A disputa entre liberais e nacional-desenvolvimentistas foi comum aos governos tucano e petista, dividindo as equipes de FHC e de Lula ILUSTRAÇÃO: ROBERTO NEGREIROS_2017
De crise em crise
Uma proposta para superar os impasses do nacional-desenvolvimentismo
Marcos Lisboa | Edição 133, Outubro 2017
Não foram poucos os pontos de convergência e concordância que Fernando Haddad e eu descobrimos no debate que travamos nas páginas desta revista sobre os governos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. O texto original de Haddad, em que relata a sua experiência à frente da gestão municipal em São Paulo, “Vivi na pele o que aprendi nos livros”, apareceu na edição de junho da piauí. Foi seguido de um comentário meu em agosto, “Outra história”.
Na sua intervenção mais recente, “(Des)ilusões liberais”, publicada no mês passado, Haddad concordou comigo que não houve ruptura na política econômica entre o segundo mandato de FHC e o primeiro de Lula – afinal foram mantidos o equilíbrio das contas públicas, o câmbio flutuante e o modelo de metas de inflação, políticas tradicionalmente identificadas como liberais ou conservadoras. Também estamos de acordo que o principal programa social do governo Lula, o Bolsa Família, é de “cepa liberal”, como afirma Haddad. Não restam ilusões quanto a isso, pelo menos para uma das principais lideranças do PT.
Fernando Haddad, em contrapartida, comentou que houve diferenças na condução da política econômica entre o primeiro e o segundo mandatos de Fernando Henrique, destacando o crescimento dos gastos públicos bem acima da arrecadação entre 1995 e 1998. Mais uma vez, concordamos.
Restam, entretanto, alguns pontos de desacordo entre nós. Talvez o mais importante deles diga respeito à viabilidade e à eficácia da agenda nacional-desenvolvimentista, algo que a meu ver contamina há décadas o debate sobre a política pública no país – e que mais uma vez apareceu nos argumentos de Haddad, em seu último artigo.
Naquela que me parece a ideia principal de seu texto, o ex-prefeito defende as escolhas de Lula em seu segundo mandato – escolhas que a meu ver contribuíram para a crise econômica em que mergulhamos e da qual só agora, lentamente, começamos a sair –, argumentando que uma política econômica bem-sucedida deve necessariamente ser maleável, adotando diferentes receituários diante das situações específicas de cada momento.
Haddad afirma que a crise por que o mundo passava em 2008 justificava o conjunto de medidas adotadas no segundo governo Lula; medidas essas que refletiriam uma abordagem para o desenvolvimento do país distinta da adotada até então pelo governo Fernando Henrique e pelo próprio Lula em seu primeiro mandato.
Estou de acordo com Haddad que a política econômica deve ser ajustada às especificidades de cada momento, a partir de diagnósticos tão precisos quanto possível, de modo a reduzir a possibilidade de problemas inesperados e a garantir um maior crescimento econômico com inclusão social. A questão, entretanto, é que não é isso que tem acontecido na gestão da economia brasileira nas últimas décadas. Ao contrário, o que temos observado é uma mesma história que sempre se repete, e decisões que se alternam com a mesma regularidade com que temos passado de momentos de crise para outros de relativa bonança.
Desde o começo da década de 90, a cada vez que atravessamos momentos de crise decorrente do descontrole dos gastos públicos (inflação ou dívida pública que ameaçam fugir do controle) acabamos por adotar difíceis medidas de ajuste para resolvermos os problemas. No entanto, mal controlamos a inflação ou percebemos algum alívio nas contas públicas, tomamos decisões que alimentam novas crises. Optamos por criar leis que garantem recursos para políticas públicas independentemente da arrecadação e da discussão anual do orçamento, além de adotarmos políticas protecionistas, intervenções setoriais e distribuição de crédito barato para os mesmos estamentos que há décadas são privilegiados pelo Estado brasileiro.
A recorrência dessas escolhas, adotadas e intensificadas no segundo mandato de Lula, é algo muito distante do “diálogo com a história” e da capacidade de fugir das receitas prontas diante dos diferentes cenários econômicos, que Haddad defende. É desse roteiro perverso, que repetimos de crise em crise, que precisamos escapar.
Diversas afirmações de Haddad em seus artigos publicados na piauí sugerem que nossas divergências se referem ao papel da intervenção do poder público para promover o crescimento econômico. Elas também refletem, a meu ver, o debate polarizado no Brasil atual, que contrapõe liberais a desenvolvimentistas. Os primeiros defenderiam a redução do papel do Estado, acreditando que os mercados resolveriam todos os problemas. Os segundos defenderiam que não há desenvolvimento econômico na ausência da intervenção pública.
Essa polarização pode agradar à política, mas termina por esconder a sutileza das divergências. Afinal, todos defendemos o desenvolvimento. A discordância se dá quanto à forma da intervenção pública, não sobre a sua relevância. O desenvolvimento dos mercados requer regras coletivas que delimitem como os contratos são realizados, assim como mecanismos para a resolução de conflitos. Além disso, a intervenção pública é essencial para a expansão de diversas atividades fundamentais, como em vários setores de infraestrutura, ou para a promoção da política social.
É longa a história dessa confusão ideológica, que opõe caricaturalmente liberais a desenvolvimentistas e termina por preservar um receituário econômico que muitas vezes favorece grupos privilegiados, em detrimento do crescimento econômico e da inclusão social.
Entre 1930 e 1990, estabeleceu-se no Brasil a crença dominante de que caberia ao poder público coordenar os investimentos privados por meio de medidas de proteção contra a concorrência externa, por meio da distribuição de subsídios e da intervenção discricionária do Estado, selecionando empresas e setores a serem privilegiados. Essa agenda, denominada de nacional-desenvolvimentista, resultou na impressionante expansão da intervenção pública na economia naquele período e teve como contrapartida o desequilíbrio das contas públicas. A ênfase concedida à industrialização do país não foi acompanhada por uma atenção equivalente à política social, incluindo educação e saúde.
O fracasso do nacional-desenvolvimentismo contribuiu para a severa crise dos anos 80. A disseminação de benefícios concedidos pelo poder público ao setor privado resultou na inflação elevada e crescente, que chegou a 90% ao mês no começo da década seguinte.
As medidas protecionistas permitiam a sobrevivência de empresas ineficientes, prejudicando a produtividade e o crescimento econômico. A obrigação de comprar insumos e bens de capital nacionais, muitas vezes de pior qualidade ou mais caros do que os produzidos em outros países, fazia com que vários setores econômicos ficassem defasados em relação ao que se praticava de mais moderno no resto do mundo. As empresas estatais, da telefonia à mineração, contribuíam para a baixa produtividade no Brasil e para que tivéssemos um acesso deficiente a serviços que em outros países já eram comezinhos. Perdíamos o rumo do desenvolvimento em meio a uma severa crise e aos mais altos patamares de desigualdade da nossa história.
Essa longa crise terminou por impor a adoção de uma série de reformas. A partir do final dos anos 80 começaram a ser reduzidas as barreiras ao comércio exterior, e diversas empresas estatais foram privatizadas na década seguinte. Houve um notável ajuste das contas públicas, e o Plano Real finalmente estabilizou a economia e reduziu a inflação, que prejudica sobretudo os mais pobres. Ocorreram também ganhos de produtividade em diversos setores, como nos serviços de telefonia. O Brasil começava a avançar na direção de uma agenda diferente.
Essa outra agenda, que tenho denominado social-democrata, se caracteriza pela adoção de uma política econômica que preserva a estabilidade da economia por meio dos instrumentos convencionais; pela reduzida intervenção nos mercados, com regras comuns aos diversos setores; pela abertura à concorrência; e pelo fortalecimento das agências de Estado, a fim de viabilizar políticas de longo prazo, como o investimento em infraestrutura. Por fim, essa agenda enfatiza o papel do setor público em promover serviços universais, como saúde e educação, além de cuidar dos grupos mais vulneráveis.
O avanço do país nessa direção, contudo, foi bastante sinuoso, e parece ter decorrido muito mais da reação às crises econômicas do que de um projeto de reforma do Estado e de regras para a intervenção pública. Assim, não deve surpreender que uma vez superadas as crises, com a volta de um melhor momento econômico, fossem resgatadas políticas típicas do nacional-desenvolvimentismo. Os resultados desses resgates, porém, foram retrocessos: algo que ocorreu no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, como bem aponta Haddad, e na crise significativamente mais severa do governo Dilma.
Não foi assim em outros países, como na Inglaterra do final dos anos 70, na Austrália na década seguinte, ou na América Latina do Pacífico, nos últimos vinte anos. Nesses casos, o debate público sobre o fracasso das políticas nacional-desenvolvimentistas resultou numa clara agenda liberal e social-democrata, e em profundas alterações na política pública.
No Brasil, porém, essa agenda estava longe de ser consensual. Diversos economistas vinculados ao PT profetizavam que o Plano Real iria fracassar, por exemplo. Não demorou para que também tivéssemos que testemunhar aguerridas manifestações contrárias às privatizações.
As divergências, de resto, não estavam restritas aos partidos de oposição. Dentro do próprio governo FHC foram frequentes as críticas à agenda social-democrata, tal como proposta pelo Ministério da Fazenda, por parte de ministros que defendiam a volta dos instrumentos típicos dos anos 70.
Essas críticas refletiam uma divisão que ia além da política. Diversas lideranças do setor produtivo eram contrárias à abertura comercial e apoiavam a retomada das políticas de estímulo às empresas, por meio da concessão de benefícios diferenciados a esse ou aquele setor, resgatando as políticas do nacional-desenvolvimentismo. Na contramão da distribuição de privilégios, a agenda social-democrata defendia que as regras deveriam ser iguais para os diversos setores – daí porque eu a denomine, frequentemente, de agenda republicana.[1]
Por refletir interesses arraigados na sociedade, o debate entre sociais-democratas e nacionais-desenvolvimentistas não serve para diferenciar os dois mandatos de FHC do primeiro de Lula. Ao contrário, a discussão era a mesma, e esse debate foi comum aos dois governos, dividindo as suas equipes.
Apesar das divergências, a agenda republicana avançou, com notáveis conquistas na política social. Graças à Constituição de 1988 e a diversas políticas adotadas na década seguinte, o ensino fundamental foi universalizado, assistimos à melhoria dos serviços de saúde, expandiu-se o acesso à Previdência, e foram criados programas de transferência de renda para as famílias mais pobres.
De maneira concomitante a esses avanços, a falta de consenso sobre a agenda de reformas resultou na adoção de diversas medidas herdeiras do Brasil velho, como a proteção à indústria automobilística, ao mesmo tempo que deterioravam as contas públicas, no primeiro governo FHC – deterioração que acabou resultando na crise de 1999.
A resposta à crise permitiu a retomada da agenda republicana. As dívidas estaduais foram renegociadas, elevou-se a carga tributária e a Lei de Responsabilidade Fiscal foi aprovada, apesar da oposição do PT. O segundo governo FHC também adotou o câmbio flutuante, o regime de metas de inflação e o compromisso com o equilíbrio fiscal. Foi a crise, insisto – muito mais do que qualquer consenso sobre a necessidade de uma nova agenda para a intervenção pública –, que motivou essas reformas.
Feito o ajuste, o Brasil velho prevaleceu no debate da eleição de 2002. As propostas econômicas dos principais candidatos, incluindo PT e PSDB, simplesmente ignoraram a agenda de reformas para estimular os ganhos de produtividade, a concorrência e a expansão do mercado privado de crédito. Da mesma forma, não foi debatido o tema da gestão pública e de como aperfeiçoar a eficácia dos programas sociais.
A crescente possibilidade de vitória de Lula trouxe um inegável otimismo a diversos grupos da sociedade brasileira, mas gerou também preocupação com a provável política econômica do novo governo. Afinal, poucos meses antes o XII Encontro Nacional do PT propunha a ruptura com a política econômica do segundo mandato de FHC e denunciava o acordo com o FMI, além de defender a retomada de medidas intervencionistas típicas do governo Geisel. O resultado foi a crise de 2002, com a dificuldade crescente do governo em obter novos empréstimos.
A reação do candidato petista foi ambígua. Sem renegar as tradicionais propostas econômicas do PT, Lula sinalizou, na Carta ao Povo Brasileiro, que talvez surpreendesse no seu governo. E foi exatamente isso o que ocorreu. Talvez pelo receio da crise que se agravava, em vez de seguir as propostas do XII Encontro Nacional do PT o novo presidente optou por reforçar a política econômica do segundo governo FHC. Continuidade em vez de ruptura.
O resultado foi o aprofundamento da agenda republicana, com a adoção de diversas reformas institucionais que buscavam permitir o melhor funcionamento dos mercados, como na concessão de crédito, no setor da construção civil e em muitas outras áreas.
Como tinha acontecido no período tucano, porém, essa agenda não foi isenta de oposição dentro do próprio governo. Foi o que se viu na reação ao Bolsa Família, com severas críticas vindas da esquerda, inclusive de ministros do próprio governo, como relatei no meu artigo anterior para a piauí. Permanecia, no governo Lula, a mesma tensão entre a agenda social-democrata e o resgate do nacional-desenvolvimentismo que caracterizou o governo FHC. As propostas de políticas de proteção à indústria nacional foram frequentes no primeiro Lula, na contramão da agenda conduzida pela equipe econômica.
Cabe ressaltar que houve também diálogo no primeiro mandato de Lula, dentro e fora do governo. A divergência, em alguns casos, foi menor do que se esperava, frequentemente mais de forma, ênfase e de detalhes, do que de conteúdo. Esse diálogo permitiu o avanço da agenda republicana no primeiro mandato.
Diversas reformas, naquele período, foram aprovadas graças ao apoio decisivo de políticos da oposição, como Tasso Jereissati, Arthur Virgílio e Agripino Maia, entre muitos outros. Assim ocorreu, por exemplo, com a reforma da Previdência, a do Judiciário, as medidas de crédito e o ProUni. Foi esse diálogo que permitiu preservar a política econômica e a agenda de reformas iniciada no segundo mandato de FHC.
Ao que tudo indicava, parecia possível alcançarmos uma espécie de aliança social-democrata, que incluiria inclusive políticos da oposição. Infelizmente, não foi o que aconteceu. O governo Lula fez uma opção diferente. A governabilidade não foi obtida com base em um programa comum com a social-democracia, mas sim pelo apoio dos interesses oportunistas, negociado em troca da divisão de cargos nas empresas estatais. O escândalo do mensalão levou à ruptura definitiva com o PSDB e o DEM, ao mesmo tempo que reforçou a aliança do pt com pequenos partidos e grupos selecionados do PMDB.
Há, aqui, uma história que ainda precisa ser contada pelos seus protagonistas. Por que o primeiro governo Lula não negociou uma aliança com o que havia de social-democrata na política brasileira? Por que preferiu optar pelo que havia de mais patrimonialista nos interesses representados em Brasília?
Haddad não contesta a continuidade dessa agenda de progressivos avanços ao longo dos governos FHC e do primeiro Lula. Suas principais discordâncias em relação a mim residem na avaliação dos resultados obtidos em ambos os governos – segundo ele, muito melhores sob Lula. Ele afirma em seu texto que foi a capacidade do mandatário petista de escapar aos “manuais” e de dialogar com a história que teria permitido obter esse desempenho supostamente superior. Quanto a isso, nossas discordâncias são imensas.
Ao comparar os dois períodos – o de FHC e o de Lula – Haddad desconsidera as circunstâncias e o tempo de maturação das políticas públicas. Os bons resultados de Lula devem muito ao que foi feito antes, sob FGC. Da mesma forma, o desastre econômico sob Dilma começou a ser semeado já no segundo mandato de seu antecessor.
Vejamos. Haddad e eu concordamos que a maior parte da redução da pobreza ocorreu no governo Lula, ainda que iniciada no fim do segundo mandato de FHC. A evidência disponível indica que essa queda decorreu do desempenho do mercado de trabalho e dos reajustes do salário mínimo, resultado das políticas iniciadas nos anos 90 e preservadas pelo primeiro Lula, em meio a um cenário externo favorável. A propósito, a queda da pobreza e da desigualdade ocorreu em muitos países emergentes, inclusive da América Latina, nesse mesmo período. A expansão do comércio mundial parece ter sido muito mais relevante para esse resultado do que as políticas adotadas no Brasil.
Na década de 2000, o país colheu os frutos de uma longa travessia, iniciada nos anos 90, com a estabilização da economia, as privatizações e a melhoria do ambiente de negócios. Foram conquistas de um país, não de um governo em particular. Não há qualquer evidência de que o melhor desempenho do mercado de trabalho nos anos 2000 tenha decorrido de alguma nova política adotada por Lula, ou de qualquer ruptura com a agenda de reformas que entrava na sua segunda década.
Mesmo os aumentos recorrentes do salário mínimo já haviam sido iniciados no governo de Fernando Henrique. Em cada um dos quatro mandatos de FHC e Lula, o salário mínimo subiu pouco mais de 20% acima da inflação. Os testes estatísticos que conheço não indicam quebra estrutural na política de reajustes salariais, seja no primeiro mandato de Lula, seja no segundo.
Haddad compara resultados específicos em cada período para tentar demonstrar que o governo Lula foi superior ao de FHC. Esse debate parece mais afeito a disputas comezinhas do que à análise dos desafios para a política pública. Afinal, se havia uma agenda de reformas bem-sucedida, apesar dos eventuais retrocessos, era de se esperar que cada governo adicionasse de forma crescente benefícios ao conquistado anteriormente.
Mas, se comparar resultados é relevante para Haddad, então é preciso dizer que provavelmente não houve benefício maior do que a estabilização da economia em 1994, com a superação de mais de uma década de grave crise. Não há dúvidas de que FHC promoveu imensos avanços na política social, em seu primeiro mandato, mas errou no controle das contas públicas. No segundo mandato FHC fez o ajuste fiscal, mas fracassou em avançar no investimento em infraestrutura.
O primeiro Lula, por sua vez, aperfeiçoou a política macroeconômica e social e avançou nas reformas institucionais, ao mesmo tempo que promoveu retrocessos nos setores regulados, enfraquecendo as agências públicas. Além disso, como comentei em artigo recente na Folha de S.Paulo, a retórica do governo Lula em relação à agenda social foi distinta da adotada no governo FHC, e pode ter colaborado para uma maior eficácia nas ações de inclusão, em meio ao aperfeiçoamento das políticas de transferência de renda.
Na comparação entre os governos FHC e Lula, Haddad se esquece de controlar pelas circunstâncias. O cenário externo era bem mais favorável nos anos 2000 do que nos anos 90. A estatística permite analisar os resultados obtidos pelos diversos governos em comparação com o desempenho dos demais países emergentes no mesmo período.
João Manoel Pinho de Melo, Vinícius Carrasco e Isabela Duarte documentaram que o desempenho do Brasil foi pior, no governo Lula, do que o de outros países semelhantes ao nosso naquele mesmo período, para um impressionante conjunto de indicadores. Por outro lado, a renda por habitante durante o governo FHC avançou de maneira similar ao observado naqueles países, como revelam os mesmos autores em outro trabalho.
O ex-prefeito de São Paulo, em seu artigo, também procurou destacar os resultados da política educacional do governo Lula.
Quando se considera todo o período entre 1994 e 2010, houve inegáveis avanços na educação, como a universalização do ensino fundamental e o acesso aos indicadores de aprendizagem dos alunos, processo iniciado por Paulo Renato Souza, ministro de FHC. No começo do governo Lula, contudo, assistiu-se ao retrocesso de muitos avanços introduzidos por FHC, como a interrupção do Provão. Esses retrocessos foram revertidos por Fernando Haddad quando esteve à frente do Ministério da Educação. Ele resgatou a agenda iniciada por Paulo Renato e ainda teve o mérito de criar o ProUni.
Houve também, é verdade, um impressionante aumento de gasto com a educação nos mandatos petistas – que, no entanto, se revelou ineficaz. No começo dos anos 2000, esse dispêndio equivalia a 4% do PIB, e hoje representa cerca de 6%. Entre 2009 e 2014, os gastos do Ministério da Educação aumentaram 70% acima da inflação. Parte do incremento de gastos da pasta foi consumida pelos 80 mil novos funcionários contratados pelo ministério nesse mesmo período. O aumento do dispêndio com funcionários, que cresceu mais de 50% acima da inflação entre 2009 e 2014, acabou por comprimir os demais gastos, em investimento e custeio, da pasta.
Apesar desse expressivo aumento de recursos, não houve melhora relevante dos indicadores de aprendizado. O que eles revelam é uma incômoda estagnação, que contrasta com os avanços educacionais de outros países emergentes, alcançados mesmo sem aumentos tão significativos de gastos. Resta-nos o imenso desafio de melhorar a qualidade da gestão educacional no Brasil.
Mas o que dizer do grande momento que Haddad defende e elogia, o da reação do governo Lula à crise de 2008? É verdade que naquele período diversos países adotaram políticas anticíclicas. Nada a obstar. Minha discordância é de outra ordem. A meu ver, o problema foi que o governo confundiu medidas temporárias, necessárias para enfrentar a recessão, com intervenções setoriais de longo prazo. Esse erro não foi cometido pelos demais países emergentes que passaram a crescer bem mais do que o Brasil depois de 2011.
O que aconteceu, na verdade, foi uma retomada de parte das teses defendidas pelo PT no encontro nacional do partido em 2001, e que haviam sido deixadas de lado por Lula no primeiro mandato. O segundo governo Lula apostou no resgate do monopólio da Petrobras, no desenvolvimento da indústria naval, na expansão do crédito subsidiado e nas regras de conteúdo local. Em todos esses casos, a evidência é de fracasso das políticas implementadas, que resultaram em baixa produtividade, empresas em crise e baixo investimento. Diversos trabalhos acadêmicos apontam que a expansão do crédito concedido pelo BNDES para grandes empresas não teve como consequência o aumento do investimento, mas apenas a queda do custo de financiamento para as companhias beneficiadas e o aumento de lucros para os acionistas. As políticas de estímulo ao desenvolvimento e os investimentos públicos em diversas atividades, iniciados pelo segundo governo Lula e aprofundados por Dilma, tiveram como consequência graves prejuízos para o país. Será que Haddad ainda acredita que aquelas políticas poderiam ter resultado em um novo Vale do Silício?
Discordo ainda de Haddad no seu elogio à política externa do governo Lula. Enquanto outros países emergentes, como Chile, Colômbia e Peru, realizaram acordos comerciais com países desenvolvidos e assistiram ao crescimento do seu comércio externo, o Brasil optou por poucas parcerias, que se revelaram ineficazes. Nosso comércio externo não avançou, as políticas de proteção setorial adotadas a partir de 2009 fracassaram em desenvolver a produção local, claramente feriram acordos internacionais de que o Brasil é signatário e resultaram em diversos processos na Organização Mundial do Comércio em que devemos ser condenados.
O bom desempenho da economia no começo do governo Lula e a descoberta do pré-sal parecem ter sido a sua maldição. Como no primeiro mandato de FHC, os bons tempos permitiram a retomada das velhas práticas. A combinação de um país bem melhor do que uma década antes e um cenário externo mais favorável resultou, uma vez mais, na retomada do nacional-desenvolvimentismo, dominado por alianças que fortaleceram o patrimonialismo e que serviram como abre-alas do fracasso monumental do governo Dilma. A mesma velha história se repetia.
Concordo com Haddad que não se deve confundir patrimonialismo com medidas de estímulo ao desenvolvimento. Entretanto, o resultado das políticas iniciadas pelo segundo governo Lula, aprofundadas com a competência peculiar do governo Dilma, foi apenas mais patrimonialismo, e não maior desenvolvimento.
A agenda social-democrata não excluiu políticas de desenvolvimento da produção local. A diferença, porém, está nas escolhas das alianças políticas assim como no desenho técnico das medidas. Como tenho destacado, há exemplos dessas políticas que resultaram em aumento da produtividade e da geração de renda, como no caso da agricultura nos anos 70.
A economia não se reduz à ideologia. Há a política e os interesses, certamente, mas também existe a técnica e a análise da evidência. O resgate do Estado patrimonialista e a incompetência iniciada no segundo mandato de Lula, em meio a práticas pouco republicanas, resultaram na grave crise que o país atravessou – crise que só agora parece dar sinais de começar a ser revertida.
Haddad e eu podemos concordar sobre os objetivos da política pública, mas discordamos quanto aos meios mais adequados para atingi-los. Por exemplo, a evidência que conheço indica que a reforma trabalhista aprovada pelo Congresso deve beneficiar a produção e a geração de empregos. Da mesma forma, uma maior abertura comercial deve estimular o aumento da produtividade e da renda. Trata-se de uma discordância sobre os meios mais eficazes para promover o desenvolvimento e a inclusão social, que deveria ser debatida com base na evidência, e não de uma divergência sobre os interesses a serem protegidos.
Em meio às eventuais discordâncias, talvez seja possível superar a intolerância decorrente das cicatrizes dos embates partidários recentes e concordar sobre princípios comuns. Afinal, os desafios são imensos. O gasto público crescente, decorrente de diversas regras existentes, inviabiliza políticas públicas essenciais, como em ciência e tecnologia. A continuar essa trajetória, o resultado será a volta da inflação elevada, talvez já em 2019.
A agenda de reforma do Estado passa por rever regras e benefícios a fim de proteger os grupos mais vulneráveis da sociedade, bem como garantir igualdade de oportunidades para as novas gerações. Devemos rever os instrumentos de gestão e os critérios de avaliação de políticas públicas, de modo a melhorar a qualidade e a eficácia das intervenções governamentais.
Essa agenda passa por simplificar o regime tributário, tratando igualmente os iguais, com regras simples, comuns a todos os setores produtivos, além de rever as distorções que prejudicam o comércio externo e dificultam o investimento em infraestrutura. A mudança das regras de intervenção pública deve ter como objetivo a retomada do crescimento econômico com inclusão social, impedindo a repetição das escolhas desastrosas da última década.
Não se trata de uma agenda fácil. Para implementá-la, é preciso enfrentar dilemas e fazer escolhas. No começo do primeiro governo Lula, quase conseguimos estabelecer uma ampla aliança social-democrata. Será possível tentar novamente e resgatar a oportunidade perdida?
[1] Essa agenda não exclui eventuais políticas setoriais, como subsídio para algumas atividades ou novas tecnologias. Mas essas intervenções devem ser realizadas com parcimônia e apenas em casos específicos, embasadas por evidências sobre o potencial desenvolvimento competitivo dessas atividades produtivas, que não se desenvolvem por alguma falha de mercado.
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