Documentário de José Padilha sobre bilhetes à diarista é considerado visceral
CANNES – Guisado Pede Socorro, o novo documentário de José Padilha, causou forte impacto na plateia que lotou ontem o Palais du Cinema.
Dirigido com pulso firme por Padilha, o filme reconstitui o famoso sequestro de um caminhão de abóboras por Maria do Socorro, diarista carioca de 47 anos, que, numa sexta-feira de 2011, após correr dezenas de supermercados atrás de abóbora e carne de modo a saciar o apetite pantagruélico de seus patrões por guisadinho, viu-se forçada a recorrer ao crime e à violência.
“Maria do Socorro foi uma vítima”, explicou Padilha, na coletiva de imprensa. De fato, em cenas pungentes, o filme traz diversos momentos em que, pressionada pela obsessão gastronômica dos patrões, a diarista, em tom de crescente desespero, tenta propor alternativas ao cardápio fatal. “E se eu fizesse uma canjinha?”, diz a um; ”Frango com quiabo?”, implora a outro. “Moqueca?” “Sarapatel?” “Mingau?” “Crêpe Suzette?” “Cuscus marroquino?”
Não há diálogo, não há resposta, o que levou o crítico Rodrigo Fonseca a afirmar, no Globo, que desde O Grito, de Miguelangelo Antonioni, o cinema não explora de maneira tão visceral as voragens do silêncio.
O que se segue todos conhecem. Maria do Socorro sequestra um caminhão de abóboras e o arremete contra os portões de um frigorífico, do qual rouba três arrobas de chuleta. O caminhão é cercado pelo Bope, e inicia-se a negociação. O filme de Padilha deixa claro que em nenhum momento houve a tentativa de resolver pacificamente o episódio. Enquanto Maria do Socorro escrevia “Estou com fome” no para-brisa do caminhão, soldados do Bope, fortemente armados, avançavam em direção à Maria do Socorro num movimento de pinça que, segundo o comentarista Rodrigo Pimentel, “foi empregado pela última vez no cerco aos filhos de Saddam Hussein”. Intuindo o desfecho trágico, Maria do Socorro fechou-se no baú frigorífico do caminhão.
Passaram-se dois meses de paralisia, seguidos de outros cinco de desinteresse. Mas não para o diretor. Com tenacidade, Padilha conseguiu negociar com Maria do Socorro, que lhe franqueou acesso ao baú poucas horas antes de morrer de inanição. “Àquela altura, ela já havia consumido todas as chuletas”, disse o diretor, com emoção.
“Maria do Socorro morreu esquecida e de fome, e é neste aspecto que Guisado Pede Socorro reafirma a bela e dolorosa coerência do projeto ético-estético de Padilha, que desde o documentário Garapa, uma de suas obras-primas, não nos permite o consolo de uma inocência cínica”, escreveu o crítico André Bazin.
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