Coceira é uma das sensações físicas mais perturbadoras que uma pessoa pode experimentar. No Inferno de Dante, os falsários são punidos com “a grande fúria da coceira que não tem cura” IMAGEM: SHUTTERSTOCK
A coceira
Seu poder misterioso pode ser a chave para uma nova teoria sobre o cérebro e o corpo
Atul Gawande | Edição 42, Março 2010
M. ainda ficava chocada ao constatar como umas poucas escolhas infelizes podem mudar a vida de uma pessoa. Ela se formou em psicologia no Boston College, casou-se aos 25 anos e teve dois filhos, um menino e uma menina. Trabalhou por treze anos na área da saúde e foi diretora de um programa de residência para homens afetados por ferimentos graves na cabeça. Mas ela e o marido começaram a brigar. Houve traições. Quando chegou aos 32 anos, seu casamento acabou. No divórcio, ela perdeu a posse da casa e, entre suas dificuldades financeiras e psicológicas, viu que perderia também a guarda dos filhos. Em poucos anos, começou a beber. Passou a sair com um homem, e os dois bebiam juntos. Em pouco tempo, ele começou a trazer drogas para casa e ela experimentou. As drogas foram ficando mais pesadas. Logo estavam consumindo heroína, fácil de obter com um traficante de rua a menos de um quarteirão do apartamento onde ela morava.
Um dia, M. foi ao médico porque não se sentia bem e descobriu que tinha contraído o vírus HIV de uma agulha contaminada. Foi obrigada a deixar o emprego. Perdeu o direito de visitar os filhos. Teve complicações devido à doença, entre as quais o herpes-zóster, que provocou a erupção de lesões dolorosas, em forma de bolhas, na testa e no couro cabeludo. Com o tratamento, contudo, conseguiu com que o HIV ficasse sob controle. Aos 36 anos, começou uma terapia de reabilitação, largou o namorado e abandonou as drogas. Teve dois anos bons e tranquilos, nos quais começou a reconstruir a vida. E então começou a coceira.
Foi logo depois de mais um surto de herpes-zóster. As bolhas e a dor cederam ao aciclovir, um remédio antiviral. Mas dessa vez a área afetada do couro cabeludo perdeu a sensibilidade, e a dor foi substituída por uma coceira, constante e implacável, no lado direito da cabeça. A comichão se espalhava pelo couro cabeludo e, por mais que ela coçasse, não cedia nunca. “Eu sentia a coceira por dentro de mim, como se o próprio cérebro coçasse”, disse ela. E a coceira tomou conta da sua vida, justo quando se preparava para endireitá-la.
Sua médica não sabia o que fazer. A coceira é um sintoma extraordinariamente comum e pode ser causada por toda espécie de alterações dermatológicas: reações alérgicas, infecções bacterianas ou fúngicas, câncer de pele, psoríase, caspa, sarna, piolhos, urtiga, queimaduras de sol ou simples secura da pele. Alguns cremes e produtos de beleza também podem provocar coceira. Mas M. usava xampu e sabonete comuns, e nenhum creme. Quando a médica examinou o seu couro cabeludo, não viu nada de anormal – nenhuma irritação ou vermelhidão, nenhum ponto onde a pele estivesse descamando ou se mostrasse mais grossa, nenhum fungo ou parasita. Só as marcas das unhas da paciente.
Receitou uma pomada, mas não adiantou. O impulso de coçar era permanente e irresistível. “Eu passava o dia todo tentando me controlar, mas era muito difícil”, contou M. “O pior eram as noites. Acho que me coçava enquanto dormia, porque sempre acordava de manhã com sangue na fronha.” Começou a perder os cabelos na área afetada. Voltou várias vezes à sua clínica geral, mas nada que a médica tentou jamais funcionou, o que a levou a suspeitar que a coceira nada tinha a ver com a pele de M.
A coceira também pode ser provocada por muitos problemas não dermatológicos. O dr. Jeffrey Bernhard, dermatologista da faculdade de medicina da Universidade de Massachusetts, é um dos poucos médicos a ter estudado o problema de maneira sistemática (publicou um manual definitivo a respeito). Ele me falou de casos provocados por hipertireoidismo, por deficiência de ferro, por doenças hepáticas e certos tipos de câncer, como o linfoma de Hodgkin. Às vezes, a síndrome é bem específica. Uma coceira persistente na parte externa do braço, com tendência a piorar sempre que exposta à luz do sol, é conhecida como prurido braquiorradial. Sua causa é o enrijecimento de um nervo do pescoço. O prurido aquagênico é uma coceira recorrente, intensa e difusa que ocorre quando o paciente sai do chuveiro ou da banheira. Embora ninguém conheça seu mecanismo, esse é um sintoma da policitemia vera, doença rara na qual o corpo produz glóbulos vermelhos em excesso.
Mas a coceira de M. permanecia confinada ao lado direito do seu couro cabeludo. Os exames de contagem viral mostraram que seu HIV estava inativo. Outros exames de sangue e de imagem deram resultados normais. A médica de M. concluiu então que o problema só podia ser de natureza psiquiátrica. Vários distúrbios psiquiátricos podem causar coceira. Pacientes com psicoses podem ter delírios cutâneos – a convicção de que sua pele está infestada, digamos, por parasitas ou formigas, ou coberta de filamentos de fibra de vidro. O estresse grave, além de outros problemas emocionais, também pode dar origem a um sintoma físico como a coceira – seja devido à liberação no corpo de endorfinas (opioides naturais que, como a morfina, também podem causar coceira), ao aumento da temperatura corporal, ao reflexo nervoso de coçar a pele, ou a um aumento da sudorese. No caso de M., a médica suspeitou de tricotilomania, um tipo de transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) em que os pacientes sentem um impulso irresistível de arrancar os próprios cabelos.
M. admitiu essas possibilidades. Afinal, tivera uma vida bem atribulada. Mas os antidepressivos receitados para casos de TOC não fizeram nenhuma diferença. Na verdade, ela não sentia a compulsão de arrancar o cabelo. O que sentia era simplesmente uma coceira na área do couro cabeludo que ficara dormente depois do surto de zóster. Embora às vezes conseguisse se distrair e esquecer o problema, vendo televisão ou conversando, a coceira não variava em função dos seus humores ou do nível de estresse. A única coisa que chegava perto de lhe proporcionar algum alívio era coçar.
“Coçar é uma das mais doces gratificações da natureza, e está sempre ao alcance da mão”, disse Montaigne. “Mas o arrependimento a segue muito de perto.” Para M., não havia dúvida de que isso era verdade: a coceira era tão torturante, e a região estava tão insensível, que suas unhas começaram a atravessar a pele. Numa consulta posterior, sua médica encontrou uma área, de uns 4 centímetros de diâmetro, na qual a pele do couro cabeludo dera lugar a uma casca. M. tentou enfaixar a cabeça e usar gorros para dormir. Mas suas unhas sempre encontravam o caminho da carne, sobretudo enquanto dormia.
Uma manhã, ao ser acordada pelo despertador, sentou-se na cama e, lembra-se ela, “um fluido se espalhou pelo meu rosto, um líquido esverdeado”. Enfaixou a cabeça com uma atadura de gaze e foi para o consultório da médica, a quem mostrou o líquido esverdeado no curativo. A doutora olhou o ferimento de perto. Acendeu uma lanterna para vê-lo melhor e examinar os olhos de M. Saiu da sala de exame e chamou uma ambulância. Foi só na emergência do Hospital Geral de Massachusetts, depois de se ver cercada por vários médicos e um deles lhe dizer que precisava de uma cirurgia imediata, que M. ficou sabendo o que acontecera. Ela se coçara tanto durante a noite que tinha atravessado o crânio – até atingir o cérebro.
A coceira é uma sensação peculiar e diabólica. Ainda não há definição melhor que a criada pelo médico alemão Samuel Hafenreffer, em 1660: uma sensação desagradável que provoca o desejo de coçar. A coceira é incluída, tanto por observadores científicos quanto artísticos, entre as sensações físicas mais perturbadoras que uma pessoa pode experimentar. No Inferno de Dante, os falsários são punidos com “a grande fúria da coceira que não tem cura”:
E arrancavam a sarna com as unhas
Como da carpa a faca tira a escama…
“Ó tu que com os dedos em tenaz”,
Disse Virgílio, abordando um deles,
“Desnudas o teu corpo da tua pele.
Diz-me se algum latino se encontra
Aí enterrado, e se as tuas unhas
Hão de bastar-te para a eterna faina.
Embora coçar possa proporcionar um alívio passageiro, muitas vezes deixa a coceira ainda pior. Os dermatologistas dão a esse fenômeno o nome de “ciclo prurido-coceira”. Muitos cientistas acreditam que o prurido e o reflexo de coçar que o acompanha surgiram em nossa evolução para nos proteger de insetos e toxinas de plantas venenosas; de perigos como a malária, a febre amarela e a dengue, transmitidas por mosquitos; da tularemia, da oncocercose e da doença do sono, transmitidas por moscas; dos piolhos, que podem nos contagiar com tifo; e das pulgas, que transmitem a peste, para não falar das aranhas venenosas. A teoria explica em detalhe por que a coceira é uma resposta tão calibrada: você pode passar um dia inteiro sem se incomodar com o colarinho fechado da camisa, mas basta a ponta protuberante de um fio de linha, ou o roçar das pernas finas de um piolho, para desencadear uma coceira furiosa.
Ninguém sabe precisamente como a coceira funciona. Ao longo de quase toda a história da medicina, a maioria dos cientistas achava que o prurido não passava de uma forma atenuada de dor. E então, em 1987, o pesquisador alemão H. O. Handwerker e seus colegas usaram estímulos elétricos fracos, na pele de voluntários, para introduzir histamina, substância que produz coceira e que o corpo libera durante as reações alérgicas. À medida que os pesquisadores aumentavam as doses de histamina, conseguiram intensificar a coceira relatada pelos voluntários, que passava de “apenas perceptível” a “máxima imaginável”. Ainda assim, nenhum dos voluntários sentiu aumento de dor. A conclusão foi que coceira e dor são sensações totalmente independentes, transmitidas por conexões neuronais diferentes.
Apesar de todos os séculos dedicados ao mapeamento dos circuitos nervosos do corpo, os cientistas nunca haviam encontrado um nervo específico para a coceira. Mas a caçada começara, e um grupo de pesquisadores suecos e alemães fez uma série de experiências complexas. Inseriam eletrodos ultrafinos de metal na pele de voluntários, e os deslocavam para todos os lados até captarem os sinais elétricos de uma única fibra nervosa. Computadores eliminavam o ruído produzido por outras fibras nervosas da região. Os pesquisadores passavam então horas – o tempo que os voluntários aguentassem – submetendo a pele da área a estímulos variados (uma sonda aquecida, por exemplo, ou um pincel bem fino) até ver o que fazia aquele nervo disparar, e o que a pessoa sentia naquele momento.
Trabalharam com 53 voluntários. Na maioria dos casos, encontraram os tipos já conhecidos de fibras nervosas, que reagem à temperatura, ao toque leve ou à pressão mecânica. “Agora senti calor”, dizia um voluntário. “Isso é macio.” Ou: “Ai! Pare!” Mas houve vários momentos em que os cientistas depararam com fibras nervosas que não reagiam a nenhum desses estímulos. Quando introduziram uma pequena dose de histamina na pele, observaram uma resposta elétrica numa dessas fibras, e o voluntário sentiu uma comichão. Anunciaram a descoberta num artigo de 1997: tinham encontrado um tipo de nervo específico para a coceira.
À diferença das fibras nervosas que registram a dor, por exemplo, cada uma das quais cobre um território de mais ou menos 1 milímetro, uma única fibra de coceira pode captar uma sensação de prurido a quase 8 centímetros de distância. Por outro lado, essas fibras também exibem velocidades de condução extremamente baixas, o que explica por que a coceira leva tanto tempo se acumulando antes de se manifestar, e depois demora tanto para passar.
Outros pesquisadores seguiram o percurso dessas fibras nervosas até a medula espinhal e daí até o cérebro. Estudando exames funcionais de tomografia por emissão de pósitrons (os PET-scan), feitos em indivíduos saudáveis que haviam recebido injeções de histamina comparáveis a mordidas de mosquito, eles encontraram uma definição clara da atividade do prurido. Várias regiões específicas do cérebro são acionadas: a área que comanda as respostas emocionais, refletindo a natureza desagradável da coceira, e as áreas límbica e de motricidade responsáveis pelos impulsos irresistíveis (como o desejo de se drogar, entre os viciados, ou de comer além da conta, entre os obesos), refletindo a ferocidade do impulso da coceira.
A partir daí, diversos fenômenos ficaram claros. A coceira, descobriu-se, é de fato inseparável da vontade de coçar. Pode ser desencadeada por fatores químicos (como a saliva que o mosquito injeta ao picar uma pessoa) ou mecânicos (as patas do mosquito, antes mesmo de picar). O reflexo da coceira aciona níveis mais complexos do cérebro que o simples reflexo medular que nos faz recolher a mão quanto ela encosta numa chama. Exames por imagem do cérebro também revelaram que o ato de coçar tem o efeito de diminuir a atividade nas regiões cerebrais associadas às sensações desagradáveis.
Mas algumas características básicas do prurido permanecem inexplicadas – características que tornam seu estudo especialmente revelador. Por um lado, nossos corpos estão cobertos de receptores para a coceira, tanto quanto de receptores para o tato, a dor e outras sensações; isso constitui um sistema de alarme contra o que nos pode fazer mal, permitindo nosso deslocamento pelo mundo, em segurança. Mas por que o roçar de uma pena às vezes nos dá comichão na pele e às vezes só nos faz cócegas ligeiras? (As cócegas têm um componente social: você pode produzir coceira em si mesmo, mas só outra pessoa pode lhe fazer cócegas.) E, o que é ainda mais desconcertante, por que basta pensar em coceira para sentir comichão?
Refletir sobre o que ocorre quando você mantém o dedo numa chama não causa dor no dedo. Mas assim que começo a escrever sobre um carrapato andando na minha nuca, sinto uma comichão irresistível na área. E depois no couro cabeludo. E depois naquele outro lugarzinho logo acima das costelas, até que começo a achar que preciso examinar para descobrir se pode ter alguma coisa. Como parte de um estudo, um professor alemão de medicina psicossomática fez uma palestra em que, na primeira metade, exibia uma série de imagens evocando a coceira, mostrando pulgas, piolhos, pessoas se coçando etc. e, na segunda metade, imagens mais benignas, como penugem macia, pele de bebê, pessoas na água. Câmeras de vídeo registraram a plateia. E, é claro, a frequência da coceira entre os presentes aumentou muito durante a primeira metade, diminuindo na segunda. Pensar causa coceira.
Agora já temos o mapa nervoso da coceira, tanto quanto de outras sensações. Mas um enigma mais profundo persiste: o quanto das nossas sensações e experiências pode ser realmente explicado pelos nervos?
Na sala de operações, um neurocirurgião lavou e limpou o ferimento de M., que havia infeccionado. Em seguida, um cirurgião plástico cobriu a área com um enxerto de pele tirada da coxa. Embora a cabeça tenha sido enfaixada com camadas de ataduras, e ela fizesse todo o possível para resistir à comichão, certa manhã acordou e descobriu que arrancara o enxerto de tanto coçar. Os médicos a devolveram à sala de cirurgia para um segundo enxerto de pele e, dessa vez, amarraram também suas mãos. Ainda assim, ela também arrancou o segundo enxerto.
“Eles insistiam em me falar que eu tinha TOC”, disse M. Uma equipe de psiquiatras vinha vê-la todo dia, e o residente sempre lhe perguntava: “Quando criança, você contava as ranhuras da calçada enquanto caminhava? Fazia alguma coisa repetitiva? Precisava manter uma contagem de todas as coisas que via?” Ela sempre respondia que não, mas ele se mostrava cético. A família dela foi procurada e ouviu a mesma pergunta, e a resposta também foi negativa. Os testes psicológicos que ela fez também excluíram a possibilidade de um transtorno obsessivo-compulsivo. Os testes, no entanto, comprovaram depressão. E ainda havia, claro, a história do seu vício em drogas. Por isso, os médicos insistiram em achar que seu frenesi de se coçar podia estar ligado a algum distúrbio psiquiátrico. Deram-lhe várias drogas, que a faziam se sentir letárgica e dormir muito. Mas a coceira continuava tão intensa quanto antes, e ela ainda acordava coçando a terrível ferida.
Um belo dia, ela acordou e encontrou, como descreve, “uma mulher muito inteligente e com uma expressão feliz ao lado da minha cama. Ela me disse que era a dra. Oaklander. E eu achei que fosse tudo começar de novo. Mas ela explicou que era neurologista, e me disse: ‘A primeira coisa que quero lhe dizer é que acho que você não está louca. E nem acho que você tenha TOC.’ No mesmo instante, me pareceu que ela desenvolveu asas e tinha uma auréola”, conta M. “Perguntei se tinha certeza, e ela disse que sim, que já tinha ouvido falar naquele problema.”
Anne Louise Oaklander era mais ou menos da mesma idade de M. Sua mãe é uma célebre neurologista do Albert Einstein College of Medicine, em Nova York, e ela lhe seguiu os passos. A dra. Oaklander se especializou em distúrbios da sensação nervosa periférica – como o herpes-zóster. Embora a dor seja o sintoma mais comum do zóster, a médica pôde ver, ao longo do seu treinamento, que alguns pacientes também sentiam coceira, ocasionalmente violenta, e quando viu M. lembrou-se de um antigo paciente com herpes-zóster. “Lembro de ter conversado com ele de pé num corredor, e sua queixa principal – sua maior preocupação – era o tormento daquela coceira terrível, acima do olho que fora atingido pela herpes-zóster”, conta ela. Quando a dra. Oaklander olhou para o paciente, percebeu que algo estava errado. E levou algum tempo para entender o porquê: “A coceira era tão violenta que ela tinha arrancado a sobrancelha de tanto coçar.”
A dra. Oaklander testou a pele próxima ao ferimento de M. Mostrava-se insensível à temperatura, ao toque e a picadas de alfinete. Ainda assim, sentia comichão, e quando era coçada ou esfregada M. tinha um conforto passageiro. A médica injetou algumas gotas de anestésico local na pele. Para surpresa de M., a coceira parou – instantaneamente e quase por completo. Foi o primeiro alívio verdadeiro que ela sentia em mais de um ano.
O tratamento, no entanto, era imperfeito. A coceira sempre voltava assim que passava o efeito do anestésico, e embora a médica tenha experimentado fazer M. usar um adesivo com anestésico em cima da ferida, o efeito da droga diminuiu com o tempo. A dra. Oaklander não tinha explicação para nenhum desses fatos. Quando fez uma biópsia da pele afetada, descobriu que 96% das fibras nervosas tinham desaparecido. Por que então a coceira era tão intensa?
A médica formulou duas teorias. A primeira era de que as poucas fibras nervosas remanescentes seriam fibras de coceira. E, na ausência de outras fibras para produzir sinais conflitantes, elas se mantinham em atividade permanente. Já a segunda teoria dizia o contrário: os nervos da área tinham morrido, mas o sistema de coceira no cérebro de M. talvez tivesse perdido o controle e passara a funcionar de maneira imotivada e circular.
A segunda teoria parecia menos provável. Se os nervos do couro cabeludo de M. tinham morrido, como se explicava o alívio que ela sentia ao coçar, ou após o uso de um anestésico local? Aliás, como explicar aquela sensação de coceira, para começo de conversa? Uma coceira sem terminações nervosas não faz sentido. Diante disso, os neurocirurgiões preferiram a primeira teoria e propuseram cortar o principal nervo sensorial da frente do couro cabeludo de M., abolindo a coceira para sempre. A dra. Oaklander, entretanto, achava que a teoria correta era a segunda (a teoria de que o problema estava no cérebro, e não nos nervos), e que seccionar o nervo da testa de M. lhe faria mais mal do que bem. Discutiu com os cirurgiões e aconselhou M. a não permitir a operação.
“Mas eu estava desesperada”, contou-me M. Ela autorizou a cirurgia, que seccionou seu nervo supraorbital logo acima do olho direito. Quando acordou, toda uma área da sua testa estava insensível – e a coceira tinha passado. Algumas semanas depois, no entanto, ela voltou, e com um alcance ainda maior do que antes. Os médicos receitaram analgésicos, mais drogas psiquiátricas, mais anestésicos locais. A única coisa que impedia M. de voltar a abrir o crânio, descobriram, era revestir sua cabeça com um capacete de espuma e prender seus pulsos às barras da cama durante a noite.
M. passou os dois anos seguintes internada numa enfermaria isolada de um hospital de reabilitação porque, embora não apresentasse doença mental, representava um perigo para si mesma. Ao fim de algum tempo, a equipe imaginou uma solução que não exigia amarrá-la à armação da cama. Junto com o capacete de espuma, ela vestia luvas brancas sem dedos, que eram presas nos pulsos com esparadrapo. “Cada vez que ia dormir, parecia que eles me fantasiavam para o Halloween – eu e o sujeito ao meu lado”, conta ela.
“O sujeito ao seu lado?” perguntei. Ele tivera herpes-zóster no pescoço, explicou ela, e também desenvolvera uma coceira persistente. “Toda noite, enrolavam as minhas mãos e as dele.” E acrescentou, falando mais baixo: “Mas ouvi dizer que ele acabou morrendo, porque coçou o pescoço até abrir a artéria carótida.”
Estive com M. sete anos após sua alta do hospital de reabilitação. Hoje ela tem 48 anos. Vive num apartamento de três peças, com um crucifixo e uma imagem de Jesus na parede, e sob a luz amarela indireta de abajures com cúpulas cobertas de miçangas. Numa cesta de vime ao lado da sua mesinha de centro estavam o livro Uma Vida com Propósitos, de Rick Warren, a revista People e o último número de Neurology Now, um periódico para pacientes. As três publicações resumiam sua luta: ela precisava combater a falta de sentido, o isolamento das pessoas e o aspecto fisiológico do seu mal.
Ela me recebeu em sua cadeira de rodas; o ferimento no cérebro deixou-a parcialmente paralisada, do lado esquerdo do corpo. Ela não mantém contato com os filhos. Não voltou a beber nem a usar drogas. Seu HIV permanece sob controle. Embora continue a sentir coceira no couro cabeludo e na testa, aos poucos ela aprendeu a se proteger. Corta as unhas bem curtas. Procura meios de se distrair. Quando não consegue deixar de coçar, procura esfregar levemente o local. E, se isso não basta, usa uma escova de dente bem macia, ou uma flanela enrolada. “Não uso nada que possa me ferir”, disse. Os dois anos que passou amarrada no hospital parecem ter estancado o hábito de se coçar durante a noite. Em casa, ela descobriu que não precisava mais usar o capacete e nem as luvas sem dedos.
Ainda assim, a coceira continua um tormento diário. “Não digo nada às pessoas”, conta ela, “mas tenho a fantasia de raspar minhas sobrancelhas, pegar uma escovinha de aço e coçar o local à vontade.”
Alguns dos seus médicos não abandonaram a ideia de que seu problema, desde o início, foi no nervo. Um neurocirurgião chegou a lhe dizer que a operação original para seccionar o nervo sensório do seu couro cabeludo não atingira a profundidade necessária. “Ele quer que eu me opere de novo”, contou-me ela.
Um novo entendimento científico da percepção emergiu nas últimas décadas, suplantando crenças clássicas e multisseculares sobre o funcionamento do cérebro – embora ainda não tenha sido acolhida por toda a comunidade médica. A forma antiga de entender a percepção é a que os cientistas chamam de “visão ingênua”, uma concepção que a maioria das pessoas ainda adota. Tendemos a achar que, normalmente, percebemos as coisas do mundo de maneira direta. Acreditamos que a dureza de uma pedra, a frigidez de um cubo de gelo ou a aspereza de um suéter de lã que nos causa coceira são captadas por nossas terminações nervosas e transmitidas ao longo da medula espinhal, como uma mensagem telegráfica que percorre um fio, sendo finalmente decodificadas pelo cérebro.
No Tratado sobre os Princípios do Conhecimento Humano, livro de 1710, o filósofo irlandês George Berkeley opôs-se a essa concepção. Não conhecemos o mundo dos objetos, dizia ele, só nossas ideias mentais dos objetos. “A luz e as cores, o calor e o frio, a extensão e os números – numa palavra, as coisas que vemos e sentimos – não são apenas sensações, noções, ideias?” De fato, concluía ele, os objetos do mundo podem não passar de invenções da mente, colocadas ali por Deus. Ao que Samuel Johnson deu sua famosa resposta, chutando uma pedra e declarando: “É assim que eu refuto o que ele diz!”
Berkeley reconheceu algumas falhas graves na teoria da percepção direta. Ela não explica como podemos ter experiências que parecem reais, mas não são: sensações de coceira produzidas só pelo pensamento, sonhos que parecem quase indistinguíveis da realidade; sensações-fantasmas que os amputados têm nos membros que perderam. Supunha-se que os dados sensoriais que recebemos dos olhos, ouvidos, nariz, dedos e assim por diante, continham toda a informação de que precisamos para a percepção, e que ela funcionava mais ou menos como um rádio. É difícil imaginar que um concerto da Orquestra Sinfônica de Boston possa estar contido numa onda de rádio. Mas está. E podemos achar que o mesmo ocorre com os sinais que recebemos do mundo exterior – que, se pudéssemos conectar os nervos de uma pessoa a um monitor, poderíamos ver o que ela está experimentando, como se fosse um programa de televisão.
À medida que os cientistas se dedicaram a analisar os sinais nervosos, no entanto, descobriram que eles eram radicalmente empobrecidos. Imagine que estamos vendo uma árvore numa clareira. Baseando-nos unicamente nas transmissões, ao longo do nervo óptico, da luz que entra pelos nossos olhos, jamais seríamos capazes de reconstruir a tridimensionalidade da imagem, a distância que nos separa da árvore ou os detalhes da sua casca – atributos que percebemos instantaneamente.
Ou basta pensar no que os neurocientistas chamam de “problema da ligação”. Quando acompanhamos com o olhar um cachorro que corre por trás de uma cerca de tábuas, tudo que nossos olhos recebem são imagens verticais separadas do cachorro, do qual ficam faltando grandes fatias. Mas sempre damos um jeito de perceber o animal por inteiro, como uma entidade intacta que se desloca pelo espaço. Se pusermos dois cachorros atrás da cerca, não iremos achar que se fundiram num só. Nossa mente passará a configurar as fatias como duas criaturas independentes.
As imagens da nossa mente são extraordinariamente ricas. Somos capazes de dizer se uma coisa é líquida ou sólida, pesada ou leve, se está viva ou morta. Mas a informação a partir da qual operamos é pobre – uma transmissão distorcida e bidimensional à qual faltam partes inteiras. É a mente que preenche as lacunas e responde pela maior parte da imagem. Isso pode ser percebido em muitos estudos de anatomia cerebral. Se as sensações visuais fossem primariamente recebidas, e não construídas pelo cérebro, era de se esperar que a maioria das fibras que chegam ao córtex visual primário do cérebro viesse da retina. Cientistas descobriram, porém, que este só é o caso de 20% delas; 80% descem das regiões do cérebro que comandam funções como a memória. Richard Gregory, um eminente neuropsicólogo britânico, calcula que a percepção visual seja composta de mais de 90% de memória e menos de 10% de sinais dos nervos sensórios. Quando a dra. Oaklander teorizou que a coceira de M. era endógena, e não gerada por sinais dos nervos periféricos, ela tocou numa questão de suma importância.
A falácia de reduzir a percepção à recepção fica especialmente clara quando se analisam os membros fantasmas. Muitos médicos explicam essas sensações como o produto de terminações nervosas inflamadas ou danificadas que permaneceram no toco, enviando sinais aberrantes ao cérebro. Essa explicação, contudo, devia ter sido posta sob suspeita há muito tempo. As tentativas de muitos cirurgiões para aparar o nervo problemático produzem os mesmos resultados experimentados por M. quando o nervo sensorial da sua testa foi seccionado: um breve período de alívio, seguido de retorno à sensação anterior.
Além disso, as sensações que as pessoas têm em seus membros fantasmas são ricas e variadas demais para serem explicadas apenas pela atividade residual e aleatória de um nervo danificado. Existem não só relatos de dor como também sensações de sudorese, calor, textura e movimento de um membro perdido. Não há experiência que as pessoas tenham com membros reais que não se manifeste nos membros fantasmas. Sentem a perna fantasma balançar, um fio de água correr pelo braço fantasma, um anel que fica apertado demais num dedo fantasma. Muitas crianças usam seus dedos fantasmas para contar e resolver problemas de aritmética.
V. S. Ramachandran, ilustre neurocientista da Universidade da Califórnia, descreve o caso de uma mulher que nasceu apenas com tocos nos ombros, mas que, ainda assim, até onde consegue se lembrar, sempre sentiu ter braços e mãos. Ela chega mesmo a se sentir gesticulando quando fala. As sensações fantasmas não ocorrem apenas em membros. Cerca de metade das mulheres submetidas a operações de mastectomia sente que possui um seio fantasma, cujo mamilo é a parte mais nítida.
Qualquer um já pode ter tido a experiência de uma sensação fantasma. Quando o dentista nos aplica uma anestesia local e o lábio fica insensível, os nervos tornam-se inativos. Mas ninguém sente seu lábio desaparecer. Pelo contrário: a sensação é de que ele fica maior e mais inchado que o normal, embora seja possível ver num espelho que o tamanho do lábio não mudou.
A definição de percepção, que começa a se estabelecer, poderia se chamar de teoria do “melhor palpite do cérebro”: a percepção seria o melhor palpite do cérebro sobre o que ocorre no mundo exterior. A mente integra sinais esparsos, fracos e rudimentares oriundos de uma variedade de canais sensoriais, além de informações de experiências passadas e processos nervosos, para produzir uma experiência sensorial que o cérebro dota de cor, som, textura e significado. Vemos um cachorro correndo aos saltos por trás de uma cerca de tábuas não porque seja esta a transmissão que recebemos, mas porque é a percepção que o nosso cérebro, como um bom tecelão de fios soltos, nos apresenta como sua melhor hipótese do que está acontecendo no mundo exterior, a partir das informações parciais que recebe. Perceber é inferir.
Essa teoria – que por enquanto não passa de uma teoria–– explica alguns fenômenos desconcertantes. Entre eles, uma experiência que Ramachandran organizou com vítimas de dores em braço amputado. Os pacientes enfiavam o braço que lhes sobrava por um buraco na lateral de uma caixa em que se ajustava um espelho no interior, de maneira que, quando olhavam pela abertura da tampa, o braço e sua imagem refletida lhes davam a impressão de terem dois braços. Ramachandran então pedia a eles que deslocassem tanto o braço intacto quanto, em sua mente, o braço fantasma – fingindo, por exemplo, que regiam uma orquestra. E os pacientes tinham a sensação de que voltavam a ter dois braços. Embora soubessem que era apenas uma ilusão, ela lhes dava um alívio imediato. Pessoas que tinham passado anos sofrendo com a incapacidade de abrir um punho fantasma sentiam, de repente, que aquela mão se abria; braços fantasmas em posições de contorção dolorosa finalmente conseguiam relaxar.
Com o uso diário da caixa de espelho ao longo de várias semanas, os pacientes sentiam que seus membros fantasmas na verdade iam encolhendo, até se recolherem ao toco, e, em vários casos, acabavam desaparecendo por completo. Pesquisadores do Centro Médico Walter Reed, do Exército americano, publicaram recentemente os resultados de um estudo randômico da terapia com espelhos em soldados com dores nos membros fantasmas, mostrando que foi obtido um sucesso impressionante.
Boa parte desse fenômeno permanece obscura, mas eis o que sugere a nova teoria: quando um braço é amputado, as transmissões nervosas cessam, e o melhor palpite do cérebro, muitas vezes, parece ser que aquele braço continua no mesmo lugar, mas paralisado, travado ou afetado por fortes cãibras. Esse estado de coisas pode se manter por anos a fio. A caixa de espelho, porém, entra com uma nova informação visual para o cérebro – apesar de ilusória – sugerindo o movimento do braço ausente. O cérebro se vê obrigado a incorporar a nova informação ao seu mapa sensorial. Por isso, muda o seu palpite, e a dor desaparece.
A nova teoria também pode explicar o que acontece com a coceira de M. A herpes-zóster destruiu a maior parte dos nervos do seu couro cabeludo. Por algum motivo, seu cérebro deduziu, a partir da escassez das informações recebidas, que alguma coisa que acontecia ali coçava muito – o deslocamento de um lado para o outro de todo um exército de formigas, talvez, bem em cima daquele trecho de pele. Claro que nada disso estava acontecendo, mas o cérebro de M. não recebia sinais em contrário que desmentissem tal suposição. E por isso ela sentia coceira.
Pouco tempo atrás, conheci um homem que me fez pensar se essas sensações fantasmas não serão mais frequentes do que imaginamos. H. tinha 48 anos e saúde perfeita. Ocupava um cargo de direção numa empresa de serviços financeiros de Boston, onde morava com a mulher num subúrbio, quando mencionou uma dor estranha ao seu clínico geral. Por pelo menos vinte anos, disse ele, vinha sentindo uma ligeira comichão que corria ao longo do seu braço esquerdo e descia pelo mesmo lado do corpo. Quando inclinava o pescoço para frente, num certo ângulo, a sensação se transformava num choque elétrico de razoável intensidade. O clínico geral imaginou que se tratava do sinal de Lhermitte, um sintoma clássico que tanto pode ser um indício de esclerose múltipla, quanto de deficiência de vitamina B12 ou de compressão medular decorrente de um tumor ou uma hérnia de disco. Um exame de ressonância magnética revelou a presença de um hemangioma cavernoso, com a massa do tamanho de uma ervilha, desenvolvida a partir da dilatação de vasos sanguíneos que pressionavam sua medula espinhal na altura do pescoço. Uma semana mais tarde, enquanto os médicos ainda cogitavam o que fazer, o hemangioma se rompeu.
“Eu estava varrendo as folhas secas do jardim quando, de um minuto para o outro, senti uma explosão de dor e o meu braço esquerdo parou de responder ao meu cérebro”, contou H. quando fui visitá-lo em casa. Assim que o inchaço reduziu, um neurocirurgião comandou uma delicada operação para remover o tumor da medula. A cirurgia teve sucesso, mas depois dela H. começou a experimentar uma constelação de sensações bizarras. Sua mão esquerda lhe parecia enorme, como num desenho animado – com pelo menos o dobro do tamanho real. Desenvolveu ainda uma dor constante, como a de uma queimadura, ao longo de uma faixa de 2 centímetros de largura que se estendia do lado esquerdo do pescoço até o fim do braço. E sentia uma comichão que se deslocava para cima e para baixo ao longo da mesma faixa. Por mais que coçasse a área, não obtinha nenhum alívio.
H. nunca aceitou que teria essas sensações para sempre – a perspectiva é muito deprimente – mas elas já persistem há onze anos. Embora a ardência seja tolerável durante o dia, qualquer coisinha é suficiente para desencadear um recrudescimento difícil de aguentar – a sensação do vento frio no braço, o roçar da manga da camisa ou o contato com o lençol. “Às vezes, tenho a impressão de ter sido esfolado, deixando a carne exposta, e qualquer toque é muito doloroso”, conta ele. “Outras vezes sinto que me enfiaram um furador de gelo, ou fui picado por uma vespa, ou que alguém me respingou óleo fervente.”
A coceira é o mais difícil de tolerar. H. criou calos de tanto se coçar. “Prefiro aliviar a coceira do que evitar a dor que estou provocando para satisfazer a vontade de coçar”, disse.
H. já tentou todos os tratamentos: remédios, acupuntura, chás medicinais, injeções de lidocaína, terapia de estímulo elétrico. Nada funcionou e, em 2001, ele teve que se aposentar. Hoje evita sair de casa e vive inventando projetos para si mesmo. No ano passado, construiu um muro de pedra de 1 metro de altura em volta do seu jardim, colocando lentamente pedra por pedra, com as próprias mãos. Mas ainda passa grande parte do dia em casa, depois que sua mulher sai para o trabalho, sozinho, com seus três gatos, sem camisa e com o aquecimento ligado no máximo, tentando evitar os acessos de dor.
Seu neurologista apresentou-o a mim como um exemplo de paciente afetado por uma coceira intensa de causa central, e não periférica. Um dia, estávamos sentados na sala da casa de H. O sol entrava por uma das grandes janelas que davam para o jardim. Um de seus gatos, um vira-lata castanho, estava enrodilhado ao meu lado no sofá. H. estava numa poltrona, usando uma camiseta roxa bem larga, que só vestira para me receber. Ele me dizia que via seu problema como um “interruptor enguiçado” no pescoço, no local antes ocupado pelo tumor, uma espécie de fio solto enviando sinais falsos ao cérebro. Eu lhe falei dos indícios cada vez maiores de que nossas experiências sensoriais não são transmitidas para o cérebro, mas na verdade se originam nele. Quando cheguei ao exemplo das sensações em membros fantasmas, ele ficou interessado. Quando arrisquei que ele poderia querer tentar o tratamento da caixa de espelho, ele concordou. “Tenho um espelho no andar de cima”, disse.
Voltou para a sala trazendo um espelho reclinável de corpo inteiro. Eu o fiz ficar de pé, com o peito encostado a uma das laterais, de maneira que seu braço esquerdo problemático ficasse atrás dele, e seu braço direito normal confrontasse a superfície do espelho. Ele reclinou a cabeça para que, ao olhar no espelho, a imagem do seu braço direito parecesse ocupar a posição do braço esquerdo. Então eu pedi que movesse os dois braços de verdade, como se estivesse regendo uma orquestra.
A primeira coisa que ele manifestou foi decepção: “Não é a mesma coisa que olhar para a minha mão esquerda.” Mas em seguida, de repente, começou a ser.
“Caramba!” disse ele. “Que coisa mais estranha.”
Depois de alguns momentos, percebi que ele tinha parado de mover o braço esquerdo. Ele me contou, no entanto, que ainda tinha a impressão de deslocá-lo. E mais: as sensações nesse braço haviam mudado totalmente. Pela primeira vez em onze anos, sentia sua mão esquerda “voltar” ao tamanho normal. Sentiu ainda uma atenuação da dor ardida no braço. E a coceira também diminuiu.
“Isto é mesmo muito estranho”, comentou.
Ainda sentia a dor e a coceira no pescoço e no ombro, onde a imagem do espelho não alcançava. E, assim que se afastou do espelho, as sensações aberrantes no seu braço esquerdo retornaram. Começou a usar o espelho algumas vezes por dia, mais ou menos quinze minutos, e eu lhe telefonava periodicamente para saber como estava indo.
“O mais impressionante foi a mudança do tamanho da minha mão”, conta ele. Depois de algumas semanas, sua mão voltou a parecer do tamanho normal o tempo todo.
O espelho foi o primeiro tratamento eficaz que encontrou para aliviar os acessos de coceira e dor. Antes, ele não podia fazer nada, além de sentar e esperar que o tormento passasse, o que às vezes podia levar uma hora ou mais. Agora, recorre ao espelho. “Nunca vi nada parecido”, disse. “É o meu espelho mágico.”
Outros sucessos isolados foram registrados com o tratamento do espelho. Em Bath, na Inglaterra, vários pacientes atingidos pela algodistrofia, ou síndrome da dor regional complexa – sensações agudas e desabilitantes num membro, de causa desconhecida – parecem ter conseguido a cura completa depois de seis semanas de terapia. Na Califórnia, a terapia com espelho ajudou pacientes de derrame cerebral a se recuperarem de uma condição conhecida como heminegligência, que produz o oposto de um membro fantasma – para esses pacientes, uma parte do corpo que ainda têm parece não mais lhes pertencer.
Essas descobertas propiciam possibilidades fascinantes: é possível que muitos pacientes tratados como portadores de uma lesão ou doença nervosa tenham, na verdade, o que poderia ser chamado de uma “síndrome de sensor”. Quando a luz de alerta do painel de um carro insiste em dizer que o motor está com problemas, mas os mecânicos não encontram defeito algum, o problema pode ser o próprio sensor. O mesmo se aplica aos seres humanos. Nossas sensações de dor, coceira, náusea e cansaço têm normalmente uma função protetora. Mas podem se transformar num pesadelo quando se dissociam da realidade física: como no caso de M. com sua coceira intratável ou de H. com seus sintomas bizarros – e talvez de centenas de milhares de outras pessoas, afetadas por dores crônicas nas costas, fibromialgia, dores pélvicas persistentes, zumbido nos ouvidos, distúrbios da junta temporomandibular ou lesões por esforço repetitivo, em que nenhuma cirurgia, nenhum exame por imagem ou teste de nervos consegue chegar a uma explicação anatômica. Os médicos insistem em tratar essas condições como problemas nos nervos ou nos tecidos – como defeitos mecânicos, por assim dizer. Abre-se o capô e retira-se isto, troca-se aquilo, corta-se este ou aquele fio. Apesar de tudo, o sensor continua aceso.
O que só produz frustração. E insistência: “Afinal, não há nada de errado.” Em pouco tempo, é o motorista que começa a ser tratado, em vez do defeito. São prescritos tranquilizantes, antidepressivos, doses cada vez maiores de narcóticos; e muitas vezes as drogas tornam mais fácil para as pessoas ignorar esses sensores, mesmo que estejam diretamente conectados ao cérebro. Já o tratamento do espelho tem como alvo o próprio sistema descalibrado de detecção. Essencialmente, ele pega um sensor que aciona indevidamente o alarme – um sistema de alerta, que funciona sob a ilusão de que alguma coisa vá muito mal no mundo que monitora – e o alimenta com um conjunto alternativo de sinais que o acalmam. E os novos sinais podem até convencer o sensor a reinicializar, como se apertassem seu botão de reset.
Isso poderia ajudar a explicar, por exemplo, o sucesso do conselho que vários especialistas em dores nas costas vêm dando nos dias de hoje. “Trabalhe mesmo com dor”, dizem eles a seus pacientes e, com uma frequência surpreendente, a dor passa. O que é um fenômeno impressionante. Em sua maioria, porém, toda dor crônica nas costas começa como uma dor aguda – em consequência de uma queda, por exemplo. Geralmente, a dor cede quando a lesão se cura. Em alguns casos, contudo, os sensores da dor continuam acesos muito depois de debelado qualquer dano nos tecidos. Nessas situações, trabalhar mesmo com dor pode fornecer um feedback contraditório ao cérebro – um sinal de que a atividade normal, na verdade, não causa nenhum prejuízo físico. O que reinicializa o sensor.
Essa nova compreensão das sensações aponta para todo um arsenal de tratamentos em potencial – baseados não em drogas ou cirurgias, mas na manipulação criteriosa das nossas percepções. Pesquisadores da Universidade de Manchester, na Inglaterra, foram um pouco além dos espelhos e criaram um sistema de imersão em realidade virtual para pacientes com dores em membros fantasmas. Detectores transpõem o movimento dos membros reais para um mundo virtual em que os pacientes têm a impressão de se mover, se alongar e até mesmo jogar bola. O sistema foi testado por cinco pacientes, e todos experimentaram uma redução da dor. Ainda não se sabe se os resultados serão duradouros. Mas a abordagem abre a possibilidade de se projetar sistemas semelhantes para ajudar pacientes com outras “síndromes de sensor”. De que maneira, podemos nos perguntar, uma pessoa com dor lombar crônica se sentiria num mundo virtual? O estudo de Manchester sugere que podem existir muitas maneiras de combater nossos fantasmas.
Liguei para Ramachandran para lhe falar da terrível coceira de M. A sensação pode ser fantasma, mas como está no couro cabeludo, e não em um membro, parece improvável que o espelho possa ajudá-la. Ele me contou uma experiência em que enchia os ouvidos das pessoas com água gelada, o que confunde os sensores de posição do cérebro, levando os participantes a imaginar que suas cabeças estão em movimento. Em certos pacientes com membros fantasmas, ou atingidos por derrames, essa ilusão corrige suas percepções equivocadas, pelo menos por algum tempo. O que talvez pudesse ajudar M., comentou ele. Em seguida teve outra ideia. “Se você pegar dois espelhos e os dispuser perpendicularmente um ao outro, vai obter um reflexo não invertido. Nessa imagem, a metade direita do seu rosto irá aparecer do lado esquerdo, e a metade esquerda no lado direito. Mas se você não se mexer, seu cérebro não terá como perceber que a imagem está replicada”, disse ele.
“Vamos supor que ela se olhe nesse espelho e coce o lado esquerdo da cabeça. Não, espere um pouco – estou pensando em voz alta – vamos supor que ela se olhe nesse espelho e outra pessoa toque no lado esquerdo da cabeça dela. Vai parecer – e talvez ela venha a sentir – que o toque está atingindo o lado direito.” Soltou uma risada maliciosa. “E isto talvez faça seu couro cabeludo parar de coçar tanto.” Talvez isso levasse o cérebro de M. a fazer outra inferência perceptiva, o que poderia reinicializar o sensor. “Quem sabe?”, ele disse.
Achei que valia a pena tentar.
Tradução Sergio Flaksman
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