legal porque aprendi espanhol, tudo se abriu, inclusive no sentido da literatura. Até então, eu só tinha interesse em Balzac e Júlio Verne, tínhamos biblioteca em casa, meu pai era bem rígido nesse sentido – se eu não lia, apanhava. Aí, quando cheguei no México, tinha que ler como os mexicanos. Imagina, eu adolescente e trinta mexicanos na classe lendo Pedro Páramo, do Juan Rulfo. Aquele foi o primeiro livro que realmente me tocou, essas vozes de fantasmas, você não sabe quem fala, onde começa o pensamento, isso é muito marcado no meu texto, sabe, essa falta de travessões para indicar diálogo, os parágrafos fluidos. Essa falta de indicação é interessante para mim porque põe quase como se observasse os personagens só de passagem e o leitor estivesse lá ouvindo a própria respiração deles.

– Você se preocupa com o leitor?

– Tem uma entrevista do Philip Roth, eu adoro o Philip Roth, em que perguntam isso e ele diz que espera que o livro mude o leitor, não o mundo. Então, sim. Eu quero que o leitor fique completamente compenetrado e me acompanhe nessa história que estou contando.

O garçom se aproximou. Ela pediu mais uma água – com gás e sumo de limão espremido num vidrinho. Quando ele voltou, a escritora derramou o líquido verde no copo com gelo. O verde da água era quase oposto ao verde da capa do livro – escuro, pesado.

– Foi ideia minha. O prédio da capa é o prédio onde eu morei quando cheguei em São Paulo. Depois eu me mudei para outro edifício na mesma praça Rotary. Eu fui vizinha do Anselmo Duarte, acredita? Eu peguei a Palma de Ouro quebrada dele!

Ela fez uma pausa, deu um gole na água e, sempre sorrindo, continuou:

– Eu tinha uns 8, 9 anos. O Anselmo Duarte era meu vizinho e eu tocava a campainha dele. A gente fazia bolo juntos. Com 11 anos, eu saía do colégio, fingia que esquecia a chave, aí ia lá pegar bala de doce de leite. Era delicioso. Ele era um fofo, super generoso.

– E depois?

– Depois foi o México. E do México eu fui para a Holanda. Me formei em artes plásticas na Gerrit Rietveld, em Amsterdã, e fui para a Bélgica fazer filosofia. Engravidei do meu primeiro filho e voltei para o Brasil.

– Foi difícil?

– Eu não sabia o que fazer. Acabei virando jornalista e colaborando com a Folha.

Durante a estadia no Brasil, ela engravidou novamente.

– Li Thomas Mann enquanto esperava o Benjamin. Ele se chama Benjamin por causa do Benjamin de José e seus Irmãos. Aliás, acabei de perceber que meus dois filhos têm os nomes por causa de algum livro do Thomas Mann. O Felix foi quando eu tava lendo Confissões do Impostor Felix Krull, um livro engraçadíssimo.

– Considerando que a mãe do Mann era brasileira…

– Pois é, cara. Mas soa muito pedante isso, não soa? Ai, nossa, meus filhos têm nome por causa do Thomas Mann, mas é isso, vou fazer o quê. Eu tenho muitas fases, li Mann, Philip Roth, Thomas Bernhard. Agora tô relendo Dostoiévski. Já leu? Tem que ler tudo direto. Uns três livros. Para pegar o feeling do autor, emendar mesmo.

– Cuidado para não te acusarem de plágio.

Ela jogou as mãos para trás como quem diz – Deixa disso.

– Nenhuma palavra, nenhuma frase pertence a ninguém. Às vezes eu vejo umas discussões meio bobas, Fulano dizendo que Beltrano copiou. Copiou o caramba, são referências. Se for bem copiado, feito com alma, parece com você e não com quem você copiou.

 

Dois.
Gema

Lucrecia Zappi é um caleidoscópio. Nas mais de três horas em que conversamos, falou com naturalidade sobre absolutamente tudo. Até mesmo um bastidor insólito da feitura de Acre.

– Tem uma cena em que o personagem fica de pau duro e tem que esconder. Eu não sabia como escrever isso. Virei para o meu filho mais velho e ele explicou numa boa, Ah, mãe, você faz assim, bota para o lado, faz isso e aquilo.

– A coisa do sexo é bem presente no livro.

– A Xuxa, cara. Aquela parte com a Xuxa, os caras batendo punheta para a Xuxa, eu me diverti muito fazendo. Mas tem que tomar cuidado com sexo. Sexo e violência. Tem uma linha tênue, se forçar muito vira pastelão, perde força.

– Foi difícil escrever com um narrador masculino?

– Os personagens falam comigo. Eu começo um diálogo, por exemplo, e não sei onde vai terminar, só deixo fluir. Acredito muito nisso de os personagens falarem. Tinha hora que eles tomavam conta do livro. A dona Vera, por exemplo, é chata pra caralho. O Oscar, o protagonista-narrador, também, me dava nos nervos, eu ficava puta, escrevia e ficava meio puta com ele, meio que falando “Meu”, como você é burro.

No livro, Oscar conhece Marcela durante uma temporada em Santos, no final dos anos 80. Foi na cidade litorânea que Zappi aportou num cruzeiro quando imigrou para o Brasil.

– Santos tem um rastro, uma fantasia da cultura do surf, do Verão da Lata de 87, quando apareceu aquela maconha toda no litoral. O paulistano não é carioca, não quer ser carioca. Tem um ranço de classe média, sabe? Eu gosto da poluição visual de Santos. Gosto dessa coisa da onda indo e voltando, os caixotes, crustáceos grudados nas coisas. O movimento das marés. Isso dá um equilíbrio para o livro, até porque é um livro seco, aquele cara isolado na rua da Consolação, trancado numa loja vendendo lustres. A estrutura do livro é muito visual, quase abstrata. Tem uma coisa da escola de artes visuais. O Duchamp fala isso, de reduzir as dimensões. Você pensa em três e tem que escrever em duas.

– Há uma hora em que você fala de “luzes suadas”.

– Mas é isso mesmo. Eles embaçam. No livro, a luz é muito importante. Eu ficava impressionada andando pela rua da Consolação.

Ela faz uma concha com as mãos e reproduz o farfalhar das luzes, os dedos mexendo no ar.

– Aquelas lojas de lustre, uma coisa meio art déco, é tudo meio Cinderela, né? A rua da Consolação é nossa Miami, sei lá, aquele comércio é kitsch nas formas das próprias luminárias, uma coisa art déco pop, acho fascinante e cafona. Porque é muuuito cafona. É estranho, quase.

– Que nem o título?

– Taí. O título foi uma coisa que eu briguei. Causava estranheza, me disseram que ninguém dava título de Acre a um livro, mas eu acho tão bom, é tão comum nos Estados Unidos, é uma unidade de medida. Sem falar do nosso estado brasileiro, que sempre me pareceu um encontro de águas entre o português e o espanhol, dois idiomas que eu me sinto bastante próxima. Aliás, no começo eu queria fazer metade do livro em portunhol.


Zappi esboçou uma careta e seguiu.

– Quando chove no Acre, várias estradas ficam parcialmente encobertas. O desenho muda, eu gosto de imaginar, é uma questão que me liga às fronteiras, aos territórios – como se conecta o pensamento. Eu penso muito nos rios, na água, os rios subterrâneos de São Paulo, as águas do Acre. Quando escrevi Onça Preta, meu primeiro romance, foi quase assim. Eu viajei à Bahia sem planejar escrever nada, e quando vi tinha uma gente cavoucando a Chapada Diamantina com umas colherinhas à procura de diamante. Aquilo me deu um estalo do caralho.

– Você escreve todo dia?

– Todo dia. Sou extremamente metódica. E não tenho dó, também. É importante não ter dó. Costumo dizer que escrevo cinco páginas e corto sete.

Zappi finaliza uma salada que havia pedido e a terceira água com gás e limão. Aproveita a pausa para ajeitar o cabelo. Curtos, seus fios estão soltos ao redor do rosto – escuros, os olhos parecem duas fendas. À noite, no lançamento, ela estará usando os cabelos presos num rabo-de-cavalo mínimo. Comento sobre Mil-Folhas, o livro de culinária que ela escreveu antes de Onça Preta.

– Veio do nada. Eu tava colaborando com a Folhinha, fazia umas pautas, e chegou julho/agosto e eu não tinha nada. Virei para o meu filho e pedi uma ideia de pauta, sei lá, qualquer coisa que as crianças pudessem gostar, e ele disse: Ah, mãe, faz sobre doce. Era época de Festa Junina. Comecei a pesquisar e aquilo foi crescendo. Propus a ideia do livro para o Augusto Massi, editor da Cosac Naify, e ele topou na hora. Não tinha prazo.

Ela ri.

– Era a Cosac, né, o livro saiu sete anos depois…

– Sete? Quanto tempo você demorou para bater o Acre?

– Dois anos. O Mil-Folhas foi bem mais lento, óbvio. Pesquisei por três anos, talvez um pouco mais. Foi interessante notar como a gastronomia se revoluciona a partir da cana-de-açúcar, e esses ecos todos por meio da história social. Era um livro inicialmente para crianças, mas quem se interessava por gastronomia e doces acabou levando. Ganhou o prêmio Ragazzi, da Feira de Bologna.

– Ali você já se considerou escritora?

– Não, claro que não. Só fui sentir isso com o Onça. O Thales Guaracy, que na época estava na Benvirá, leu uma entrevista minha em que eu dizia que estava com um romance. Ele me chamou e perguntou qual era a do livro. Quando publiquei, aí que eu senti: Agora sim, sou uma escritora.

– Mas já tinha acontecido o mestrado, não?

– Já. O mestrado foi uma piração. Dois anos escrevendo direto, sem parar, não tem aquela coisa da Europa, lá em Nova York os caras querem mesmo que você se esforce, perca final de semana, essas coisas. Eu entrei porque queria escrever, pensar em como se fazia literatura. Tive a sorte de encontrar grandes autores pelo caminho, mas isso não é determinante. Técnica e troca de experiência é bom, mas acredito na solidão do processo. E no poder da leitura, de uma leitura prazerosa, que pode se transformar em uma leitura também de aprendizado. No meu caso eu leio com uma caneta na mão. Vou anotando tudo. Passagens que eu gosto, detalhes da construção de frases, as escolhas do autor de um modo geral. E o silêncio durante o processo da escrita é fundamental. Ter a disciplina para voltar todos os dias ali, sem tentar entender muito o que acontece, deixar a intuição fluir. Claro que existe uma história a ser contada, mas o autor tem que dar margem para o acidente, para o desvio intuitivo, além de ter a coragem de abandonar decisões que não funcionam. E para saber que não soam verdadeiras, não adianta, o texto tem que estar no papel.

– E você?

O garçom leva os pratos embora. Zappi passa a alça da bolsinha azul por cima do ombro.

– O que tem eu?

– Você nasceu na Argentina, morou no México, fala cinco idiomas, mora em Nova York. Onde você está nesse mundo?

– Eu sou paulista da gema, meu.

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