O grupo de Luiz Davidovich explora com criatividade o potencial de métodos de pesquisa difundidos. "Tendo a técnica que os outros têm, o desafio é ter a ideia que eles não tiveram." FOTO: ROGÉRIO REIS
Irmãos Corsos no Fundão
Luiz Davidovich descobriu como fazer ciência de ponta com baixo custo
Bernardo Esteves | Edição 61, Outubro 2011
Nos arredores de Pequim, nas proximidades da Grande Muralha, um grupo de físicos da Universidade de Ciência e Tecnologia da China se preparava para iniciar o experimento. Outra equipe estava de prontidão a 16 quilômetros dali, numa cidade chamada Huailai. Para percorrer a distância entre os dois pontos, seria preciso pegar estradas e passar em meio a casas, fábricas, lojas e atravessar o lago Guanting. Em Badaling, próximo a Pequim, um pesquisador ligou um canhão de laser azul. Pelo celular, Jin Xian-Min recebeu pouco depois, de um colega em Huailai, a notícia de que a experiência dera certo: fora batido o recorde de distância de teletransporte.
Parecia mágica: objetos em Pequim ressurgiam a 16 quilômetros dali. Mas não quaisquer objetos. Os cientistas faziam o teletransporte de fótons, as micropartículas que constituem a luz. E não ocorria exatamente a transmissão de fótons de um lugar para outro. O que os cientistas fizeram foi criar em Huailai partículas com as mesmas características daquelas que estavam nas proximidades da capital chinesa. A informação sobre um fóton era transplantada de um lugar para outro.
Talvez seja um pouco cedo para evocar o senhor Spock se rematerializando na Enterprise depois de explorar um planeta distante, como fazem jornais e revistas quando noticiam avanços na área do teletransporte. A ciência ainda está longe de conseguir recriar, à distância, objetos maiores do que um fóton. Mas já é possível enxergar o dia em que será possível combinar a técnica com a criptografia, a trasmissão de dados em código. Seria impossível interceptar uma mensagem teletransportada – por isso governos, militares e grandes atores do comércio eletrônico estão de olho em pesquisas como a das universidades chinesas.
A técnica vem sendo feita em laboratório desde 1997, mas nunca por distâncias maiores que algumas centenas de metros. Com o sucesso da equipe chinesa, relatado no ano passado na revista Nature Photonics, a coisa começou a ficar séria – com 16 quilômetros, já é possível começar a pensar num canal de comunicação entre uma base na Terra e um satélite girando em órbita baixa.
O teletransporte se tornou possível devido ao desenvolvimento, nas últimas décadas, de equipamentos capazes de capturar e manipular componentes da luz e da matéria. Esses avanços permitiram testar fundamentos da mecânica quântica – ramo da física que estuda o comportamento de objetos muito pequenos, como os átomos e as partículas que os constituem. Na base do estudo, está a interação de átomos e fótons, que são partículas de pura energia, sem massa ou tamanho, que se locomovem à velocidade da luz – afinal, são a própria luz.
Um dos nomes de referência da área é o carioca Luiz Davidovich, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde montou um grupo de pesquisa que atrai professores e estudantes de vários países. Aos 65 anos, ele ganhou o maior prêmio nacional de ciência – o Almirante Álvaro Alberto – e é um dos oito brasileiros admitidos na Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos. É sempre convidado a dar palestras em congressos internacionais e a pesquisar em universidades estrangeiras. Em fevereiro, fez um seminário de um mês no Collège de France, em Paris, onde dividiu a agenda de conferências com o artista alemão Anselm Kiefer e o crítico literário francês Antoine Compagnon.
“Davidovich fez contribuições de relevância mundial em sua área de pesquisa”, disse de Paris, pelo telefone, Claude Cohen-Tannoudji, pesquisador da École Normale Supérieure e ganhador do Nobel de Física de 1997. “Ele é um ótimo físico, tem um senso do diálogo pronunciado e é muito agradável trabalhar e discutir com ele.”
No romance Os Irmãos Corsos, de 1844, Alexandre Dumas contou a história de dois gêmeos que, separados pela vida, permanecem unidos por uma ligação misteriosa, de teor telepático. A dor que um deles sente na Córsega é experimentada pelo outro no continente. Na física quântica, ocorrem fenômenos semelhantes, que desafiam o bom-senso. Ao ser disparado contra um cristal, um feixe de laser pode gerar pares de partículas que os físicos chamam de fótons gêmeos, ou emaranhados. Nesse estado, continuam a se comportar como se fossem um objeto único, mesmo depois de se separarem. Qualquer ação sofrida por um deles se reflete no estado do outro, ainda que estejam distantes milhares de quilômetros. É difícil fugir à esfera do sobrenatural quando se imagina tal emaranhamento no plano macroscópico. O próprio Einstein, quando vislumbrou o fenômeno num trabalho teórico, chamou-o de “ação fantasmagórica a distância”.
Nas proximidades de Pequim, os pesquisadores chineses fizeram algo semelhante. Geraram um par de fótons gêmeos e enviaram um deles pelo ar até a outra estação de pesquisa. Ao intervir sobre o fóton que permanecera junto a eles, conseguiram modificar o estado de sua partícula-espelho, a sua irmã corsa, a 16 quilômetros dali.
Luiz Davidovich foi coautor, nos anos 90, da primeira proposta de teletransporte em laboratório. Ele se animou ao ler um artigo de 1993 mostrando que o procedimento era possível em teoria. O físico imaginou como o experimento poderia ser feito com os equipamentos da École Normale Supérieure, onde realizava trabalhos com a equipe do francês Serge Haroche. A proposta de Davidovich, e do grupo que trabalhou com ele em Paris, acabou não saindo do papel. Fazer o teletransporte com fótons – e não com átomos, como propunha a equipe franco-brasileira – exigia um aparato bem mais simples e foi a estratégia adotada nos primeiros experimentos do tipo.
Na sala de seu apartamento no Jardim Botânico, Davidovich evocou o mês que passou em Paris, no início de 1994, bolando o experimento. “Parecíamos jovens adolescentes, trabalhando desde a manhã até tarde da noite”, disse. “Não era óbvio como aquilo teria que ser feito, envolvia muitos cálculos. Mas acabamos conseguindo encontrar uma solução.” E descreveu o processo com um adjetivo que aparece sempre que fala de grandes desafios teóricos: “Foi muito divertido.”
A primeira impressão de quem entra na sala principal do Laboratório de Óptica Quântica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na ilha do Fundão, é de aperto. É um cômodo de não mais de 15 metros quadrados, no centro do qual fica uma mesa grande onde estão espalhadas dezenas de dispositivos. O espaço para os cientistas se moverem é exíguo. “Quem entra para o grupo de pesquisa tem que se comprometer a não engordar”, brincou Davidovich, espremendo-se para passar entre a mesa e a parede.
A chamada mesa óptica é o palco em que são montados os experimentos. É coberta por um tampo metálico, no qual repousam espelhos, espectrômetros, medidores de potência e outros instrumentos. A mesa é compacta e pesa cerca de 1 tonelada. Um compressor injeta ar em seus quatro pés cilíndricos, de forma a isolá-la das vibrações do solo – imperceptíveis para os humanoides, mas suficientes para arruinar a investigação de ocorrências na escala quântica. Cada procedimento é feito com um arranjo diferente das peças sobre a mesa. A realização de cada experimento pode tomar vários meses, da concepção do trabalho à análise dos dados.
Uma peça grande repousa num dos cantos da mesa. É um canhão de laser ultravioleta, de longe o item mais valioso do arranjo, avaliado em cerca de 200 mil dólares. “Na configuração atual, essa mesa deve ter equipamentos da ordem de 300 a 400 mil dólares”, arriscou Paulo Henrique Souto Ribeiro, o físico que chefia o laboratório – um mineiro magro e de cavanhaque, com 1,93 metro de altura, a quem os colegas só tratam por Paulão.
Num monitor de tela plana, colocado acima da mesa óptica, roda um software cuja aparência lembra as primeiras versões do Windows. Um dos mostradores coloridos, na porção superior da tela, registra o número 161 em algarismos vermelhos – ele indica o número de pares de fótons gêmeos sendo detectados por segundo no experimento em curso. Nos detectores espalhados pela mesa, um pulso é emitido a cada vez que a presença de um fóton é acusada. A cifra que se lê em vermelho corresponde ao número de partículas registradas simultaneamente – um forte indício de emaranhamento.
A técnica escolhida pelo grupo para obter fótons gêmeos permite abordar questões centrais de óptica quântica. Ela é adotada há mais de vinte anos, mas está longe de ter suas possibilidades esgotadas. Explorar com criatividade o potencial desse método é um dos fatores do sucesso do grupo de Davidovich. “Tendo a técnica que os outros têm, o desafio é ter a ideia que eles não tiveram”, resumiu ele.
Por outro lado, o Laboratório de Óptica Quântica não tem equipamentos capazes de fazer experimentos de teletransporte. Tampouco dispõe da tecnologia dos laboratórios da École Normale Supérieure – um conjunto de cavidades formadas pelos espelhos mais lisos e perfeitos já produzidos pelo engenho humano, capazes de manipular átomos e fótons individualmente.
As limitações técnicas restringem as questões que o grupo pode abordar. “Trabalhamos de forma diferente da dinâmica experimental dos países ricos”, comparou Paulo Henrique Souto Ribeiro. “Lá fora você escolhe o problema que quer estudar, vê que equipamento precisa, compra e faz. Aqui você decide que problema pode estudar em função do equipamento que tem.”
Luiz Davidovich parecia pouco à vontade no laboratório. Aquele não é seu hábitat natural: ele é um físico teórico, embora costume trabalhar junto com os colegas dedicados a experiências. Seu ofício consiste em ter boas ideias e analisar sua viabilidade com cálculos complicados – a matemática que fundamenta a mecânica quântica não é propriamente trivial. Muitas vezes, bastam-lhe caneta e papel, ou um quadro-negro, para rabiscar ideias e esquemas. Ele sente-se mais confortável com operações lógicas e abstrações conceituais do que com experimentos e medições.
A convicção de que não foi talhado para coisas práticas veio cedo. Ainda no ensino fundamental, pediu ao pai para fazer um curso de rádio e televisão por correspondência, que viu anunciado numa revista. Ele é filho único de um engenheiro sanitarista e uma geógrafa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Teve o pedido atendido e concluiu o curso. Com o diploma na mão, tratou de pôr em prática sua nova habilidade, consertando o rádio de um amigo e do porteiro do prédio. Fracassou e desistiu.
Foi levado à óptica quântica por Moysés Nussenzveig, seu orientador de doutorado na Universidade de Rochester, no estado de Nova York. O paulistano Nussenzveighavia se mudado para os Estados Unidos no início da década de 60, em busca de melhores condições de trabalho, e ficou lá quando os militares tomaram o poder. É dele um dos primeiros livros dedicados ao tema – Introduction to Quantum Optics, publicado em 1973 e nunca traduzido para o português.
No início de 1969, ele acolheu Davidovich nos Estados Unidos. O jovem fora expulso da Pontifícia Universidade Católica do Rio, onde começava o mestrado em física, devido ao envolvimento com política estudantil. “Luiz foi como nosso filho adotivo”, contou Nussenzveig ao lado da mulher, a química Micheline, no apartamento deles em Copacabana, onde mostraram fotos e contaram casos do período vivido em Rochester.
De volta ao Brasil, no fim dos anos 70, Nussenzveig difundiu a óptica quântica no país e estimulou a criação de grupos de pesquisa. Tornou-se colega do antigo aluno ao ser contratado pela PUC do Rio, então uma das universidades brasileiras mais fortes na área de física. O caminho de ambos na ciência se separou em 1996, quando Nussenzveig passou a pesquisar a física por trás de fenômenos biológicos e Davidovich assumiu a liderança do grupo de óptica quântica da UFRJ.
Nas primeiras décadas do século XX, uma série de jovens físicos constatou que, na escala do infinitamente pequeno, as leis da física que governam o mundo macroscópico deixavam de valer. As equações conhecidas simplesmente não descreviam o comportamento de átomos e moléculas. Os cientistas se viram às voltas com partículas cuja posição era impossível determinar com precisão, átomos que estavam em dois estados ao mesmo tempo e feixes de luz capazes de percorrer simultaneamente trajetos distintos. Os jovens físicos abriram uma caixa de Pandora que implodiu o sonho determinista da ciência moderna: na sua essência, a natureza é aleatória.
Nomes como Erwin Schrödinger, Werner Heisenberg e Paul Dirac desenvolveram, a partir dos anos 20, as leis matemáticas que fundamentam a mecânica quântica – leis, diga-se, totalmente contraintuitivas. “Quem não se chocar com essa teoria é porque não a entendeu”, disse Niels Bohr certa vez. Einstein foi um que se chocou: ele não se conformava com os postulados da mecânica quântica e não perdia uma ocasião de atacá-los. Acreditava na existência de uma realidade única e independente do ponto de vista humano, na contramão do que indicavam os pressupostos da nova física. Para ele, era incabível que a natureza só pudesse ser descrita em termos probabilísticos. “Nesse caso”, escreveu Einstein a um colega, “eu preferiria ser sapateiro, ou mesmo empregado de um cassino, a ser físico.”
Apesar da resistência, Einstein foi um dos pais da teoria quântica ao propor o conceito de fóton em 1905 – na sua avaliação, a única ideia revolucionária que teve (foi por ela, e não pela teoria da relatividade, que ele foi contemplado com o Nobel, em 1921). Até então, os físicos dormiam convictos de que a luz se difundia na forma de ondas. A mecânica quântica mostrou que tanto os fótons quanto as partículas que constituem a matéria podem se comportar ora como corpúsculos, ora como ondas – depende do tipo de medição que se usar para sondá-los.
Einstein também foi coautor de um artigo, em 1935, que postulou a existência do emaranhamento. Paradoxalmente, o trabalho pretendia desafiar a mecânica quântica. Se ela estivesse certa, mostrava o artigo, teria como corolário a existência de objetos aparentemente absurdos, que poderiam modificar o estado de outro corpo, embora não tivessem uma conexão física entre eles. Para Einstein, essa monstruosidade teórica era um indício claro de que a mecânica quântica estava errada.
Ele morreu em 1955, convicto de que aquela teoria seria substituída por outra mais completa. Não pôde ver a demonstração experimental da “ação fantasmagórica à distância”, da qual tanto duvidava. Um experimento feito em 1982 mostrou que, no final das contas, o artigo de 1935 estava correto – e a mecânica quântica também. Os detratores da nova física tiveram que engolir o emaranhamento.
A teoria quântica foi posta à prova em laboratório dezenas de vezes desde sua formulação e saiu sem arranhões de todas elas. Sua maior ratificação, no entanto, veio das aplicações práticas a que ela deu origem. A mecânica quântica está por trás de inovações tecnológicas que mudaram o século XX. É o caso dos transistores, que estão na base dos computadores e outros aparelhos eletrônicos. Ou do laser, que tem incontáveis aplicações na medicina, na engenharia e na indústria. Segundo uma estimativa da revista Scientific American, as inovações derivadas da teoria eram responsáveis em 2001 por 30% do Produto Interno Bruto americano.
Já passava de duas da manhã, e ao fundo se ouvia o burburinho dos bailes que agitam os quartéis de bombeiros de Paris na noite de 14 de julho. A atmosfera ainda guardava alguma pólvora dos fogos de artifício queimados para comemorar a queda da Bastilha. A festa não abalava a concentração de um pequeno grupo de cientistas no laboratório Kastler Brossel, no prédio da École Normale Supérieure, não muito longe do Panthéon. Eles aguardavam a realização de uma experiência – a tentativa de fazer funcionar um tipo específico de laser no qual a emissão de luz deveria ser desencadeada por apenas dois fótons.
Era 1986 e Luiz Davidovich passava um ano sabático na École Normale Supérieure. Aquela era sua primeira colaboração com o grupo de Serge Haroche. Com 40 anos recém-completos, ele acabara de terminar seu primeiro casamento, no qual teve dois filhos. Tinha uma barba ruiva vistosa, que evidenciava a ascendência – seus avós foram judeus russos que vieram para o Brasil com a Revolução de Outubro.
Davidovich fizera a proposta teórica do dispositivo e calculara o tempo que levaria até a emissão do feixe de luz. Deu certo: o disparo aconteceu vinte segundos após o início do experimento, exatamente no instante previsto por ele. O brasileiro saiu dali fascinado com a possibilidade de fazer propostas teóricas e vê-las funcionar no laboratório.
Laboratório é um termo modesto para descrever o conjunto de instalações que ocupam dezenas de salas e se espalham por 3 mil metros quadrados da École Normale Supérieure, com um orçamento anual de 9 milhões de euros. Em diversas visitas a Paris, Davidovich concebeu experimentos que pudessem atacar problemas fundamentais da óptica quântica a partir do formidável conjunto a seu dispor no laboratório. “Luiz nos permitiu entender com mais profundidade o que fazíamos e nos deu ideias para novas experiências”, disse-me Serge Haroche. “Seus trabalhos teóricos tiveram uma contribuição importante para nossas pesquisas.”
A aproximação de físicos brasileiros ao grupo de Haroche foi fruto de um convênio de cooperação científica assinado em 1982, cuja costura envolveu Davidovich e Nussenzveig, do lado brasileiro, e Claude Cohen-Tannoudji, do lado francês. O acordo motivou a formação de grupos de óptica em diversas universidades brasileiras e criou um fluxo de mão dupla de professores e estudantes dos dois países.
A experiência também levou Davidovich a adotar no Brasil o modelo de pesquisa em que físicos teóricos e experimentais trabalham em parceria. Seu desejo começou a virar realidade na segunda metade dos anos 90, quando a equipe ganhou do governo federal financiamento de um programa para desenvolver núcleos de excelência em várias áreas nas universidades brasileiras. O grupo de óptica quântica da UFRJ pôde então ter um laboratório para chamar de seu. As instalações foram inauguradas em 1999 e no mesmo ano foram gerados ali os primeiros fótons gêmeos.
Stephen Walborn, um surfista americano com tatuagens pintadas sobre os músculos definidos, frequentava o mar do Leme no verão de 2006. Com a prancha debaixo do braço, e agitando os cabelos loiros, dificilmente se poderia supor que ele é um físico experimental de talento. Naquele verão, ele fez o seu pós-doutorado, supervisionado por Luiz Davidovich, no Laboratório de Óptica Quântica da UFRJ, no campus da ilha do Fundão.
Numa sexta-feira daquele mês de janeiro, Walborn se entusiasmou quando leu em seu computador a mensagem de um editor da revista inglesa Nature. O e-mail informava que havia sido aceito para publicação o artigo que ele submetera dois meses antes, em nome da equipe com a qual trabalhava. Em breve, os resultados do experimento concebido pelo grupo, e conduzido por ele, estariam nas páginas de um dos periódicos científicos mais renomados, conhecido pelo rigor dos seus pareceristas. A publicação era garantia de chamar a atenção da comunidade científica internacional, da imprensa nacional e talvez até da estrangeira.
Só na manhã da segunda-feira seguinte, ao encontrar Davidovich nos corredores do Instituto de Física, o americano conseguiu lhe dar a boa notícia. Quando soube que haviam emplacado o artigo, o supervisor do americano soltou um palavrão e cumprimentou o colega.
A publicação do artigo tinha um gosto especial para Davidovich. Ele já era um físico conhecido por colegas estrangeiros, sobretudo por causa de seus trabalhos com Serge Haroche. O estudo publicado na Nature, no entanto, consolidava o grupo que ele se esforçara em montar. Era como se tivesse sido promovido para a primeira divisão.
Ninguém conseguira fazer uma medição direta de partículas emaranhadas até então. Graças a um arranjo engenhoso, o grupo brasileiro conseguiu realizar um procedimento idealizado por colaboradores alemães. Em um experimento preparado ao longo de um mês, e com apenas dois dias de medições no laboratório – depois disso o laser queimou –, Stephen Walborn obteve uma medida direta do emaranhamento de dois fótons gêmeos.
No ano seguinte, o grupo teve outra contribuição para o entendimento desse fenômeno, publicada desta vez na revista americana Science – que forma, ao lado da Nature, a dobradinha de periódicos de maior prestígio entre os cientistas. O trabalho mostrou como o emaranhamento se perde à medida que os fótons gêmeos entram em contato com o ambiente. A “morte súbita” do emaranhamento, como foi apelidado o fenômeno, havia sido proposta em teoria, mas nunca demonstrada na prática.
“Foi um trabalho experimental muito relevante”, avaliou Davidovich. “Bolamos um sistema relativamente simples para demonstrar a morte súbita e funcionou direitinho.” O físico disse que a publicação nas revistas de ponta representou um novo patamar para o grupo. “Mostram que trabalhos experimentais concebidos e realizados no Brasil podem ter repercussão forte na área da física, e é importante para um grupo almejar ter esse padrão.”
Em 2007, Stephen Walborn foi nomeado professor de óptica quântica da UFRJ. Steve, como é chamado pelos colegas, recebeu-me em seu gabinete em janeiro com camiseta de surfista, bermuda e chinelos. Num português fluente e quase sem sotaque, falou sobre o significado daqueles trabalhos para o grupo: “Nosso laboratório começou com um investimento pequeno e foi crescendo. Quando publicamos na Nature, ficou a sensação de que tínhamos feito algo totalmente imprevisto. Quando publicamos na Science logo no ano seguinte, eu disse a mim mesmo: ‘Chegamos. Agora o grupo está no mapa.’”
Em maio de 2009, o grupo de Davidovich teve outro artigo aceito pela Science. Mais uma vez, o feito foi noticiado pelos jornais diários. E, novamente, foi saudado como um passo rumo ao computador quântico. Embora a equipe faça pesquisa básica, sem perspectiva de aplicações num horizonte próximo, o sonho distante de um computador experimental baseado na física quântica é sempre lembrado quando os feitos do grupo são anunciados na imprensa. A rotina já virou motivo de piada. “E aí, Luiz, você não tem um computador quântico para vender?”, costumam lhe perguntar alunos da universidade.
Os computadores quânticos são apontados como promissores e incontornáveis. Nos computadores convencionais, a informação é codificada na forma de bits, que podem assumir o valor 0 ou 1. Se cada bit for representado por um átomo, porém, as estranhas leis que governam o mundo quântico permitem que ele assuma ainda um terceiro valor – uma superposição de 1 e 0 ao mesmo tempo. Se um dia for possível construir um computador com bits quânticos, ele teria uma capacidade de processamento imensamente superior à das máquinas atuais.
Não é a busca pelos computadores quânticos que norteia a pesquisa de Davidovich. O físico é movido sobretudo pela curiosidade de entender a natureza. “Os jovens que formularam a mecânica quântica no início do século XX não tinham a ideia de fazer dispositivos práticos úteis para a sociedade”, disse. “Queriam resolver problemas extremamente desafiadores, e esse é um grande motor da ciência.”
O físico Sergio Machado Rezende estava diante de um quadro coberto por um pano vermelho, na Sala dos Conselhos do Ministério da Ciência e Tecnologia, em Brasília. Os assessores que o rodeavam aplaudiram quando ele puxou uma cordinha e descerrou com o gesto seu próprio retrato, que passava naquele momento a integrar a galeria de ex-ministros. Era a semana do Natal. Dentro de nove dias, o governo Dilma Rousseff se instalaria em Brasília, e o cargo que Rezende ocupava desde 2005 seria assumido por Aloizio Mercadante. Ao fim do evento, formou-se uma longa fila para cumprimentar o ministro. Enquanto aguardavam sua vez, vários deles abraçaram Luiz Davidovich, que esperava de pé, a alguns metros de Rezende.
O físico carioca encerrava um ano atípico, em que os trabalhos científicos acabaram ficando em segundo plano. Em 2010, foi mais fácil encontrá-lo no Aeroporto Santos Dumont do que na UFRJ. Davidovich praticamente se mudou para Brasília no primeiro semestre. Como coordenador da 4ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, acertou detalhes da programação, definiu nomes de convidados (4 mil participantes representando vários setores da sociedade) e organizou seis seminários preparatórios.
Numa conversa no seu gabinete, após a inauguração de seu retrato na Sala dos Conselhos, Sergio Rezende destacou a abordagem científica que Davidovich usou na condução dos trabalhos: “No meio de uma grande floresta, o cientista consegue identificar onde estão os principais problemas e buscar a solução com as ferramentas que tem, e foi assim que ele procedeu na coordenação da Conferência.”
Rezende é dos mais produtivos físicos brasileiros, com 214 artigos científicos publicados desde 1967. Assim como Gilberto Gil não deixou de fazer shows quando era ministro, ele tampouco abriu mão de publicar artigos científicos durante sua gestão. No ano passado, foram seis trabalhos na área de física da matéria condensada, sua especialidade, três dos quais assinados só por ele.
Com as pontas dos dedos enrugadas, Luiz Davidovich saiu do mar azul e morno da ilha de Boipeba, no litoral baiano. De volta à areia escaldante, retomou a leitura do livro que elegera para as férias – Solar, o último lançamento do inglês Ian McEwan. O romance narra a derrocada moral de Michael Beard, um físico que ganhara o Nobel na juventude e que havia muito se afastara da pesquisa teórica para viver às voltas com a burocracia de cargos administrativos. Davidovich não se empolgou com o livro, mas se impressionou com a pesquisa de McEwan, que cita trabalhos recentes bastante específicos da literatura especializada.
Há cinco anos Davidovich vai a Boipeba recarregar as baterias para o ano seguinte. É a ocasião em que ele se entrega com menos culpa à leitura de ficção. “Durante o ano letivo chego muito cansado em casa”, afirmou. “São aulas para preparar, provas e listas de exercícios para corrigir e as solicitações que chegam o tempo todo por e-mail, para elaborar pedidos de bolsas, dar parecer sobre artigos, avaliar projetos para agências financiadoras…”
Davidovich se queixa dos e-mails, mas é viciado em tecnologia. Tem modelos de última geração de celular, laptop e e-book. Na viagem para a Bahia, foi proibido pela mulher de levar o computador. Mas se virava para acessar o correio eletrônico clandestinamente, usando seu smartphone quando ela não estava por perto.
Mais de uma vez levou o amigo SergeHaroche e a mulher a Boipeba. “Graças ao Luiz, a ilha se tornou praticamente minha residência secundária”, brincou o francês. Para o Réveillon, Davidovich arrastou também o amigo Jacob Palis, pesquisador do Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada e presidente da Academia Brasileira de Ciências. Uma semana depois, Palis estava no seu gabinete do Impa num fim de tarde de sexta, enquanto terminava uma garrafa de um Cabernet Sauvignon argentino. Questionado sobre como apresentaria Davidovich a um colega estrangeiro, abriu um sorriso largo. “É o melhor físico brasileiro da sua geração”, disse.
Bruno Escher é um goiano de ar tímido e sotaque marcado. Foi aluno de doutorado de Luiz Davidovich. Numa sala ampla e sem janelas do Instituto de Física, o grupo de óptica quântica se reuniu na última sexta-feira antes do Natal para ouvi-lo. Escher vestia camiseta verde, bermuda cinza e chinelos pretos. Apresentava os resultados do trabalho de um grupo estrangeiro publicado na Nature semanas antes. Enquanto falava, circulavam entre a plateia batatas Pringles, panetone e sucos que ele trouxera.
Era o último encontro do ano. As reuniões de sexta garantem a integração do grupo de pesquisa. A cada semana, um estudante resume para os colegas quatro ou cinco artigos recentes, publicados em revistas relevantes. As apresentações são discutidas por professores e alunos, e é frequente que surjam dali ideias para novos trabalhos. As discussões podem ser exaltadas e assustar quem não conhece a dinâmica do grupo. Mas logo após a reunião todos almoçam juntos e volta a reinar a paz.
Bruno Escher mora em um apartamento lendário entre os alunos – uma república de físicos no 10º andar de um prédio no Flamengo. O lugar costumava sediar comemorações de defesas de tese e outras reuniões de alto teor etílico. “Houve festas titânicas ali”, recorda-se um aluno. O apartamento já viu dias mais animados. “Agora está um pouco mais parado”, reconhece Escher.
No início de janeiro, Escher estava apreensivo. Fazia exatos 100 dias que enviara à revista Nature Physics um artigo escrito por ele, Davidovich e pelo professor Ruynet de Matos Filho. Até ali, nenhum sinal de vida dos editores. Quando se mudou para o Rio para fazer doutorado, Escher – “um aluno brilhante”, segundo o orientador – recebeu de Davidovich a proposta de abordar um problema teórico. Em que medida os limites de precisão para a medição de parâmetros de um sistema quântico podem ser alcançados? Eis a questão que ele teve de atacar. O problema foi destrinchado em longas tardes de discussão na casa do orientador. Seguiram-se áridos cálculos matemáticos feitos por Escher. O grupo conseguiu afinal uma resposta satisfatória para a pergunta inicial, apresentada no artigo enviado à Nature Physics.
No apartamento do Flamengo, o telefone tocou numa manhã no fim de janeiro. Escher reconheceu a voz do orientador. “E aí, quando é que vamos abrir a nossa garrafa de champanhe?” O aluno reagiu alvoroçado: “Para com isso! Não brinca!” Luiz Davidovich não estava brincando: o artigo havia sido aceito. O trabalho foi publicado no fim de março, dois meses antes de Escher defender sua tese.