Não é de hoje que o fascínio estrangeiro pelas favelas vira motivo de desconforto e vergonha para boa parte dos cidadãos do asfalto. O comitê organizador da Olimpíada do Rio eliminou as favelas, como a Rocinha, do filme promocional que exibiu para o COI em 2009; realiza-se, como num passe de mágica, o desejo de remover a população pobre do coração da cidade FOTO: SEIER + SEIER
A favela e sua hora
UPPs e investimentos em infraestrutura parecem ser o último prego no caixão dos antigos projetos de remoção das favelas em larga escala; sempre tidas como problemas sem solução, elas podem se converter em parte da solução para os problemas da cidade
Bruno Carvalho | Edição 67, Abril 2012
Para os chineses da dinastia Ming, talvez as favelas cariocas fossem lugares nobres e seguros: acreditava-se por lá, assim como em boa parte do Oriente, que os espíritos malévolos só viajam em linha reta. Em vielas sinuosas, portanto, estaríamos livres de assombrações malditas.
Qualidades sobrenaturais não são as únicas razões para considerarmos as favelas um modelo urbano viável, merecedor de investimentos infraestruturais em escala maciça. Lugares com conhecidos e sérios problemas, elas podem ser também solução para uma série de desafios das cidades hoje. Contanto que não sejam encaradas com olhar pitoresco ou preconceituoso. As favelas são, afinal, produto direto do urbanismo moderno e sua história se confunde com a formação do Brasil.
Durante o auge da dinastia Ming, no começo do século XVI, os maiores e mais imponentes centros urbanos não se encontravam na Europa. Em que pese o risco de espíritos indesejados, grandes cidades como Pequim, Vijayanagar na Índia e Tenochtitlán no México eram dotadas de vias em linha reta. Já cidades como Paris eram acanhadas em comparação. Prevalecia o modelo medieval, caracterizado por um emaranhado de ruas estreitas.
Difícil imaginar como teria sido humilhante para viajantes europeus o encontro com metrópoles do além-mar, tão mais civilizadas e sofisticadas. Alguns tentavam disfarçar a superioridade alheia, e davam ares incrédulos aos seus relatos. Bernal Díaz del Castillo, relembrando a chegada à capital do império asteca, escreve sobre como os espanhóis se deparavam com coisas “nunca ouvidas, nem vistas, nem mesmo sonhadas”.
Na época das descobertas e do Renascimento, a influência greco-romana se espraiou também pelo planejamento urbano e pela arquitetura. Não é de surpreender, portanto, que precedentes greco-romanos voltassem com força total em iniciativas para reformar cidades europeias. Prevalece aí a linha reta, já priorizada na reorganização de Roma pelo Papa Sisto V, que buscava conectar as principais igrejas através de novas avenidas. Essas vias facilitariam o fluxo de peregrinos e de mercadorias, servindo para fins capitalistas, administrativos e espirituais.
O historiador da arte Samuel Edgerton, professor emérito do Williams College, em Massachusetts, fala de uma “sinonímia entre a retidão geométrica e moral”, que permaneceria entranhada na mente ocidental. Thomas More, diz ele, acreditava que “o planejamento urbano geométrico livrava o homem da tentação”. Não podemos descartar que isso esteja relacionado a juízos sobre as favelas como antros medonhos sob suspeita permanente. Da raiz reg-, de “mover em linha reta”, herdamos vocábulos como correto e realeza, retificar e reger. Nada que costumemos associar a barracões apinhados em morros.
Ainda no século XVI, a fundação das cidades espanholas nas Américas foi marcada por traçados retilíneos, onde cada detalhe era determinado pelas Leyes de Indias, ditadas pela Coroa. Ruas paralelas e esquinas em ângulo reto predominam nos centros históricos de cidades como Quito, Lima e Bogotá. No Brasil, as coisas se passaram de forma diferente. Os portugueses, mais preocupados com o domínio marítimo do que com a dimensão de praças públicas, demonstravam um certo “desleixo” em relação ao ordenamento urbano. Foi essa a expressão usada por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, no capítulo “O semeador e o ladrilhador”. A imagem diz tudo: um mapa colonial de Quito apresenta quarteirões organizados como ladrilhos. Já o traçado do Rio de Janeiro, na mesma época, lembra o das cidades coloniais mineiras, ou de muitas favelas atuais: construções e vias surgem em aparente desordem, frutos de um processo em que prevalece o acaso, ao menos à primeira vista.
O desenvolvimento das favelas, entretanto, não acontece de forma aleatória ou tresloucada. Durante o Império, a pobreza urbana se concentrava nos cortiços. A partir da década de 1870, surgem leis com a intenção de expelir esse gênero de moradia para as periferias da cidade. Tais medidas se intensificaram após a instalação da República. Um sujeito no começo do século XX ergue um barraco perto da zona portuária para estar próximo do emprego, porque o transporte público é ruim, e porque o aluguel em áreas centrais é muito caro. Em outras palavras, a favela cresce como resposta direta a pressões externas. Há sobre isso uma bibliografia farta, que inclui livros de estudiosas como Alba Zaluar, Lícia do Prado Valladares e Lilian Fessler Vaz. Sabemos, por exemplo, que alguns ex-moradores do Cabeça de Porco, famoso cortiço destruído pelo prefeito Barata Ribeiro em 1893, começaram a habitar o morro mais próximo. E que veteranos da campanha de Canudos fizeram o mesmo, chamando de Favela o local hoje conhecido como Providência.
Durante as décadas seguintes, a proliferação das favelas despontou como a outra face da moeda do urbanismo moderno, com suas grandes e monumentais avenidas. Foi inspirado no positivismo francês o lema da nossa bandeira republicana. Veio de lá também o modelo para a ambiciosa reforma capitaneada pelo prefeito Pereira Passos (1902-06), cujo carro-chefe foi a avenida Central – hoje Rio Branco. Na Paris de Baudelaire, o célebre barão Haussmann havia introduzido uma série de bulevares, entre 1853 e 1870. Essas reformas tornaram-se o principal marco divisório na história moderna das cidades, e a receita foi seguida em capitais mundo afora.
A linha reta chega ao coração da capital federal relativamente tarde, porém com força avassaladora. Buenos Aires, nossa eterna rival, já contava com avenidas grandiosas. O Rio de Janeiro não poderia continuar para trás e Pereira Passos não mediu esforços na reforma da cidade. O episódio foi bem estudado por historiadores como Jaime Benchimol, da Fundação Oswaldo Cruz, e Jeffrey Needell, da Universidade da Flórida. Segundo este último, a construção da avenida Central – cortando a malha urbana do Rio antigo – implicou a remoção forçada de um décimo dos seus moradores. Não demorou para que habitações precárias começassem a pipocar em encostas de morros ou zonas paludosas.
Em pleno espírito da Belle Époque, a pomposa avenida visava impressionar estrangeiros. Mas foram as favelas que desde cedo cativaram o interesse de viajantes ilustres. O poeta franco-suíço Blaise Cendrars, seu conterrâneo Le Corbusier e o futurista italiano Filippo Marinetti visitaram morros cariocas durante a década de 20. Seja pela pobreza contrastante, pelas improvisações arquitetônicas ou pelo cotidiano incomum, a vida no morro atraía turistas muito antes que os “favela tours” se tornassem um programa habitual.
Quando Marinetti resolve conhecer a favela, em maio de 1926, o inusitado passeio vira notícia nos jornais. O escritor subiu o morro acompanhado de policiais, moradores e uma comitiva da imprensa. Entre eles, encontrava-se gente como Assis Chateaubriand, futuro magnata das comunicações, e o ainda jovem Rodrigo Melo Franco de Andrade, que comandaria o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. No dia seguinte, o Jornal do Brasil demonstrava certo incômodo, noticiando que o vanguardista “visitou a favela e voltou deslumbrado”. Marinetti abrira sua palestra no Teatro Lírico falando do morro. Ele foi vaiado e interrompido, o que não era muito raro quando o entusiasta de Mussolini discursava em público.
Em Velocità Brasiliane, texto sobre sua viagem ao país, Marinetti ressalta o contraste da paisagem. Nas avenidas, “o dinamismo buliçoso dos automóveis cheios de brilho e enguias solares, toda uma engrenagem de bem azeitadas velocidades futuristas”. E 100 metros adiante, “a primitiva e quase pré-histórica colina do morro de la Favela [sic]”, lugar de “negros muito antissociais olhando do alto para a insolente riqueza veloz da avenida”. Mutatis mutandis, temos em estado embrionário o par morro–asfalto que dominaria grande parte das conversas sobre o tema na “cidade partida”. Também não estamos distantes do paradigma clássico dos “dois Brasis”, celebrizado na década de 50 pelo sociólogo francês Jacques Lambert.
Para muitos, as favelas representavam o que havia de mais primitivo, atrasado, sujo, perigoso e pobre na capital. O contrário de tudo o que se almejava: civilização, modernidade, ordem, progresso. Essas categorias tinham implicações sociorraciais evidentes. Os morros começavam a ser vistos como lugares de negros, ainda que suas populações fossem bastante misturadas. Na imprensa, a favela já havia recebido a alcunha de “aldeia do mal”. Subir suas ladeiras, segundo a irreverente revista Fon-Fon, era “como adquirir passaporte para o cemitério”. Isso ainda na década de 20, muito antes do Comando Vermelho ou do Caveirão do Bope.
Não é de hoje, portanto, que o fascínio estrangeiro vira motivo de vergonha e desconcerto para boa parte dos cidadãos do asfalto: afinal, o que é que esses gringos veem de interessante em lugares tão feios e perigosos? Pouco interessado na questão, o comitê organizador da candidatura do Rio à Olimpíada de 2016 achou de bom grado disfarçar a presença das favelas na paisagem carioca. Elas simplesmente não aparecem num filme promocional exibido para o COI em 2009. Realiza-se, como num passe de mágica, o desejo de remover a população pobre do coração da cidade.
Se a favela sempre teve seus detratores, já na década de 20 ela tem o seu filão de outsiders entusiastas. No ambiente do entreguerra, vanguardistas desiludidos com os valores da Belle Époque passam a enxergar o primitivo como virtude, e não como defeito. Os morros cariocas transformam-se em prato cheio para artistas antenados nas últimas tendências, em busca de um Brasil mais autêntico. Em 1924, o Manifesto Pau-Brasil de Oswald de Andrade vê poesia onde outros só viam problemas: “A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.”
No seu prefácio para o livro Pau Brasil, o cafeicultor, escritor e mecenas Paulo Prado diz que Oswald “descobriu” a sua própria terra, “deslumbrado”, em Paris. Na Cidade Luz dos bulevares em linha reta, onde bacana mesmo era a boêmia Montmartre, com suas ruelas e ladeiras. O poeta paulistano não estava sozinho ao direcionar seu olhar para “fatos estéticos” que pouco interessavam às elites tupiniquins. Sua talentosa companheira, Tarsila do Amaral, percebe que os parisienses haviam se cansado da própria arte, como observa em uma carta para os pais. Data de sua estadia por lá o Morro da Favela, retratando um espaço de cores vibrantes, idílico, habitado exclusivamente por negros. O quadro, exposto na Galeria Percier da capital francesa, encantou Blaise Cendrars. Durante a sua primeira viagem ao Brasil, em 1924, o influente escritor e amigo da pintora insistira em visitar o morro.
Quase quatro décadas depois, o lugar das favelas cariocas na concepção de uma utopia tropical ganharia destaque também nas telas do cinema. Mais uma vez, a queda estrangeira pelo exótico parece ser fundamental: é do francês Marcel Camus o consagrado Orfeu Negro (1959), que apresenta ao mundo a bossa nova e a bela vista do morro da Babilônia. Nunca um filme em língua portuguesa fez tanto sucesso fora do Brasil. Mais de quarenta anos depois, Cidade de Deus chega perto, com uma favela em terra plana, planejada, violenta e definitivamente não utópica ainda que, a seu modo, também mítica.
Mas não botemos a carroça na frente dos bois. Nem todo modernista achava o morro fascinante. Havia um abismo entre a visão de artistas e de planejadores urbanos da modernidade. Num texto sobre a atuação de engenheiros no Rio de Janeiro durante a Belle Époque, a professora de sociologia e política da PUC-Rio Maria Alice Rezende de Carvalho mostra um desejo de “governar por retas.” Em geral, os arquitetos e urbanistas desta tradição não estavam em sintonia com a sensibilidade citadina de Oswald, Tarsila ou Cendrars. E, falando em carroças e quadrúpedes, o próprio Le Corbusier, espécie de papa do urbanismo moderno, não mede palavras em sua defesa da herança cartesiano-haussmanniana. No novo mundo que se descortinava em meio aos frenéticos anos 20, não havia espaço para vielas enviesadas, nem para o suposto ritmo moroso dos morros.
O livro Urbanismo, de 1925, abre com uma imagem que deixa claras quais eram as simpatias do autor:
O homem anda reto porque tem um propósito; ele sabe para onde vai. Ele decidiu ir a algum lugar e ele anda em linha reta.
O asno ziguezagueia, meditando um pouco, seu cérebro torrado e distraído, ziguezagueia para evitar as grandes pedras, para esquivar-se da inclinação, para encontrar a sombra; ele dá de si o mínimo possível.
O futuro para Le Corbusier pertencia ao traçado geométrico e aos automóveis, funcionais e eficientes. E ele em grande medida acertou em cheio. Estava claro em que direção os ventos sopravam, e o franco-suíço soube aproveitá-los. O caminho para a modernidade não tolerava a falta de objetividade do asno, as vias tortuosas da cidade medieval ou a sociabilidade das calçadas. Mort de la rue!, proclama o arquiteto das vias expressas. A rua, com seus pedestres atravancando o tráfego, carnavais primitivos e vizinhos jogando conversa fora, era um conceito obsoleto.
Nesse esquema, as favelas apresentavam um empecilho óbvio. Ainda assim, Le Corbusier se interessou por elas em sua passagem pelo Brasil, em 1929. O arquiteto, cuja viagem (como a de Blaise Cendrars) contou com a ajuda de Paulo Prado, também sobe o morro da Providência. A visita rende croquis do cenário e um relato que ressalta aspectos técnicos das moradias: “Espaços, embora exíguos, amplamente eficazes, janelas surpreendentemente abertas […]; casas bem implantadas.” Le Corbusier, partidário ardoroso da linha reta, se curva à “magistral dignidade” da vida popular do local.
Àquela altura, porém, o destino das favelas já parecia estar selado. Elas não deveriam fazer parte da cidade do amanhã. Em tempos anteriores ao uso de técnicas digitais para ocultá-las, a estratégia costumava ser mais dolorosa e definitiva: remoção. Muito menos presente no repertório governamental fluminense desde a volta da democracia, hoje em dia a prática ainda segue na pauta de alguns estados e municípios da Federação. No Rio, a ideia começou a ganhar vulto através dos planos grandiosos de um contemporâneo e rival de Le Corbusier: o urbanista Alfred Agache.
Agache, um dos fundadores e secretário-geral da pioneira Sociedade Francesa de Urbanistas, chega ao Brasil munido de enorme prestígio. O francês havia sido convidado para remodelar a capital pelo prefeito Antônio Prado Júnior, que assume no final de 1926. Escolhido para o cargo por Washington Luís, a experiência administrativa de Prado Júnior se resumia à presidência do Club Athletico Paulistano. Engenheiro de formação, como a maioria dos outros prefeitos da época, ele vinha de uma rica e tradicional família paulistana. Era irmão de Paulo Prado e filho do conselheiro Antônio Prado, antigo senador e prefeito de São Paulo. Sua paixão automobilística provavelmente o aproximava dos urbanistas modernos. Quando Le Corbusier desembarca na cidade, ele é recebido com grande simpatia pelo prefeito, criando um certo mal-estar devido à presença de Agache.
Imbuído da tarefa de estender, remodelar e “embelezar” a capital, Agache logo fixa um escritório na cidade. Desde o começo, seus projetos contaram com uma recepção calorosa entre brasileiros sedentos por modernidade e reconhecimento global. A primeira edição de O Cruzeiro, em novembro de 1928, dá amplo destaque às ideias do “professor Agache”. Observando que a execução integral do plano precisaria de cinquenta anos para ser realizada, a reportagem reconhece a “tarefa complexíssima de traçar as diretivas dentro das quais a capital do Brasil se desenvolverá de agora para o futuro”. E não poupa elogios ao “critério moderno e monumental adotado”, comemorando que os “esboços da magnífica capital de amanhã” prenunciavam uma cidade “digna da humanidade hipercivilizada do século XX”.
O Rio de Agache teria rígidas leis de zoneamento e uma quase absoluta segregação social. Apesar de se interessar pelos porquês das favelas e por questões como os direitos de propriedade, o urbanista reproduz o clichê de “uma população meio nômade, avessa a toda e qualquer regra de higiene”. Para o bom entendedor, estava dada a senha: a remoção forçada deveria ser encarada sem maiores cerimônias. Em um trecho posterior dos planos para a cidade, publicados em 1930, não há margem para interpretação: as favelas seriam uma “lepra”, um problema só solucionável através da “destruição total”.
A receita drástica estava relacionada a preocupações legítimas, como o saneamento, mas refletia também um juízo estético e moral. E, por tabela, agradava aos que empreendiam a primeira campanha de peso contra as favelas, liderada por João Mattos Pimenta. Membro do influente Rotary Club e corretor de imóveis, Pimenta defendera a vinda do francês, e havia feito um filme sobre as favelas, por ele chamadas de “lepra estética”. Mattos Pimenta assina a laudatória reportagem de O Cruzeiro sobre os planos de Agache. Se o leitor já percebeu como eram estreitos os círculos de pessoas influentes, não vá achar que o mundo é pequeno: o poder e a renda é que são concentrados.
Entre as propostas de Agache encontrava-se uma ideia antiga – a de construir uma avenida perpendicular à Rio Branco, ainda mais larga e monumental. A própria O Cruzeiro explicita como nessa batalha pelo futuro da cidade a linha reta adquire um caráter não só funcional, mas também metafórico. Assim começa o editorial que inaugura a revista:
Depomos nas mãos do leitor a mais moderna revista brasileira. Nossas irmãs mais velhas nasceram por entre as demolições do Rio colonial, através de cujos escombros a civilização traçou a linha reta da avenida Rio Branco: uma reta entre o passado e o futuro.
O futuro chegou, mas, como de costume no Brasil, driblando os prognosticadores. Após a ascensão de Getúlio Vargas ao poder em 1930, os ambiciosos projetos de Agache ficariam engavetados. Ainda assim, seus relatórios influenciaram a legislação urbana e uma série de intervenções posteriores.
A ideia de uma nova avenida para mostrar ao mundo a que o Brasil viera só sai do papel durante a Segunda Guerra. O primeiro nome sugerido, avenida 10 de Novembro, comemorava o aniversário do golpe que deu origem ao Estado Novo em 1937. No fim das contas, tascaram-lhe o nome de avenida Presidente Vargas. Getúlio não precisava de mais nada para se convencer da importância da obra. Bastante modificada em relação aos planos anteriores, sob a liderança do interventor Henrique Dodsworth, a nova reta cortando a cidade acarreta a destruição de mais de 500 edifícios. Passou por cima da Praça Onze e da igreja barroca de São Pedro dos Clérigos, uma raridade com sua nave curva.
A avenida foi recebida com euforia pela imprensa da ditadura. “Uma das mais importantes do universo”, “A segunda entre as maiores avenidas do mundo” – estampavam as manchetes na semana da inauguração, no dia 7 de setembro de 1944. Com seus quase 100 metros de largura, ela continua sendo uma importante ligação entre a Zona Norte e o Centro da cidade. O morro da Providência é que poderia já não estar mais lá, como outros que foram aterrados no decorrer do século.
Ao saber dos planos que circulavam durante a estadia de Agache, o sambista Sinhô lamenta a demolição do morro, ainda conhecido como da Favela. Sua precoce canção-protesto, A Favela Vai Abaixo, gravada na voz de Francisco Alves, obtém um sucesso estrondoso no fim da década de 20. Segundo o cronista Vagalume, Sinhô conseguira sensibilizar as autoridades e evitar a destruição da Favela. Sorte igual não tiveram Grande Otelo e Herivelto Martins, autores do clássico Praça Onze, sobre o fim desse espaço público, resultado da construção da avenida Presidente Vargas.
Hoje dotada de um “museu a céu aberto” e de uma Unidade de Polícia Pacificadora, a Providência talvez ainda seja vista por muitos como uma “lepra estética”. A avenida ao lado, ápice de uma visão autoritária do urbanismo moderno, tampouco está acostumada a receber loas por sua beleza estética. Segundo Lucio Costa, trata-se da “mais feia via do mundo”. De fato, com seus edifícios rígidos que mais lembram a estética nazifascista, a arquitetura da avenida não se encaixa nos preceitos dos modernistas ligados a Costa. Ainda que profundamente influenciado por Le Corbusier, o grupo que incluía Oscar Niemeyer revolucionou a arquitetura brasileira sem se limitar a macaquear o que estava em voga no exterior.
Mais uma vez, a aposta oficial havia sido equivocada. A avenida do Estado Novo, com suas pretensões de grandeza em escala sideral, não colocou o Brasil no mapa. Isto foi alcançado por um outro projeto da era Vargas, que despertava a desconfiança da linha dura do regime. O inovador projeto para o Ministério da Educação e Cultura, hoje Edifício Gustavo Capanema, contou com as participações de Costa, Niemeyer, Carlos Leão, Affonso Reidy, Ernani Vasconcellos e Jorge Machado Moreira. A partir da célebre exposição no MoMA de Nova York em 1943, Brazil Builds, a nova geração de arquitetos brasileiros causaria forte impressão no cenário internacional.
Eles com frequência incorporariam linhas sinuosas aos seus desenhos, da Pampulha de Niemeyer ao conjunto residencial de Pedregulho de Reidy, passando pelo paisagismo de Burle Marx. Os experimentos culminariam na construção de Brasília, onde até as “asas” do Eixo Monumental se curvam, fazendo frente à intransigência da linha reta. Mas, assim como há dinastias Ming e Qing, há curvas e curvas. As das vias de Brasília, por exemplo, visam facilitar a vida de automóveis, em detrimento de pedestres. O repertório dos urbanistas e arquitetos modernistas continuaria resistindo a modos tradicionais de convivência urbana. E as favelas continuavam sem vez. Em Sobre Arquitetura, de 1962, Lucio Costa não vê com bons olhos a ideia de que elas haviam se tornado parte incontornável do panorama urbano: toda solução é possível, menos a urbanização da favela.
De lá para cá, muita coisa mudou, tanto para melhor quanto para pior. No Rio de Janeiro, as UPPs começam a devolver aos moradores de alguns morros cariocas o direito de ir e vir, criando a possibilidade de se entrever um cotidiano livre das pressões do tráfico e de uma polícia arbitrária. Apesar de certas situações persistirem, como a revista abusiva, os avanços são inegáveis. E como “pacificar” não basta, programas de integração das favelas ao restante da malha urbana também vêm ganhando novo fôlego. Na esteira do projeto Favela-Bairro dos anos 90, uma série de investimentos recentes tenta compensar o descaso histórico.
Algumas dessas intervenções recebem críticas pelo caráter midiático, entre elas o plano inclinado do morro Dona Marta, o elevador do morro do Cantagalo e o teleférico do Complexo do Alemão, inaugurado com a presença da presidente. Este último custou 210 milhões de reais aos cofres públicos, e gerou um saudável debate sobre a relação custo-benefício da obra. Mas tais discussões não podem ser reduzidas a cálculos quantitativos. Infraestrutura moderna e pontos turísticos em locais onde o tráfico de drogas ostentava o seu poderio bélico até há bem pouco tempo têm um valor inestimável.
Unidas à atuação das UPPs Sociais, esses investimentos parecem ser o último prego no caixão dos antigos projetos de remoção em larga escala, levados a cabo principalmente durante o governo de Carlos Lacerda (1960-65). Intervenções do gênero também esvaziam o perigoso culto à espontaneidade e à suposta pureza dos morros, a velha ladainha das favelas “mais perto do céu”. Os problemas atuais são urgentes, não têm glamour algum e não se resolvem sozinhos: da coleta de lixo aos elevados índices de tuberculose, da expansão desenfreada à falta de títulos de propriedade.
Por um lado, parece haver um consenso mínimo entre os profissionais da área sobre o dever de casa a ser feito. Por outro lado, as favelas seguem sendo motivo de vergonha para muitos, vistas como uma mancha na paisagem. Soma-se a essa resistência o ressentimento dos que pagam impostos em dia e acham que a atuação do Estado nos morros se limita ao populismo ou ao assistencialismo de ocasião. Para esses descontentes, talvez exista um alvo mais propício.
Se tanto as favelas quanto as avenidas monumentais podem ser tidas como feias, o que dizer da Barra da Tijuca? O bairro dos emergentes cariocas se assemelha a tantos outros país afora. Em comum, a dependência do automóvel e os casarões ou espigões afetando ares modernosos, espalhados dentro de condomínios espaçosos e privados. Os nomes costumam ser em língua estrangeira, e não raro fazem promessas de natureza idílica: Riviera del Fiori, Golden Green, Crystal Lake. Como em Brasília, é de Lucio Costa o plano-piloto da Barra da Tijuca. Mas, ao contrário da capital, a arquitetura é em geral imitativa, espalhafatosa, deselegante.
Gosto talvez não se discuta. Mas o custo desse modelo de expansão deve, sim, ser debatido e contestado. Nesses novos condomínios exclusivos, que têm Miami e não mais Paris ou Nova York como modelo, o carro é obrigatório. A baixa densidade e a sensação de proximidade da natureza estão entre seus atrativos. Mas estudos recentes indicam que esse padrão, conhecido no mundo anglofônico como sprawl, tem um preço oculto elevado. E pago por todos nós. Pamela Blais conta essa história em Perverse Cities: Hidden Subsidies, Wonky Policy, and Urban Sprawl[Cidades Perversas: Subsídios Ocultos, Políticas Públicas Vacilantes e Sprawl Urbano, inédito no Brasil].
Blais cataloga como essas áreas não compactas recebem uma série de subsídios diretos ou indiretos. É mais caro, por exemplo, distribuir infraestrutura e energia para os subúrbios norte-americanos do que para os bairros densos de Manhattan. Esse custo não é repassado para o consumidor em sua totalidade. E não vale dizer que nas favelas ninguém paga conta de luz. Segundo os levantamentos mais recentes, grande parte dos “gatos” do Rio de Janeiro vem do asfalto. Esses desvios, além do mais, estão sendo regularizados nas favelas que já receberam UPPs.
Faltam estudos comparativos no Brasil, mas podemos supor que a análise de Blais vale quando olhamos para a Barra, em comparação com Copacabana ou com as favelas. Somam-se a isso as consequências da autodependência. Os carros poluem, e o ar também é de quem anda a pé, de bicicleta ou de transporte público. Eles também dependem da manutenção de vias públicas e de estacionamentos, frequentemente direta ou indiretamente financiados pelos sem-carro.
Invertendo, portanto, a posição de Lucio Costa durante os anos 60, toda solução é possível, menos a suburbanização à la Miami dos entornos urbanos. Esse é o modelo que representa o maior ônus para a coletividade. Neste caso, a linha reta das grandes avenidas que estendem a malha urbana, reduzindo a sua densidade, transforma-se num terreno fértil para outros tipos de fantasmas, muito mais concretos: o aquecimento global, o crescimento insustentável, a destruição de ecossistemas naturais e urbanos.
E as favelas, sempre tidas como problemas sem solução, podem se converter em parte da solução para os nossos problemas. Quem diria? Não são poucas as cidades brasileiras, afinal, marcadas por acidentes geográficos. Em lugares assim, o melhor caminho entre dois pontos raramente é uma linha reta. Talvez seja essa a lição deixada pelos tais espíritos malévolos da dinastia Ming.
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