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    Gilda de Mello e Souza com a menina: a mãe respeitava a agitação da filha, mas não descuidava da sua aparência FOTO: ARQUIVO OURO SOBRE AZUL

memória

A menina e a mãe dela

Ela não gostava se a menina reclamasse depois do banho, quando a sentava na cama para fazer cachos no cabelo molhado. Ficar bonito até que ficava, mas quem estava interessada naquilo? A menina queria era sair para a rua e brincar com os amigos!

Ana Luisa Escorel | Edição 40, Janeiro 2010

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Difícil de entender, a mãe da menina.

Dos quatro adultos da casa era a mais recolhida. Não que fosse fraca. Era muito forte, até. Mas a força dela ficava toda emborcada para dentro, uma criança não conseguia ver de jeito nenhum.

História, ela não gostava de contar e nem sabia, também. Quando o pai ou a avó por alguma razão não podiam, ela, num esforço danado, coitada, pegava um livro escrito em inglês, ficava lendo e traduzindo enquanto lia, parando muito para ajustar as palavras ao melhor sentido. Quer dizer, aquela atenção toda voltada para o texto não tinha a menor graça e nem o ritmo entrecortado da narrativa atendia ao desejo da menina.

Paciência? Quase nenhuma! E ai dela se chegasse perto da mãe, concentrada na tese!

Também não gostava se a menina reclamasse depois do banho, quando sentava na cama e encaixava a pobre em pezinha entre os joelhos, para fazer cachos no cabelo molhado. Ficar bonito até que ficava, mas quem estava interessada naquilo? A menina queria era sair para a rua e brincar com os amigos! Mas tinha de aceitar com sabedoria de Jó, numa inversão milimetricamente proporcional à pouca paciência da mãe:

– Ainda falta muito?

– Fica quieta, menina!

Certa vez pôs fogo, com os amigos, nas pilhas de jornal velho, permanentemente amontoadas na reentrância entre um dos canteiros do jardim e o escritório do pai, bem embaixo do terraço para onde abria a porta de entrada.

Sentindo cheiro de queimado e vendo a fumaça chegar pela janela, a mãe saiu feito uma bala de casa, expressão de fúria e pito em altíssimo tom. A menina – para quem ela e os amigos não estavam fazendo nada de mais, só brincando – ficou passada, com vergonha daquele espetáculo na frente de todo mundo. Por acaso a mãe não via que aquele foguinho à toa não dava para incendiar casa nenhuma? E depois, ela não era de aprontar hecatombe e a mãe devia saber! Nunca tinha quebrado nem braço, nem perna, e nem levado ponto no queixo; estragado coisa de valor ou feito nada, mas nada mesmo, que não achasse remédio ou conserto; daí que não precisava daquele Deus nos acuda todo! E também não era justo ser obrigada a ouvir, dias a fio, a mãe contando para as visitas como a filha quase tinha posto fogo na casa! Logo ela, sempre empenhada em calibrar o alcance da própria ousadia! Só para dar um exemplo: na fazenda do avô, das poucas vezes em que caíra do cavalo – três –, caíra de pé, sem se machucar. E isso, só porque o Três Contos tinha o trote muito duro e, quando começou a envelhecer, deu para empacar de repente. Não havia peão que aguentasse em cima!

E também por falta de paciência, nas amigdalites de todos os meses, a mãe não parava perto da cama tanto quanto a menina queria. Nem adiantava ficar doente. A atenção da mãe estava sempre pregada no pai, nos livros e nas ideias que apareciam na cabeça dela, sem parar. A propósito de qualquer coisa: uma leitura; um filme ou uma peça de teatro; trabalho de aluno; observação do jeito das visitas; alguma lembrança ou o sonho da véspera. A mãe era uma máquina de pensar de combustão incessante. Talvez o que mais gostasse e melhor fizesse fosse expor as ideias, sempre originais, sempre brilhantes. Até a menina queria ouvir, mesmo sem entender direito o sentido completo do que ela contava para o pai o tempo todo, porque eles só paravam de conversar, um com o outro, para ler e trabalhar no que estivessem escrevendo.

A mãe preparava as aulas numa mesa pequena de madeira marrom-escura, pernas finas torneadas com elegância, da mobília de uma das avós dela. Nos primeiros anos das lembranças da menina, essa mesa ficava no quarto dos pais e só um pouco mais tarde desceu para o escritório, onde passou a dividir o espaço com a escrivaninha.

Todas as noites, depois do jantar, quando o pai não estava dando aula na faculdade e não tinha visita jantando com eles, os dois desciam para o escritório e ficavam lá, na conversa e no trabalho, sempre juntos, até tarde.

Vez ou outra, a menina levantava no meio do primeiro sono e, semiadormecida, descia maquinalmente os três andares para encontrar os pais no de baixo, onde sabia que iam estar. Aí a mãe – era sempre a mãe – punha ela no colo e levava de volta para a cama dizendo firme, com doçura, que a noite já ia alta e não era hora de criança ficar andando pela casa.

 

Nesse tempo, a avó do interior costumava mandar para a menina uns vestidos muito bonitos, feitos por ela mesma. Quase sempre tinham rendinhas, enfeitando. Pois não é que a mãe, quando saía com a menina para alguma festa, frisava as rendinhas em tiotê? Pegava aquela espécie de tesourona sem ponta nem corte, esquentava como se fosse ferro elétrico e curvava centímetro por centímetro da renda, até dar conta de toda a extensão, que não era pouca. Fazia ela mesma, as empregadas não iam saber.

Volta e meia, também costurava para a filha. Modelos mais modernos com pouco adorno e caimento impecável. Os da avó tinham muita graça e bordado, mas nem de longe a perfeição de acabamento dos da mãe, atenta com o avesso tanto quanto com o lado direito da roupa. Cortada e costurada com rigor igual ao que punha nos ensaios que escrevia. Por diversas vezes chegou a coser saias, blusas e vestidos inteiros à mão, sem usar um pontinho sequer de máquina de costura.

Um dia o colégio pediu que os alunos levassem exemplos de vestimentas do século XVIII, para ilustrar uma dada matéria. Então a mãe comprou uma bonequinha de celuloide cor-de-rosa e fez para ela um vestido que era uma galanteza, de cetim florido sobre o verde-água, provavelmente inspirado em alguma reprodução de Watteau, pintor de que gostava muito. Saia comprida, ampla, decote generoso e mangas acabando em rendas, na altura dos cotovelos. Um primor de bem-feito e deve ter dado um trabalhão. Mas para essas coisas a mãe tinha muita paciência, até. Tanta que chegou a fazer, também, para outra boneca – bem maior – um vestido igualzinho ao da tia que se casara com o irmão mais moço do pai. A menina tinha ficado impressionada com a cerimônia na igreja, damas de honra, fraque, cortejo, marcha nupcial e, depois, a festa. Não sossegou até a mãe fazer para a boneca um vestido como o da noiva, com o capricho de sempre e uma extraordinária boa vontade.

Roupas, aliás, eram assunto importante na vida da mãe. As dela e as dos outros. Da menina, inclusive. Gostava de roupa para estudar e para vestir. Quando estudava, descobria nelas um mundo de sentidos. Quando vestia, mostrava senso agudo da forma na escolha e na combinação de tecidos, cores e modelos. Brincos, colares, pulseira, bolsas e sapatos.

Embora a menina tomasse como natural a convivência com aquela mãe tão tratada, houve dois momentos em que sentiu o apuro do gosto dela esbarrando na perfeição.

O primeiro foi noutro casamento e, desta vez, os pais eram os padrinhos, ficando em pé, expostos no altar. O segundo, num dia sem acontecimentos especiais em que a mãe ia dar aula na faculdade e depois voltar para casa.

Para servir de madrinha mandou fazer um vestido de crepe georgette dourado, sapatos pretos de camurça, salto nem muito alto, nem fino demais, modelo clássico, enfeite nenhum. Chapéu – preto também – copa de veludo, aba de palha, sobre a qual pousou uma pena oscilante entre o laranja e um ocre esverdeado, mais os vários tons de passagem entre as duas cores. O tecido sendo opaco, de toque antes áspero, cheio das pequenas irregularidades próprias dos shantungs de seda pura, não havia nele propriamente brilho e o dourado se espalhava macio na saia ampla, plissada; no corpo, com transpasse fechado por quatro botões cobertos com a mesma fazenda; nas mangas três-quartos, e no cinto fino, forrado. Arrematando, um par de brincos: pedra marrom corte cabochon, engastada em armação com motivo floral, de inspiração barroca. O metal da joia, uma fantasia de muita qualidade, era cor de ouro velho, salpicado por algumas pedrinhas verdes, pequenas e delicadas.

Embora toda a composição fosse um primor, não teria o mesmo efeito se a mãe não brotasse dela faiscante. Cabelos pretos e curtos; pele morena, sempre cuidadíssima; expressão sonhadora; sobrancelhas construídas em arcos simétricos e o olhar permanentemente tocado por uma ponta de melancolia; mais o nariz reto e a boca. A boca tão bonita, desenhada – a pincel – pelo batom que oferecesse o vermelho mais adequado para a ocasião. E um porte, uma categoria, difíceis de igualar.

Foi o mesmo resultado, noutro estilo, que impressionou de novo a menina, certo início de tarde, na mesa do almoço, antes de a mãe sair para o trabalho.

A situação era diferente, mas o acerto foi igual. Uma saia e uma blusa apenas. Mas só vendo que sintonia a mãe conseguiu tirar das duas, e de ambas com ela própria!

De algodão encorpado, botões do decote à cintura, a blusa tinha mangas curtas com dobra na extremidade e gola contínua, sem pontas nem reentrâncias, servindo de contorno suave para o pescoço. A cor, um limão violento, ficava exatamente entre o verde e o amarelo, iluminando o rosto original em que saltavam, como sempre, o cabelo escuro, os olhos castanhos meio separados e a boca marcada a batom. A saia, por sua vez, era de um desses náilons pregueados que se mantinham impecáveis sem amassar jamais, muito em voga em meados dos anos 50 a meados dos 60. Seca, escorria com elegância junto ao corpo até mais ou menos quatro dedos abaixo do joelho. E a estampa de formas abstratas – pretas, alaranjadas, beges e verde-limão – se organizava à maneira das superfícies decorativas da Sezession austríaca, com que Klimt envolvia as mulheres de pescoço comprido que gostava de pintar.

Com certeza usava um par de brincos. Colar, não. Brigaria com aquele verde decidido e com a extrema movimentação plástica da saia. Dos sapatos desse dia, não ficou memória.

De qualquer forma, mais uma vez o tipo moreno da mãe – ali com 30 e poucos anos – agradecia o acerto da escolha: o tom cítrico da blusa luminosa mais a estampa original da saia art déco impressos na lembrança da menina como o acabamento perfeito para a mulher tão bonita de quem ela tinha vindo.

 

Como o temperamento da filha não fosse propriamente plácido, a mãe achava melhor vesti-la com roupas mais para o masculino, adequadas à permanente movimentação. Calça comprida ou macacão com blusa por baixo e pulôver de lã, no frio. E, por muitos e muitos anos, botas de amarrar, dado um pequeno senão nos joelhos que custou praticamente a infância toda para se resolver.

Mesmo respeitando a agitação da menina, a mãe não descuidava da aparência dela. Além da cabecinha cacheada, prova do cuidado diário, as roupas de brincar eram bonitas e de extremo gosto, escolhidas para privilegiarem o conforto. Agora, quando levava a menina a algum passeio, aniversário, ao teatro, para tomar chá na Vienense ou na Livraria Jaraguá, não abria mão da elegância, nem do laço de fita no cabelo, ajeitado com esmero, porque a mãe era muito caprichosa. E devia ficar satisfeita com o resultado, mérito só dela, por causa dos elogios constantes à estica da menina.

Na Jaraguá, a mãe ficava à vontade, no meio dos amigos, intelectuais como ela, todas as vezes que as duas iam. Então, antes de chegar à confeitaria, no fundo, parava para conversar entre livros e estantes. E conversava tanto que a menina precisava puxá-la pelo braço, lembrando o chá, os doces e os biscoitos, senão a mãe se esquecia da vida, na prosa.

As moças que serviam as mesas eram muito gentis, impecavelmente uniformizadas e profissionais. Traziam uns amanteigados, uns sequilhos, umas torradinhas compridas, para comer com geleia, do outro mundo. E sorvete de creme que sumia, leve, na boca.

Certa vez a menina viu, bem ao lado da mesa delas, o compositor de cabelo branco e bigode preto que cantava com timbre extraordinário: grave e macio.

– Mamãe, olha o moço que fez O mar!

O moço, percebendo o deslumbramento da menina, num rasgo de gentileza, chegou perto e cantou O mar inteiro, baixinho, para ela. Quando acabou, a mãe agradeceu muito, com o jeito reservado dela, e o moço voltou para o refresco, os doces e as torradas, sorrindo para a menina daí para frente, numa cumplicidade firmada até o momento em que mãe e filha, levantando, se despediram e foram embora para nunca mais tornar a encontrá-lo.

O pai às vezes ia ter com as duas na Jaraguá, depois das aulas da faculdade, e também parava no meio do caminho para conversar com os mesmos amigos que conversavam com a mãe. E, como ela, ficava enroscado na prosa, demorando demais para chegar à mesa do chá.

Quando os três saíam juntos, em geral era assim: o pai e a mãe ficavam nos assuntos deles, entre os dois ou com os amigos, e a menina acabava tendo que se arranjar sozinha; já estava acostumada e dava conta de si. Na Jaraguá, por exemplo, ia ver os livros da seção das crianças, para esperar.

Certo dia, num final de tarde, em casa, percebeu que os pais iam jantar fora, para comemorar o aniversário de casamento deles, no Fasano. Aí, de brincadeira, testando, perguntou se podia ir junto. A mãe ficou impávida. O pai, rindo, estendeu o olhar doce para a mãe perguntando se ela não achava boa ideia levarem a menina. Hesitante, riu também, baixando os olhos – como quem segura o sentimento para não levar um susto com ele -, e deixou. A menina mal podia acreditar! Sair de noite para ir ao restaurante com o pai e a mãe! No Fasano ela ia sempre, mas de tarde, e todas as vezes pedia a mesma coisa: frapê de coco e coxinha de galinha. De noite, nunca tinha ido.

Então trataram de se arranjar para sair. A mãe vestiu e penteou a menina com o cuidado de sempre e se pôs muito chique também, como o pai. Prontos, lá se bateram os três para a praça da República, no centro da cidade: o pai, a mãe e a filha.

O restaurante ficava no 2º andar, em cima do salão de chá. Muito iluminado, cintilante mesmo, rebatia para todos os lados reflexos de cristais, toalhas, guardanapos e talheres. Os garçons impecáveis – casacos alvíssimos, gravatas-borboleta espetadas na frente do pescoço – se revezavam bem penteados e pressurosos, achando graça naquela criança extemporânea, ali, na mesa com o pai e a mãe, atentíssima, balançando as perninhas do alto da cadeira, numa hora em que os primos e os amigos já deviam estar no sétimo sono.

Era bom o pão francês com manteiga servida em forma de bolinha. A mãe dizia para ela não se empanturrar com aquilo porque senão, não ia jantar nada. E não jantou mesmo. Como nunca comia direito, nem ali, nem em lugar nenhum, que ela era mais para inapetente. E porque a graça não eram aquelas comidas enfeitadas, mas o cerimonial do restaurante e a disposição do pai e da mãe passeando com ela de noite, na cidade. Ainda mais que, durante o jantar, os dois evitaram os assuntos intransponíveis. Estavam alegres e passaram o tempo todo voltados para ela, como se sua companhia fosse tão interessante quanto a dos amigos de Clima ou dos colegas da faculdade.

 

A mãe também trabalhava bastante. Além das aulas no departamento de sociologia – as dela em regime de tempo parcial –, era professora da Escola de Arte Dramática e, volta e meia, aceitava tarefas como a tradução de peças para o teatro e ensaios, publicados em revistas acadêmicas ou de cunho cultural. Tarefas às quais se aplicava em ritmo pausado, construindo texto e ideias num tempo dilatadíssimo para atender à grande exigência interior de precisão e limpeza formal.

O vínculo com o teatro trouxe os amigos europeus, italianos principalmente. Alguns chamados para atuar na formação do Teatro Brasileiro de Comédia. Porque, em torno de 1948, a oportunidade brasileira devia surgir como uma maneira de escapar da destruição em países batidos, com pouco ou nenhum espaço para a afirmação profissional de artistas e intelectuais em começo de carreira.

Por causa disso, a menina acabou conhecendo muitos deles em casa mesmo, onde volta e meia alguns apareciam, ou no Teatro Brasileiro de Comédia, quando a mãe a levava, nas vezes em que ia. Adolfo Celi, Fabio Carpi, Luciano Salce, Gianni Ratto e mais para frente, porque esse veio depois, Alberto D’Aversa. Tinha também aqueles que não eram italianos, como o Luís de Lima, o Ziembinski e os que, sendo italianos, não eram de teatro, como o Castaldi. Carlo Castaldi, um antropólogo requintadíssimo, de gosto original e apurado, meio maneiroso, magro e elegante, que tinha vindo como funcionário da Unesco para estudar questões ligadas à educação e acabou se apegando ao pai e à mãe da menina, durante o período em que esteve no Brasil.

Castaldi acompanhava com interesse as observações da amiga, suscitadas pelas fotografias de família – dela e do marido –, uma das bases para a argumentação da tese em andamento, sobre a moda. Atento à maneira como sabia olhar os grupos circunspectos de senhores encasacados e senhoras vestidíssimas, enchapeladíssimas e enluvadíssimas; moços e moças retidos, para sempre, na juventude, na pose e na amizade; homens, mulheres, velhos e crianças em diferentes situações e lugares, nas imagens primorosamente compostas pelos fotógrafos daquele tempo, sujeitos ocultos de todos os retratos.

E a mãe da menina encadeava uma interpretação na outra a partir do gesto, da postura, das roupas, dos móveis e objetos de cada registro. Detalhes que, naquela altura, passavam como sem importância a inteligências menos argutas. Pensando bem, ela deve ter sido dos primeiros intelectuais, no Brasil, a valorizar a fotografia como fonte de informação. E o Castaldi gostava desse exercício.

Numa dessas visitas, os pais mostraram a ele um lote de fotografias, provavelmente acompanhado dos esclarecimentos habituais com que tentavam levar os amigos estrangeiros a se situarem no Brasil:

– Esse é o avô paterno de meu marido com cabos eleitorais, em dia de eleição.

– …

– Os quatro tios-avôs dele do outro lado, do lado materno.

– …

– Aqui, o irmão mais velho de minha sogra, a mulher e os filhos, no tempo em que moravam na Europa.

Castaldi, sensível, ele também, aos indícios presentes em qualquer fotografia, deslocava a observação de uma para outra, intrigado. Depois de olhar as três por um bom par de segundos, calcando na surpresa, soltou:

– Como uma pessoa desse grupo familiar – e apontava a foto do bisavô da menina com os apaniguados – pode se casar aqui? – E baixava o olhar sobre as outras duas.

Aí, os pais tentavam explicar serem ambas as famílias da mesma categoria social e registradas em data próxima: os dois últimos decênios do século XIX. O que as afastava era a distância, então intransponível, entre Santa Rita de Cássia e o Rio de Janeiro; o Rio de Janeiro e Paris.

 

Um dos lugares a que a menina mais gostava de ir era a casa da rua Lopes Chaves, da tia Lourdes, mãe da Thereza, do Cau e da Isa, primos um pouco maiores que ela, muito queridos, onde podia batucar à vontade num dos pianos – o mais velho – que ficava na saleta à direita do hall de entrada. No outro, o da sala de visitas, não podia. Era de cauda e o tio, pai dos três, não gostava. Dizia, com razão, que a menina desafinava o instrumento, mantido impecável para que os primos pudessem tocar. De fato, eles eram craques, principalmente o Cau. Enquanto a menina, por muito tempo, não fez senão tirar música de ouvido, pescando as notas no teclado com o indicador direito, até os pais tentarem fazer com que tivesse uma educação musical organizada. Sem muito resultado.

Além do piano e da extraordinária afabilidade dos parentes – o casal, os três filhos, mais o Padrinho Barbudo, irmão de tia Lourdes, e sua mulher, que moravam na casa ao lado e vinham sempre na hora do almoço e do jantar –, tinha a Tana. Sebastiana. Cozinheira da vida toda, com mão para doces e salgados, que ninguém como ela e, ainda por cima, senhora de uma receita imbatível para fazer pipoca. Nunca houve pipoca como a da Tana, servida obrigatoriamente todos os dias entre quatro e cinco da tarde, na hora do chá.

Fora os primos, o piano e a pipoca, a casa tinha outros interesses. Uma topografia originalíssima: porão enorme com dois acessos, por dentro da casa, através de uma escadinha de madeira aberta bem embaixo da escada que levava ao 2º andar, e também por fora, pelo quintal de chão de cimento; copa, cozinha grande, quartos, banheiros, salas, salões e saletas nos dois andares, mobiliados com objetos de toda sorte que casavam, sem alarde, certo convencionalismo com um arrojado conjunto de telas, desenhos, aquarelas e esculturas da melhor qualidade, espalhados por todos os cômodos.

Graças a esse sincretismo, a menina brincava com os bibelôs de porcelana – um casal de velhinhos chineses, sorridentes, sentados sobre as próprias pernas, que balançavam as mãos, as cabeças e punham as línguas para fora –, assim como alisava o Cristo de trancinha, esculpido por Brecheret nos anos de 1920, representação ousada para o tempo, da cabeça de Nosso Senhor. Por razões parecidas, alternava o olhar, sem estranheza, entre o conjunto de móveis pesados da sala de jantar – mesa, doze cadeiras, aparador e cristaleira escuros –, iguais aos de tantas casas que conhecia, e o Futebol de Lhote, tela monumental pendurada no trecho de parede entre os dois lances de escada, que levavam ao 2º andar.

Certo Carnaval, quando a menina devia ter seus 8 anos, a mãe mandou fazer para ela, mais a prima, uma fantasia de arlequim igualzinha à aquarela atribuída a Picasso, que o outro irmão da tia Lourdes, o primo escritor, tinha pendurado na sala de visitas ao lado do piano de cauda, junto com um tanto de outros quadros, todos bonitos e coloridos.

A cópia ficou que nem o original, sem tirar nem pôr: chapéu preto de laterais reviradas – como o de Napoleão – com um buquê de flores do campo preso na frente; calça muito justa e casaquinho acinturado de algodão, numa estampa colorida de losangos brancos, verdes e cor de maravilha. No pescoço, nos punhos e nos tornozelos, babados franzidos de organdi branco fazendo o acabamento, mais as sapatilhas rasas e pretas.

Apesar de linda e original, a fantasia não fez muito sucesso na matinê do clube, repleta de índias, tirolesas e ciganas, bem mais apreciadas. E, pior de tudo: tanto a menina quanto a prima, no fundo, preferiam mesmo era estar de odaliscas – o fim da vulgaridade, segundo a mãe – com aquelas saias de inumeráveis lenços, barriga de fora, véu transparente – cobrindo o rosto dos olhos para baixo –, colares, brincos e pulseiras de luas no quarto crescente e estrelas em metal dourado.

 

Quando o primo escritor morreu a menina tinha só 4 meses. Então, dele, ela só conheceu o rastro. Os dois pianos, o órgão que ficava no andar de cima, no grande escritório, ao lado do quarto apertadinho. As estantes cheias de livros, as pastas com papéis, os objetos, esculturas e quadros soltos pela casa, concentrados, principalmente, nesses dois cômodos em que trabalhava e dormia. Pouco, segundo contaram à menina: nunca mais de quatro horas por noite.

No entanto, a presença forte dele ultrapassava o plano concreto dos objetos em sua disposição no espaço da casa, tomando as conversas e as lembranças de todos, principalmente as da mãe da menina. Que chegou para morar na Lopes Chaves com 10 anos de idade e saiu com 24, quando casou, tendo dedicado, a partir daí, boa parte de sua energia intelectual a decifrar esse primo. Escrevendo e refletindo sobre a obra dele, pela vida afora, num movimento contínuo motivado pela afeição, mas também, com toda a certeza, na tentativa de retribuir o muito que recebera dele, nos quatorze anos em que conviveram, estreitamente.

Isso porque o avô materno, fazendeiro em Araraquara, primo também do escritor em grau ainda mais próximo, ficara numa situação financeira dificílima com a crise do café, em 1929. Fazendo questão, ele e a mulher, que os filhos mais velhos recebessem educação escolar em São Paulo, mantiveram perto de si apenas o caçula, muito pequeno ainda, e mandaram os outros quatro, contando com a acolhida de parentes generosos. E, como as finanças do casal não permitissem custear mais que um em colégio interno, os restantes foram acomodados na casa da avó paterna e na casa do primo escritor, onde viviam a mãe dele, a irmã, Lourdes, e uma tia solteira.

Graças a isso, a personalidade delicada e inquieta da mãe da menina pôde se formar num ambiente cordial, de pessoas gentis, respeitosas e extraordinariamente bem educadas. Justo o oposto do núcleo de origem, no qual os avós haviam instaurado um clima de tensão permanente, provocado pelos atritos ácidos e constantes entre eles.

Além do ambiente distendido, a mãe, vocação intelectual nítida e precoce, teve para si muito da atenção desse primo – solicitadíssimo por alunos e amigos do Brasil inteiro –, orientando os estudos, as leituras e os primeiros escritos dela; preenchendo com o afeto, a erudição e a inteligência, que trazia, boa metragem do espaço normalmente reservado à figura do pai.

 

A mãe da menina gostava de dormir e de acordar tarde. Sempre funcionou assim, leu, produziu seus textos e esteve com os amigos noite adentro, gastando, ainda, boas horas do período noturno, numa prosa sem fim com o marido, retomada de algum ponto e a qualquer pretexto. Apesar disso, a partir de certo momento, se dispôs a sacrificar muito desse ritmo, tão essencialmente dela. Anos a fio, três vezes por semana, levantava cedinho tomando a direção do Opel cinzento para levar a menina às aulas de balé, esperando pacientemente por mais de uma hora, até a sequência de exercícios se completar:

Assemblé, changement, pas de bourrée, sous-sous! – comandava a professora polonesa, entrava aula, saía aula, escandindo o nome dos passos, na batida incisiva de um bastão contra o assoalho de tábuas lavadas.

Como se não bastasse – convenhamos, a mãe tinha coisa bem mais importante em que aplicar o tempo e a atenção –, todo final de ano, no largo período de treinamento do balé, acompanhava os ensaios, as provas das fantasias e, por fim, era obrigada a assistir aos pesadíssimos espetáculos no Teatro Municipal, nos quais um bando de brasileirinhas, mais para sambantes, tentava alcançar a hierática disciplina das escolas de dança clássica europeias.

E também, com aplicação e interesse raros, cobrindo o desenvolvimento gráfico da filha dos 2 até para lá dos 8 anos de idade, colheu e guardou cuidadosamente todos os desenhos dotados de alguma graça. Registrando com disciplina a data, a idade e, muitas vezes, um pequeno comentário da menina sobre os próprios rabiscos, numa frequência simbólica aparentemente dissociada da leitura sugerida pelos traços lançados no papel. Talvez fosse essa dissonância que atraísse a mãe, sempre atenta à força expressiva do inconsciente. Além, quem sabe, da curiosidade natural em uma professora de estética, pelo encaminhamento de cada solução plástica.

Com o mesmo empenho fez roupas para bonecas, e os vestidos, saias e blusas mais bonitos e graciosos que a menina jamais teve. Tricotou, encapou livros e cadernos, noites adentro, no acabamento perfeito de sempre.

Por muito tempo, levou a filha às aulas de piano, tentando ajudá-la a se entender com as partituras e a se familiarizar com a notação musical, invariavelmente substituída pelo ouvido afiado. As pautas, por causa disso, se mantinham completa e absolutamente inexpugnáveis, apesar dos continuados esforços da mãe.

Mesmo diante da evidência dessa memória, só anos depois, fazendo grande esforço e dando muita volta na cabeça e no coração, a menina conseguiu descobrir qual tinha sido o jeito de a mãe gostar dela: deslocando para o gesto, o que não alcançava a palavra.