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questões cinematográficas

Icarus – fraude americana e conspiração russa

Vencedor do Oscar surgiu disfarçado de novidade, mas com ares de documentário requentado

Eduardo Escorel | 15 mar 2018_15h27
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Ao comentar Visages Villages há algumas semanas, escrevi que o júri da Academia daria demonstração de largueza de espírito caso o Oscar de Melhor Documentário de Longa-metragem fosse dado ao filme de Agnès Varda e JR. O prêmio acabou sendo atribuído, porém, a Icarus, de Bryan Fogel. Entre o registro ensaístico da viagem harmoniosa através da França em busca de pessoas comuns com as quais interagir, de um lado, e, de outro, a investigação sobre fraudes generalizadas de exames antidoping, envolvendo esportistas e o governo russo, os jurados preferiram o filme com vertente jornalística que trata de escândalos recentes dignos de manchetes bombásticas.

Ao receber o Oscar, Fogel dedicou o prêmio “ao doutor Grigory Rodchenkov, nosso destemido informante [ex-diretor do laboratório da Agência Russa Antidoping], que vive agora correndo grande perigo. Nós esperamos que Icarus seja um grito de alerta – sim, sobre a Rússia, mas mais do que isso, sobre a importância de dizer a verdade, agora mais do que nunca”.

Invocando a verdade, Fogel fez o elogio de Rodchenkov sem problematizar sua cota de responsabilidade pelo fato do delator estar arriscando a própria vida, deixando de questionar a fraude que engendrou para demonstrar não só ser possível, como fácil, evitar resultados positivos em exames antidoping.

Para legitimar a busca da verdade feita à sua maneira, Fogel recorre ainda por cima a uma epígrafe atribuída erroneamente a George Orwell, de quem Rodchenkov é leitor contumaz – “Em uma época de mentiras universais, dizer a verdade é um ato revolucionário.” Ao contrário do que o filme sugere, a citação não se encontra em 1984. Tampouco há prova de Orwell ter escrito ou dito essa frase alguma vez. Para Fogel, porém, fraudar exame antidoping, falsear a autoria da epígrafe do seu filme e proclamar a importância de dizer a verdade não são posturas incompatíveis entre si.

Passados tão somente 10’, Icarus atinge, desse modo, seu índice mais baixo de credibilidade, tornando justificável a legítima dúvida do espectador quanto ao teor de veracidade dos 111’ restantes.

Ressalvas à parte, Icarus tem seus méritos. Disponível na Netflix, que venceu a disputa com Sony Pictures Classics, Neon, Magnolia e Amazon, ao pagar 5 milhões de dólares por seus direitos de exibição, o documentário de Fogel estreou no Festival de Sundance, em janeiro de 2017, onde ganhou o Prêmio Especial do Júri, batizado de “O Orwell”, além do Prêmio do Público.

Na disputa pelo Oscar, Icarus deve ter se beneficiado, em primeiro lugar, por ser um filme americano, falado em inglês. Mas, deve ter pesado também o fato de tratar de tema correlato ao da pirataria russa para influir na eleição presidencial americana, de 2016, que permanece em destaque no noticiário dos Estados Unidos.

O que Icarus tem a oferecer de mais interessante é o fracasso de Fogel ao servir voluntariamente de cobaia para “provar que o sistema de testes antidrogas de atletas é besteira” (bullshit), como ele diz no filme. E, a partir daí, incorporar o rumo imprevisto dos acontecimentos desencadeados por sua própria iniciativa. Menos atraente é a ênfase na cobertura dos eventos por parte da imprensa, em particular do noticiário televisivo.

Depois de competir “limpo”, em 2014, e chegar em 14º lugar no que considera ser “o evento de ciclismo amador mais difícil do mundo” – uma corrida de sete dias, nos Alpes franceses, chamada Haute Route –, Fogel se submete a um programa de doping supervisionado por Rodchenkov durante sua preparação de cinco meses para a competição do ano seguinte. Se não fosse descoberto, “praticamente qualquer atleta poderia fazer a mesma coisa, e passar no teste antidoping”, diz na narração. Mas, seu desempenho na corrida de 2015 foi pior, em parte devido ao câmbio da sua bicicleta ter quebrado na 4ª etapa. Apesar de sua potência muscular ter aumentado 20%, ele termina em 27º lugar e ele não é sequer submetido ao exame antidoping.

À medida que Fogel estreita sua relação com Rodchenkov, o curso dos eventos sai cada vez mais do seu controle. Resulta bizarro, porém, que ele possa ter sido colhido de surpresa pela gravidade das ocorrências, a ponto de ser recomendada a suspensão da federação russa de Atletismo, o descredenciamento do laboratório antidoping da Rússia e a demissão de Rodchenkov, seu diretor.

Quando a acusação da existência de um programa de doping de atletas promovido pelo estado russo vem a público, Rodchenkov reconhece “poder ser destruído a qualquer momento”. Com ajuda de Fogel, ele foge para os Estados Unidos, deixando para trás mulher e filhos. Acaba aderindo ao programa de custódia protegida do Departamento de Justiça, depois do New York Times publicar longos trechos inéditos do seu diário, em novembro de 2017.

Os relatos desses episódios é feito em Icarus como se fossem revelações inéditas, o que nem sempre é o caso. O próprio filme deixa claro que ao menos Fogel não poderia ter sido surpreendido. Os principais fatos já eram conhecidos, alguns em âmbito mais restrito, outros tornados públicos por meio da televisão.

Antes de apresentar Fogel a Rodchenkov, Don Catlin, diretor do Laboratório Olímpico de Análises da Universidade da California em Los Angeles (Ucla), referindo-se aos atletas, deixa claro em trecho de seu depoimento, logo no início de Icarus, que “todos usam drogas. Todos eles. Infelizmente, drogas funcionam. Com algum conhecimento é sempre possível contornar o teste. É, de fato, fácil burlar os testes. Muito fácil.”

A declaração, dada diante da câmera, não tornaria meio sem sentido a tentativa de desmacarar o exame antidoping feita por Fogel, ao participar da Haute Route de 2015? Não há sinal, em Icarus, que essa questão tenha ocorrido ao dublê de cineasta e ciclista amador, talvez por receio de que abalasse a premissa do seu projeto.

Outro dado, que Icarus não deixa de mencionar, mas sem se deter como deveria considerando sua importância, é a denúncia feita em Como a Rússia Faz Seus Vencedores, de Hajo Seppelt. No documentário, transmitido em 2014 pelo canal ARD (que reúne nove emissoras públicas regionais alemãs), diversos depoimentos revelam a prática sistemática de doping, patrocinada pela Rússia, de atletas russos e africanos. Os depoentes indicam também o envolvimento de um dos principais treinadores de atletas russos, Alexei Melnikov, e do principal médico esportivo do país, Sergey Portugalov, na obtenção de drogas e acobertamento de resultados positivos em testes de doping.

Ao ser lançado três anos depois, Icarus surgiu disfarçado de novidade, mas com ares de documentário requentado para observadores mais atentos. Essa dubiedade é outro ingrediente do método de Bryan Fogel, do qual fazem parte fraude e falsificação, tudo em nome da verdade. Método bem-sucedido, aliás, que vem de ser consagrado com um Oscar.

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