Dos estudos que mencionam a causa da mudança do clima, 97% a atribuem à ação humana. Enquanto cinetistas falam em uníssono, a emissão de gases de efeito estufa cresceu 31% desde 1990 ILUSTRAÇÃO: GLOBAL WARMING BY FREDERIC TACER_WWW.FREDERICTACER.NET
Clima malparado
Às vésperas da publicação do grande relatório científico sobre o aquecimento global, os governos relutam em enfrentar problema
Bernardo Esteves | Edição 84, Setembro 2013
O Observatório Mauna Loa, instalado no topo de um vulcão no Havaí, registrou no dia 9 de maio que a concentração de gás carbônico na atmosfera, nas últimas 24 horas, havia sido de 400 partes por milhão. Foi o maior valor diário alcançado desde os anos 50, quando o governo americano iniciou as medições sistemáticas da concentração do gás. Naquela ocasião, o índice era de 314 partes por milhão.
Os cientistas são capazes de inferir, com maior margem de erro, a composição da atmosfera do passado do planeta. O cálculo é feito com base na análise de bolhas de ar aprisionadas no gelo antártico. Por isso, eles afirmam que a concentração de CO2, como é chamado o gás carbônico, vem aumentando desde a segunda metade do século XIX, quando a Europa vivia a Revolução Industrial. Em 1880, a taxa estava na casa de 280 partes por milhão, ou ppm.
As colunas de gelo indicam que a quantidade de CO2 na atmosfera variou bastante nos últimos 800 mil anos, mas raras vezes chegou a 300 ppm, e não passou muito disso. O gás nunca foi tão abundante na história da humanidade. Para encontrar valores parecidos com os atuais, é preciso voltar ao Plioceno, era geológica situada entre 3 e 5 milhões de anos atrás, antes que os australopitecos dessem origem aos primeiros . As temperaturas eram então de 3 a 4ºC maiores que as atuais. O nível dos oceanos estava pelo menos 5 metros acima do de hoje.
Em termos absolutos, a proporção de gás carbônico na atmosfera não impressiona: grosso modo, 400 partes por milhão é o equivalente ao volume de uma caixa d’água diluído numa piscina olímpica cheia. Mas, como ajuda a reter na atmosfera parte do calor recebido do Sol, ele tem uma influência decisiva no clima. Não fosse por esse fenômeno, chamado de efeito estufa, a Terra seria fria demais para que nela houvesse vida. O metano, o óxido nitroso e outros compostos que agem da mesma maneira são conhecidos como gases-estufa.
Eles são produzidos em praticamente todas as atividades nas quais se baseia a economia humana, seja na obtenção de energia a partir de gás ou carvão, na combustão de derivados de petróleo para a locomoção de veículos, na construção civil, nos processos agrícolas ou na criação de gado, e também na decomposição do lixo e na queima ou corte da cobertura vegetal.
A população humana multiplicou por sete nos últimos dois séculos. Os cientistas estão convictos de que o acúmulo de gases do efeito estufa lançados na atmosfera nesse período foi determinante para aumentar a temperatura média da superfície – quase 0,8ºC desde 1880, de acordo com dados registrados por estações meteorológicas espalhadas pelo globo.
Dos quatorze anos mais quentes já registrados desde que se começou a medir a temperatura média global, em 1850, doze aconteceram no século XXI. No início do ano, a Austrália viveu o “verão furioso”, o mais quente já registrado no país. Em janeiro, o serviço australiano de meteorologia anunciou uma mudança na escala cromática usada nas previsões do tempo. Foram incluídas duas novas cores (tons de roxo e rosa) para indicar temperaturas que vão de 50º a 54ºC, antes impensáveis.
No gabinete de Paulo Artaxo, no Instituto de Física da Universidade de São Paulo, há um diploma emoldurado no qual se destaca a efígie de Alfred Nobel. Artaxo recebeu-o por integrar o grupo de cientistas que a Organização das Nações Unidas criou, há 25 anos, para avaliar o conhecimento científico do aquecimento global, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas. Mais conhecido pela sigla IPCC, o Painel publica, em intervalos de cinco a sete anos, relatórios que sintetizam o que a ciência sabe sobre a questão. Os documentos orientam a ação de países para combater o problema.
Paulo Artaxo é um paulistano de 59 anos que se especializou no estudo das nuvens e aerossóis, as partículas que ficam suspensas na atmosfera. Ambos ajudam a resfriar o planeta, mas os cientistas ainda não entendem detalhes de seu comportamento. “Seu papel no sistema climático é ex-tre-ma-men-te complexo”, disse Artaxo, separando as sílabas para marcar a ênfase. O físico foi um dos especialistas brasileiros indicados pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação para fazer parte do IPCC. O Painel é uma organização científica que tem também caráter político – os governos nacionais indicam os pesquisadores, participam da revisão do documento e endossam suas conclusões.
Os relatórios de avaliação do IPCC são considerados as publicações científicas com maior autoridade sobre o aquecimento global. Se a ciência do clima fosse uma religião, os relatórios seriam o Alcorão. O último deles, publicado em 2007, concluiu que o aquecimento do planeta é “inequívoco” e se deve “muito provavelmente” aos gases de efeito estufa produzidos por atividades humanas. No fim daquele ano, o Nobel da Paz foi dividido entre o IPCC e o ex-vice-presidente Al Gore, por seus esforços para chamar a atenção do público para o problema. Na condição de um dos 559 autores do trabalho, Artaxo foi agraciado com o certificado que pendurou no seu gabinete.
Vinculado ao IPCC desde 2003, o físico brasileiro foi novamente escolhido para ser um dos autores do Quinto Relatório de Avaliação, que está saindo do forno. Artaxo participou da elaboração da primeira das três partes do documento, dedicada a explicar os mecanismos físicos da mudança do clima. O volume inicial será lançado no fim de setembro em Estocolmo, na Suécia – os outros dois devem sair no início de 2014.
O termo de confidencialidade assinado pelos autores do relatório não impediu que, no fim de agosto, um rascunho do documento vazasse para a agência Reuters e para o New York Times. Mesmo antes disso, autores do trabalho diziam que as conclusões não só ratificariam os achados do relatório anterior, como diminuiriam a margem de incerteza de várias afirmações. O climatologista belga Jean-Pascal van Ypersele, vice-presidente do IPCC, confirmou-me que “o relatório oferecerá uma fartura de novas evidências, e a expectativa é que confirme a maior parte das afirmações anteriores do IPCC, refletindo a evolução do conhecimento, mas sem mudar fundamentalmente a essência do diagnóstico”.
Paulo Artaxo antecipou que a projeção de aumento da temperatura global desde a Revolução Industrial dificilmente ficará abaixo de 2ºC, considerado o patamar máximo aceitável. “O relatório deixará claro, como a literatura já mostra, que o aumento será provavelmente de 2,5 a 3ºC já nas próximas décadas”, disse. De acordo com o físico, o documento deverá confirmar que “as alterações no clima que estamos observando são devidas à ação humana, com 95% de probabilidade”.
No jargão do IPCC, esse grau de certeza equivale a dizer que é “extremamente provável” que os gases lançados pela ação humana sejam responsáveis pelo aquecimento global. A afirmativa indica um aumento na convicção dos cientistas. No relatório de 2007, a expressão usada foi “muito provável”, que traduz um grau de confiança de 90%. Já o terceiro relatório, de 2001, empregou “provável”, o que indica uma certeza de 66%.
A publicação do Quinto Relatório marca o fim de um trabalho delineado em 2009 e iniciado no ano seguinte. O Brasil é representado por 24 pesquisadores, dez a mais do que no Quarto Relatório. Os cientistas do IPCC não produzem propriamente conhecimentos novos – eles avaliam de forma crítica a literatura disponível. Paulo Artaxo foi escalado como coautor do capítulo dedicado ao papel das nuvens e aerossóis no aquecimento global. Nos últimos três anos, ele mergulhou nos estudos mais recentes da sua área e debateu com colegas como a questão seria apresentada no relatório. “O trabalho de compilação e redação é insano”, avaliou. “Cada capítulo é um livro. O nosso tem 250 páginas com espaço simples e duas colunas.”
O texto do relatório a ser apresentado em Estocolmo passou por duas etapas de revisão, nas quais recebeu quase 53 mil comentários, muitos deles de especialistas e representantes dos governos. Coube aos autores responder individualmente a cada observação, e isso representou boa parte de seu trabalho.
O engenheiro elétrico Roberto Schaeffer, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é coordenador de um capítulo do terceiro volume do relatório, a ser publicado no ano que vem. Colaborador do IPCC desde 1997, Schaeffer notou que aumentou a transparência na resposta dos autores aos comentários. Atribui a mudança às críticas que o Painel recebeu depois que erros pontuais foram identificados no Quarto Relatório. Na sua avaliação, a medida ajudou a reforçar a credibilidade dos documentos do IPCC. “Cientistas do mundo inteiro tiveram oportunidade de criticar e dizer o que consideravam bobagem”, afirmou. “Se não fizeram isso, é porque a ciência mundial concorda que o relatório é impecável.”
A primeira parte do documento tem 2 mil páginas e 1 250 figuras. O que vai circular entre os tomadores de decisão, porém, é um sumário executivo bem menor. Os cientistas prepararam um rascunho de 22 páginas, mas o sumário precisa ser aprovado linha a linha por representantes dos governos, que se reunirão em Estocolmo. Parte das nuances científicas se perde no processo de compressão e negociação. “É preciso fazer escolhas heroicas para passar de 2 mil páginas para vinte”, afirmou Schaeffer. “O sumário para tomadores de decisão acaba tendo uma linguagem muito cuidadosa e política.”
O texto final pode esconder negociações árduas. Foi o que ocorreu na discussão do Segundo Relatório, em 1995, quando os cientistas ainda relutavam em afirmar categoricamente que os gases lançados pelas atividades econômicas eram decisivos na mudança climática. Ao negociar o sumário, os autores quiseram escrever que havia “influência humana apreciável sobre o clima global”, mas a frase foi vetada por representantes da Arábia Saudita e do Kuwait, grandes produtores de petróleo. Segundo relatou um participante, 27 adjetivos diferentes foram considerados até que se chegasse a um acordo: havia uma influência humana “discernível” sobre o clima global.
Os cientistas recorrem a modelos de computador para simular como o clima irá se comportar nas próximas décadas, caso as concentrações de gases-estufa aumentem, diminuam ou sigam nos níveis atuais. Nos relatórios do IPCC, os modelos são usados para prever como o clima do planeta reagirá a diferentes respostas da humanidade ao aquecimento – desde a projeção mais otimista, com uma rápida transição para uma economia de baixo carbono, até a mais extrema, sem qualquer redução das emissões.
As projeções dependem de cálculos complexos. Eles são feitos em supercomputadores, máquinas com capacidade infinitamente maior que a das máquinas domésticas. O planeta é dividido em células e o modelo calcula como as propriedades de cada uma delas evoluirá, de acordo com parâmetros que representam variáveis físicas, químicas e biológicas que influem sobre o clima. Como a capacidade computacional exigida é enorme, existem poucos modelos globais no mundo. O Brasil anunciou este ano o início de funcionamento do seu modelo global, o primeiro da América Latina, cujos resultados preliminares foram considerados no Quinto Relatório.
O meteorologista José Marengo, pesquisador peruano de 55 anos que está no Brasil há dezessete, trabalha com modelagem climática no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe. Ele é autor do IPCC desde o Terceiro Relatório, de 2001. Trabalhando com um modelo regional para a América Latina, participou das projeções climáticas para o território brasileiro. Em agosto, foi a Brasília apresentar os resultados ao grupo do Ministério do Meio Ambiente que estuda como o Brasil pode se adaptar ao aquecimento global.
Não foram boas as notícias que levou. “Vai chover mais no futuro, mas cairá na forma de extremos”, afirmou, apontando para a região Sudeste num mapa no telão. “O que poderia ser uma chuva regular vai se concentrar em poucos dias, com impactos nas áreas vulneráveis, enchentes e deslizamentos de terra.”
Em abril, estive com Marengo em seu gabinete no Inpe. Havia chovido na noite anterior em Cachoeira Paulista e, quando me recebeu, o pesquisador apontou para a janela e comentou que não deveria estar chovendo naquela época. Ressaltou que é arriscado atribuir eventos climáticos isolados a mudanças na atmosfera, e que a meteorologia não basta para justificar o estrago que mais tempestades causarão: “As enchentes são consequência mais da urbanização do que da chuva. Uma cidade toda impermeabilizada, como São Paulo, com qualquer chuva vira uma piscina.” Se a temperatura subir nos índices previstos pelos modelos climáticos, o número de dias anuais com chuvas intensas pode dobrar na capital paulista até o fim do século.
No caso do Brasil, as projeções dos modelos indicam que a temperatura deve subir, até 2100, pelo menos 3ºC em todo o país. Cada região sentirá o impacto da mudança de determinada forma. A Amazônia é a região que mais deve esquentar – as estimativas mais pessimistas apontam um aumento de 6ºC até o fim do século. As chuvas podem diminuir de 40 a 45% nesse período. Isso deve aumentar a frequência de secas como as que a região conheceu em 2005 e 2010 – consideradas duas “secas do século”, com um intervalo entre elas de apenas cinco anos. As precipitações podem diminuir até pela metade no Nordeste até o fim do século, e parte da região de clima semiárido corre risco de desertificação, o que forçaria a migração da população para zonas menos hostis.
As projeções da ciência do clima para o Brasil integram um relatório nacional que será lançado semanas antes do documento do IPCC. Concebido à imagem da iniciativa internacional, o Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas – apelidado de IPCC do B – reuniu cerca de 350 pesquisadores, numa iniciativa sem paralelo em outros países.
No sumário, o relatório destacou a escassez de estudos sobre a subida do nível do mar na costa nacional e apresentou números de trabalhos estrangeiros que previam um aumento de 20 a 30 centímetros até o fim do século. A bióloga Andréa Souza Santos, secretária executiva do painel brasileiro, disse que o trabalho ajudou a apontar lacunas de pesquisa e mapear a comunidade que atua na área.
Assim como o relatório do IPCC, seu equivalente brasileiro não se limitou a investigar o aspecto meteorológico da questão. Avaliou também como os impactos do aquecimento global afetarão o Brasil, e o que se pode fazer para enfrentá-lo. Os efeitos sobre a saúde estão entre os mais temidos. Perguntei ao médico Ulisses Confalonieri, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz em Belo Horizonte e estudioso da questão, quais seriam os impactos de um aumento de 3ºC.
“Pode haver aumento de doenças transmissíveis como dengue, leptospirose e diarreia infecciosa, além da exacerbação de poluentes atmosféricos que afetam a saúde respiratória”, ele respondeu. Disse ainda que a dengue pode se tornar endêmica em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Mas afirmou que a relação do clima com as doenças é indireta, e que não há modelos eficazes para prever esses impactos.
Ao aumentar de 90% para 95% o grau de certeza na influência das atividades humanas sobre o clima, o Quinto Relatório reflete um consenso crescente dos cientistas. Um estudo publicado em maio, conduzido pelo australiano John Cook, da Universidade de Queensland, tentou quantificar o grau de adesão dos pesquisadores à ideia. Foram analisados quase 12 mil artigos científicos publicados sobre o tema nos últimos vinte anos. Dos mais de 4 mil trabalhos que mencionaram as causas da mudança climática, 97% atribuíram-na aos gases emitidos na atmosfera pela humanidade.
O número é parecido com o que se esperaria encontrar num estudo que quantificasse a adesão dos biólogos à teoria da evolução, ou dos físicos à relatividade geral. Enquanto os cientistas falam em uníssono, a emissão de gases de efeito estufa passou de 38 bilhões de toneladas, em 1990, para 50 bilhões em 2010, segundo dados da Comissão Europeia.
“A dúvida é o nosso produto”, afirmava um memorando interno escrito por um executivo da indústria de tabaco em 1969. A frase inspira o título do livro Merchants of Doubt [Mercadores da Dúvida], de Naomi Oreskes e Erik Conway, que traça a árvore genealógica do movimento de negação da influência humana sobre o clima nos Estados Unidos. A obra mostra como muitos dos chamados céticos do clima também se envolveram, no passado, com a negação de outras alegações científicas que poderiam provocar prejuízos à grande indústria americana. O modus operandi era parecido em cada caso: procurava-se mostrar que, dada a incerteza das conclusões científicas, não se justificavam ações coercitivas.
O livro conta a história de Fred Seitz, físico aposentado com influência em Washington. Ele ajudara a desenvolver a bomba atômica e havia presidido a Academia Nacional de Ciências. Nos anos 70, financiado pela indústria do tabaco, Seitz levantou dúvidas sobre a relação entre o fumo e o câncer. Mais tarde, foi um dos fundadores do Instituto George Marshall, que defendia que causas naturais eram suficientes para explicar o aquecimento global. Quando o Segundo Relatório do IPCC foi publicado, Seitz considerou que a retirada de um bloco de frases, cortado para padronizar o texto, configurava censura, e liderou uma campanha para denunciar o que chamou de uma “grande enganação”. Ele morreu em 2008, mas o Instituto Marshall continua ativo.
As empresas de energia que exploram petróleo, gás e carvão estão entre as que têm seus interesses ameaçados pela restrição de gases-estufa. São gigantes como a ExxonMobil, Chevron, Shell, PetroChina, British Petroleum ou a Gazprom. Todas elas estão na lista das vinte maiores empresas da revista Forbes, na qual a Petrobras é a vigésima. Numa conta feita pelo físico Alexandre Araújo Costa, treze companhias de petróleo e automobilísticas haviam faturado, em apenas um ano, quase 4 trilhões de dólares, mais que o Produto Interno Bruto da Alemanha.
Por oito anos, a ExxonMobil ajudou a financiar o Instituto Heartland, organização que também teve a Philip Morris entre seus mantenedores. Em 2009 e 2011, o instituto produziu relatórios alternativos ao do IPCC, questionando o aquecimento global de origem humana. No ano passado, o Heartland espalhou pelas ruas de Chicago cartazes nos quais Osama bin Laden, Charles Manson e o Unabomber afirmavam: “Ainda acredito em aquecimento global. E você?”
Segundo dados da OpenSecrets.org, entidade que monitora o financiamento de políticos americanos, o setor de óleo e gás é o que mais injetou dinheiro nas campanhas dos senadores republicanos Joe Barton, do Texas, e James Inhofe, do Oklahoma – juntos, eles já receberam mais de 3 milhões dólares de empresas da área. Barton infernizou a vida dos cientistas que haviam feito reconstituições do clima do passado, intimando-os a explicar em minúcias cada passo dos resultados.
Inhofe afirmou num discurso no Senado, em 2003, que o aquecimento global era “a maior fraude já perpetrada contra o público americano”. Em 2010, solicitou a investigação criminal de dezessete cientistas envolvidos no Climategate – episódio que arranhou a autoridade do painel de cientistas.
O Climategate eclodiu em novembro de 2009. Às vésperas da conferência do clima da ONU em Copenhague, hackers vazaram um pacote com milhares de e-mails trocados por cientistas ligados ao IPCC. Numa das mensagens, o pesquisador britânico Philip Jones explicou a colegas como havia padronizado os dados de um estudo. Disse a eles que usara o mesmo “truque” a que um colega lançara mão no passado, cujo efeito era “esconder o declínio” das temperaturas. Noutra mensagem, Jones disse que trataria de deixar de fora do próximo relatório do IPCC dois artigos escritos por cientistas céticos.
Os trechos foram reproduzidos à exaustão em blogs negacionistas como prova cabal da má-fé dos cientistas do clima. Os e-mails, de fato, revelavam procedimentos aéticos dos cientistas, mas não punham em causa as principais conclusões dos cientistas do clima, conforme concluíram investigações independentes do Parlamento britânico e da universidade de Jones. O estrago na imagem do IPCC, porém, já estava feito.
Os pesquisadores que se opõem ao consenso em relação ao aquecimento da Terra são chamados de negacionistas ou céticos – um termo problemático, pois a dúvida implícita na noção de ceticismo é própria da atividade científica. O rótulo joga na mesma gaveta um espectro variado de questionamentos – uns sustentam que o planeta está na verdade caminhando rumo ao resfriamento, outros reconhecem o aumento da temperatura, mas negam que a espécie humana tenha algum papel nele, e há quem diga que não existe o que se possa fazer para evitá-lo.
Os argumentos dos negacionistas também variam. Alguns alegam que o clima do planeta é governado apenas por fatores naturais, como ciclos da atividade solar, oscilações periódicas nas temperaturas dos oceanos, vulcanismo ou a ação de raios cósmicos. Outros questionam a validade das projeções feitas pelos modelos computacionais. Há quem afirme que os gases do efeito estufa não têm grande influência sobre o processo de aquecimento. Eles põem em questão o próprio princípio físico por trás do efeito estufa, um dos pilares da ciência climática.
As justificações dos céticos circulam celeremente na internet, em jornais, livros e programas de televisão. Mas poucas encontram lugar em publicações técnicas, o espaço por excelência para a proposição e discussão dos conceitos científicos. A imprensa foi acusada de dar aos negacionistas uma voz desproporcional à que eles têm no debate entre especialistas no clima. Se jornalistas não procuram apresentar “o outro lado” em reportagens sobre a seleção natural, ou a mecânica quântica, perguntam muitos cientistas, por que deveriam dar espaço aos céticos?
O Brasil também tem os seus negacionistas, embora eles não estejam diretamente vinculados a grupos de pressão ligados à indústria, como no caso de seus pares americanos. Em 2012, na véspera da Rio+20, a conferência das Nações Unidas sobre o desenvolvimento sustentável, um grupo de dezoito céticos brasileiros enviou uma carta aberta à presidente Dilma Rousseff. Argumentaram que não há evidências físicas da influência humana no clima global, e que a transição para uma economia de baixo carbono é desnecessária e nociva ao país. Na conclusão, defenderam que o alarmismo ambiental fosse “apeado do seu atual pedestal de privilégios imerecidos”.
À frente da lista de pesquisadores que assinam a carta está o geólogo Kenitiro Suguio, da Universidade de São Paulo e membro da Academia Brasileira de Ciências. Suguio é nissei, tem 76 anos e se aposentou em 1996, mas mantém seu gabinete no Instituto de Geociências. Quando estava na ativa, pesquisou mudanças ambientais no Quaternário, período iniciado há 2,5 milhões de anos. O geólogo buscou na estante o original de um livro de Shigenori Maruyama que ele traduziu. O original se chama “Não seja enganado pelo aquecimento global”, mas saiu pela Oficina de Textos com o título Aquecimento global?. Suguio disse que não se envolveu na redação da carta à presidente. “Mas concordo na íntegra”, afirmou.
O geógrafo Ricardo Felício, professor da USP, foi um dos idealizadores do manifesto. Felício, que se diz nacionalista, acredita que a redução de emissão de gases-estufa é uma tentativa dos países industrializados de impor novas tecnologias verdes ao mundo. “É sempre a mesma estratégia”, disse, “eles criam um grande problema e vendem a solução.”
Ele não parece incomodado com o consenso da comunidade científica acerca do aquecimento do planeta. “Não interessa a quantidade de pessoas que falam uma coisa, interessa se estão corretas”, afirmou, citando uma frase do norueguês Ivar Giaever, Prêmio Nobel de Física – e cético.
Em agosto do ano passado, Felício recebeu do Ministério do Meio Ambiente uma resposta à carta enviada à presidente. Dividida em 29 tópicos, a réplica do governo endossou as conclusões do IPCC, reafirmou o compromisso assumido pelo Brasil de limitar o aumento da temperatura global a 2ºC e refutou que a discussão sobre a mudança do clima tivesse motivações políticas ou ideológicas.
Luiz Carlos Molion, meteorologista de 66 anos, é um dos pesquisadores brasileiros que há mais tempo questiona o aquecimento antrópico na imprensa e em palestras. Ele fez carreira no Inpe e, depois que se aposentou, tornou-se professor da Universidade Federal de Alagoas. Numa conversa telefônica, Molion alegou que, num passado recente, o planeta teve temperaturas mais quentes que as atuais. Mencionei um trabalho, publicado em março na revista Science, que reconstituiu as temperaturas dos últimos 11 300 anos e concluiu que o planeta nunca esteve tão quente nos últimos 4 mil anos. Molion mudou de assunto e atacou a metodologia usada num estudo pioneiro do gênero, publicado no fim dos anos 90.
O meteorologista disse que o planeta caminha rumo a um resfriamento – prova disso seria a estabilização das temperaturas desde 1998, apesar do aumento das emissões. O raciocínio, recorrente entre os céticos, usa como ponto de partida um ano de temperatura atipicamente quente, mas de fato a temperatura global média não aumentou neste século. Um estudo publicado no fim de agosto atribuiu o hiato ao resfriamento da superfície do Pacífico. Para rebater o argumento da estabilização, os cientistas também alegam que parte do calor está sendo armazenada nas águas profundas dos oceanos, por meio de mecanismos pouco conhecidos, conforme registram medições recentes. “Isso é conversa”, refutou Molion quando levantei a objeção. “Ninguém tem dados sobre o aquecimento de oceanos.”
Molion e os outros céticos não costumam incluir esse tipo de alegações nos artigos que publicam em periódicos científicos, que precisam ser avaliados por outros colegas antes da publicação. Ele disse que não tenta publicar estudos que contestem o efeito estufa ou o papel do CO2 na mudança climática, porque sabe que não serão aprovados. Informou que evita pesquisar temas ligados ao aquecimento global, e que já teve recusados até mesmo trabalhos que não tinham a ver com o assunto. Não quis participar do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas por considerar que é feito por pessoas que “praticam a ideologia do IPCC”. Tampouco tentou protocolar qualquer crítica durante o processo de revisão do Quinto Relatório. “Não perderia meu tempo fazendo comentários”, alegou.
A ONG Global Footprint Network anunciou que 20 de agosto foi o “Dia da Sobrecarga”, um marco simbólico de que a humanidade consumiu até aquela data o volume de recursos naturais que o planeta é capaz de repor durante o ano. Até dezembro, daremos cabo de recursos que não vão se renovar – e seguiremos lançando CO2 na atmosfera. O Dia da Sobrecarga tem acontecido mais cedo a cada ano – há vinte anos, estava por volta do fim de outubro. A ONG estima que seria preciso um planeta e meio para sustentar o padrão atual de consumo da humanidade.
A engenheira mecânica Suzana Kahn Ribeiro, pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora do IPCC, formulou a questão nos seguintes termos: “Não dá para imaginar o mundo com 9 bilhões de pessoas consumindo e usando o espaço da maneira como fazemos hoje”, afirmou, escorando-se em projeções da ONU para 2040. “A única saída é mudar o padrão de consumo”, completou, antes de aumentar o ar-condicionado.
O caráter impalpável e não imediato da ameaça representada pela mudança do clima ajuda a explicar a apatia dos governos e grandes atores da economia global diante do problema. Essa abordagem foi proposta pelo sociólogo britânico Anthony Giddens no livro A Política da Mudança Climática. De fato, as previsões mais catastróficas de impactos da mudança climática serão sentidas pelos descendentes daqueles que podem promover ações para minimizar os danos. Mas isso depende de medidas impopulares a serem tomadas por governos, que operam numa escala temporal orientada pelo ciclo de eleições a cada quatro anos.
Os economistas não têm dúvidas de que ficará mais barata a preparação imediata para o que vem aí do que remediar estragos no futuro. E não é de hoje – a referência mais citada para o cálculo do prejuízo é o Relatório Stern, encomendado pelo governo britânico e publicado em 2006. A conclusão foi que, se nada for feito, os custos anuais para o combate dos impactos podem ir de 5% a 20% do PIB mundial anual – uma soma da ordem de 4 a 17 trilhões de dólares, em valores de 2012.
André Lara Resende, um dos mentores dos planos Cruzado e Real, é um dos economistas brasileiros que vêm tentando entender como as economias do país e do mundo estão se reconfigurando no cenário da mudança climática. Tem publicado reflexões sobre o assunto na imprensa e no volume Os Limites do Possível, coletânea de artigos lançada este ano. Numa troca de e-mails no começo de agosto, perguntei-lhe se o caráter diferido no tempo dos impactos da mudança climática ajudaria a explicar a falta de ações incisivas por parte de governos e empresas.
Lara Resende evocou em sua resposta os estudos sobre a tomada de decisões em condições de incerteza feitos por Daniel Kahneman, Nobel de Economia em 2002, e Amos Tversky. Os trabalhos da dupla mostraram que, nas situações em que temos algo a ganhar, preferimos o certo ao incerto. “Já quando o que está em jogo é algo a perder, mudamos de atitude, preferimos correr o risco e contar com a sorte para nos tirar da dificuldade”, explicou. “Infelizmente, parece ser o caso em relação à mudança climática.”
O economista propôs comparar as sociedades às crianças que, em certo ponto da infância, aprendem a adiar uma gratificação, um sinal de amadurecimento. Da mesma forma, raciocinou, existem sociedades mais maduras, capazes de fazer sacrifícios hoje para colher frutos no futuro, e sociedades mais impacientes. “O Brasil parece ser uma sociedade imatura, dada a baixa taxa de poupança, mesmo quando comparada com países que têm renda per capita mais baixa”, avaliou.
Mas essa imaturidade – que os economistas chamam de “alta taxa de desconto intertemporal” – não é privilégio do Brasil. Na análise de Lara Resende, ela é inerente ao capitalismo contemporâneo, movido pela publicidade e pela associação da felicidade ao consumo. “O estímulo de poupar pouco e, se possível, endividar-se para aumentar o consumo presente, em detrimento do futuro, é parte da lógica econômica, obcecada com o curto prazo”, escreveu ele. “Não me parece fácil, para não dizer impossível, modificar esse quadro sem algum evento traumático.”
Em Mercadores da Dúvida, Naomi Oreskes e Erik Conway compararam a situação da humanidade à reação atônita dos comensais de um banquete de proporções gargantuescas diante da chegada de um garçom com a conta na mão:
Alguns alegaram que a conta não era deles. Outros negaram que sequer houvesse uma conta. Um grupo objetou que não tinha tomado parte do festim. Um conviva sugeriu que o garçom, na realidade, era apenas alguém querendo atenção ou tentando arrecadar dinheiro para seus projetos pessoais. Por fim, o grupo concluiu que, se eles simplesmente ignorassem o garçom, ele acabaria indo embora.
A metáfora do banquete não é nova. Em 1997, quando os países estavam negociando o Protocolo de Kyoto, o embaixador brasileiro Antônio Dayrell de Lima recorreu a ela para defender uma divisão mais equânime da fatura. “Chegamos ao jantar na hora do café e estão querendo que a gente divida a conta”, alegou. Como repartir os custos talvez seja a mais espinhosa questão com que lida a diplomacia do clima. A conta só fechará se todos contribuírem, mas ninguém quer sacar a carteira antes de ter certeza de que os outros também o farão. O impasse só faz postergar a ação.
O aquecimento que se verifica hoje é em grande parte devido ao efeito estufa provocado pelos gases lançados na atmosfera desde o século XIX pelos países que se industrializaram primeiro. Hoje, entre os grandes emissores estão também China, Índia e Brasil, atores de peso da economia global, mas cujos habitantes não têm o mesmo acesso à saúde, educação e bens de consumo dos países ricos.
Para entender a responsabilidade histórica de cada país sobre a mudança climática, é preciso levar em conta o grande tempo de permanência dos gases-estufa na atmosfera, conforme me explicou o engenheiro elétrico José Domingos Gonzalez Miguez, que desde os anos 90 representa o Brasil nas negociações diplomáticas sobre mudança do clima. “Vinte por cento do CO2 permanecem mais de 200 mil anos”, disse ele, enquanto tomava um café em Ipanema num sábado recente. “O que estamos sentindo agora é basicamente o efeito estufa de 100 anos atrás. O que estamos fazendo hoje vai comprometer o planeta daqui a 100 anos, em grande parte.”
Miguez comparou a situação da atmosfera à de uma estufa que, a cada ano, ganhasse uma nova película de vidro no teto. “A cada ano ela vai ficando mais grossa e retendo mais energia que deveria voltar para o espaço”, disse. O efeito combinado do acúmulo de gases-estufa e de energia na atmosfera é devastador: “É como se você estivesse aplicando juros compostos duas vezes na temperatura.”
Quando o IPCC lançou seu primeiro relatório de avaliação, em 1990, a mudança do clima ainda era um tema mais restrito à esfera ambiental e científica. A questão ganhou contorno político em 1992, quando as Nações Unidas criaram uma convenção sobre a mudança do clima, lançada na Eco-92, no Rio. Seus quase 200 signatários estabeleceram como objetivo estabilizar as emissões de gases-estufa para conter o aquecimento global.
A convenção reconheceu que os países tinham uma contribuição histórica distinta para o problema ao atribuir-lhes “responsabilidades comuns, mas diferenciadas” – uma expressão formulada pela diplomata brasileira Vera Pedrosa, que desemperrou as negociações que avançavam madrugada adentro. As nações desenvolvidas e os demais países foram divididos em dois grupos, e passaram a ter obrigações distintas diante da convenção. Pelo Protocolo de Kyoto, os países com maior responsabilidade histórica se comprometeram ali com metas discutidas caso a caso. Eram números modestos – para alguns países, um percentual de redução com um único dígito.
Dos grandes países industrializados, só os Estados Unidos não ratificaram o Protocolo de Kyoto, único tratado internacional assinado até hoje com metas de redução de gases-estufa. Os Estados Unidos chegaram a assiná-lo, mas uma resolução no Senado impedindo sua adoção foi aprovada por 95 votos a zero.
Barack Obama incluiu o aquecimento global na agenda de sua primeira campanha pela Casa Branca, em 2008. Mas só há três meses, em junho, no meio do segundo mandato, anunciou as primeiras ações de combate à mudança climática. O seu plano prevê aumentar a eficiência energética, ampliar a oferta de fontes renováveis de combustível e projetos para capturar CO2 da atmosfera.
No fim do ano passado, encerrou-se o primeiro período de compromisso do Protocolo de Kyoto. As estatísticas ainda não estão consolidadas, mas tudo indica que as metas assumidas foram cumpridas. De acordo com um relatório de 2011 da Convenção do Clima, os países que assumiram compromissos reduziram suas emissões em quase 6%, dentro do estipulado. O documento atribuiu o êxito à adoção de medidas de eficiência energética, fontes de energia renovável e combustíveis menos poluentes.
A República das Maldivas é um arquipélago formado por quase 1 200 atóis e ilhas no oceano Índico, a sudoeste da Índia. Em 2009, Mohamed Nasheed, então presidente do país, gravou um apelo em vídeo para uma campanha da ONU. Apareceu vestido de terno no mar, com a água pelo joelho e uma paisagem paradisíaca ao fundo. “Se não agirmos agora”, alertou, “minha nação vai submergir com o aumento do nível do mar.” O ponto mais alto do arquipélago fica a menos de 3 metros do nível médio do mar. Se as águas subirem o quanto preveem as estimativas do IPCC, parte da população será forçada a se mudar. O país criou um fundo financiado por recursos do turismo para comprar terras, na Índia ou na Austrália, que possam acolher refugiados do clima maldívios.
Nasheed foi um dos chefes de Estado que participaram em Copenhague da mais midiatizada das conferências sobre o clima. A expectativa era que a reunião definisse um tratado que sucederia o Protocolo de Kyoto. Seu resultado foi descrito como um fracasso em muitos relatos – o Acordo de Copenhague, negociado diretamente por estadistas no último dia da conferência, afirmou a necessidade de redução de emissões, mas não estabeleceu obrigações para ninguém.
Mesmo assim, a conferência significou um ponto de inflexão nas negociações do clima. Os dois maiores emissores mundiais de gases-estufa, China e Estados Unidos, sinalizaram que estavam dispostos a negociar um acordo climático com obrigações para todos. Mais do que isso, eles puseram na mesa metas voluntárias de redução de suas emissões até 2020, assim como Índia e Brasil. Outros países também ficaram de apresentar metas de redução voluntária até 2020. Os países europeus estiveram perto de abandonar o Protocolo de Kyoto, mas se comprometeram a mantê-lo durante o segundo período de compromisso, que começou este ano. Rússia, Canadá, Japão e Nova Zelândia já declararam que estão fora da segunda etapa.
O tratado que vai suceder o Protocolo de Kyoto deve entrar em vigor em 2020, dessa vez com obrigações formais de redução para todos os países. O documento será assinado em 2015, em Paris, mas os percentuais de redução talvez só sejam negociados mais adiante. O novo tratado vai ditar o papel que o carbono deve ocupar na matriz energética mundial, e será importante para reconfigurar a paisagem da economia global nas próximas décadas.
O documento será assinado dois governos antes daquele que terá que pôr em prática os compromissos assumidos. Um diplomata que integrou a delegação de negociadores brasileiros nas últimas conferências do clima assinalou a importância de uma política de Estado para o assunto. “Não podemos negociar esse acordo com base no Brasil de hoje”, disse ele. “Temos que saber que país vamos querer depois de 2020 para determinar o que incluir no documento.”
O tratado que sucederá o Protocolo de Kyoto deve levar em conta a meta de manter o aquecimento do planeta em até 2 graus acima dos níveis pré-industriais. Em 1997, quando o Protocolo de Kyoto estava sendo negociado, o Brasil propôs que cada país calculasse sua contribuição histórica para o aquecimento do planeta – seria uma forma de traduzir em números o princípio das “responsabilidades comuns, mas diferenciadas” de cada um deles. A proposta não foi acolhida, mas chamou a atenção de muitos negociadores. Uma versão aprimorada da ideia será apresentada à Convenção do Clima. O Brasil proporá o desenvolvimento de uma metodologia que permita apontar quais países foram responsáveis pelo aumento de 0,8ºC já consumado e embase a espinhosa discussão sobre quais países têm direito a aumentar o 1,2ºC que nos resta se quisermos cumprir a meta.
Em Copenhague, o Brasil se compromoteu a cortar de 36 a 39% das emissões que teria em 2020, caso não tomasse nenhuma medida de mitigação. O governo registrou a meta ambiciosa numa lei federal, em vigor desde 2009. Ao que tudo indica, o Brasil vai cumprir o objetivo, graças à expressiva redução do desmatamento na Amazônia, que era de quase 28 mil quilômetros quadrados em 2004 e passou para cerca de 4,6 mil no ano passado. Por outro lado, vem sujando sua matriz energética, com a disposição do governo de incluir termelétricas a carvão nos leilões de energia.
A derrubada da floresta era a principal fonte das emissões brasileiras de gases-estufa – respondia por 61% do bolo, conforme um inventário com dados até 2005. Essa já não é mais a principal fonte de emissões do país, como mostrou a atualização do inventário, com dados até 2010, apresentada em junho. O Brasil deixou de emitir o equivalente a quase 800 milhões de toneladas de CO2 – volume que a Alemanha declarou ter emitido em 2011. Ninguém reduziu mais suas emissões que o Brasil – um país que não tinha a obrigação de fazê-lo. O setor agropecuário, com 35%, passou a ser o que mais emite, pouco à frente do setor de energia, com 32%. As emissões por desmatamento agora representam apenas 22% do total.
Em agosto, perguntei ao biólogo Carlos Augusto Klink, secretário de Mudanças Climáticas e Qualidade Ambiental do Ministério do Meio Ambiente, como seria possível reduzir as emissões nos setores produtivos da economia. Ele citou um plano para tornar as indústrias mais eficientes no uso de energia, materiais e processos. Na agricultura, destacou as reduções motivadas pelo cultivo em áreas degradadas e pela adoção de tecnologias como a integração lavoura–pecuária. Na mesma tarde, conversei também com o meteorologista Carlos Nobre, secretário do Ministério da Ciência. Ele disse que, nas próximas décadas, a agricultura brasileira poderia praticamente neutralizar suas emissões com inovações. E lembrou que já é possível ver reflexos do ganho de eficiência: “As emissões do setor cresceram pouco mais de 5% em cinco anos, mas o produto agrícola aumentou 26%”, afirmou.
Em 2007, os cientistas do IPCC deram um recado eloquente aos tomadores de decisão, mas a resposta não foi à altura da gravidade das constatações. Perguntei a Jean-Pascal van Ypersele, vice-presidente do IPCC, se uma mensagem mais forte no Quinto Relatório poderia ser mais eficaz para desencadear ação por parte dos governantes. Ele lembrou que o IPCC não recomenda ações específicas e que tem de ser relevante para os governos sem ser prescritivo. “A formulação das políticas deveria ser baseada numa plataforma científica, e vamos oferecer a mais robusta disponível”, disse o pesquisador belga. “Só podemos esperar que ela vá ser usada.”