Até 1870, a língua geral, ou nheengatu, foi dominante no Amazonas ─ índios, mestiços, brancos, negros, todos a falavam. Apagou-se a língua e apagou-se também a memória da língua ILUSTRAÇÃO: CAIO BORGES_ESTÚDIOONZE_BASEADO EM THE GOSSIPS_NORMAN ROCKWELL_1948
O contrário da memória
Vida, morte e vida da língua geral
Branca Vianna | Edição 116, Maio 2016
São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, fica a 858 quilômetros da capital do estado – são quatro dias de barco ou duas horas e meia de bimotor. É uma das cidades mais ao norte do país, na divisa com Venezuela e Colômbia. É tão perto da fronteira – doze horas de barco, distância que em dimensões amazônicas equivale a um pulinho – que os rebeldes das Farc, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, descem o rio para fazer compras na cidade. Quando há um cessar-fogo entre governo e guerrilheiros, o comércio local, que já não é dos mais pujantes, sente o baque.
O município ganhou fama em 2002 por ter oficializado três línguas indígenas, além do português. Disso se depreende que deveria haver funcionários falantes de tukano, baniwa e nheengatu nas escolas e repartições públicas, no batalhão do Exército, nos hospitais, no Banco do Brasil, na casa lotérica que faz as vezes de agência da Caixa Econômica e no fórum de Justiça.
Muitos de seus habitantes não falam português, ou falam mal. São indígenas que vivem no interior e vão à cidade em busca de assistência médica ou benefícios como aposentadoria, Bolsa Família e auxílio-maternidade. A lei, no entanto, não pegou. Em todas as instituições públicas só se fala português. O nheengatu é ensinado como segunda língua em apenas duas escolas indígenas em bairros da periferia.
Nas ruas de São Gabriel é o contrário: uma algaravia de nheengatu, tukano, wanano, pira-tapuyo, kubeo, baniwa, kuripako, yanomâmi, hupda, dow. Também se ouve espanhol, de colombianos que por lá se estabeleceram ao serem expulsos de suas terras pelos guerrilheiros. Na cidade há um cônsul honorário da Colômbia, responsável por ajudar os conterrâneos nos trâmites para a obtenção de visto de trabalho e licença para abrir comércio – atividade a que a maioria dos fugidos se dedica.
Cerca de 80% do município é constituído de terras indígenas demarcadas. No perímetro urbano, 57,8% dos moradores se identificaram como indígenas no último censo do IBGE, de 2010. Adeilson Lopes da Silva, ecólogo do Instituto Socioambiental, ISA, uma organização não governamental muito ativa na região, afirma que nos últimos cincos anos houve um êxodo do interior para a zona urbana e hoje o número está mais perto de 70%. Segundo o IBGE, é o município de maior população indígena do país.
O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, professor do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), costuma dizer que “no Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é”. Em São Gabriel, quem não é provavelmente chegou com o Exército, um contingente de 2 mil homens e mulheres do Comando de Fronteira Rio Negro (10% dos moradores da cidade). Mesmo as Forças Armadas parecem ter absorvido a máxima de Viveiros de Castro. Em um documento interno lê-se que “o Batalhão de Infantaria da Selva possui entre seus integrantes um grande número de soldados oriundos dos diversos grupos indígenas desta região”. E continua, em tom romântico: “São filhos da floresta, guerreiros da selva, irmanados com o objetivo de bem servir a Pátria e defender o Brasil. Esta particularidade ímpar da nossa guarnição criou uma mística sobre as aptidões naturais de nossos guerreiros que extrapola nossas fronteiras e nos traz muito orgulho.” Em cerimônias como formaturas, entrega da boina (admissão do recruta como soldado) e comemoração do Dia da Bandeira, os soldados indígenas fazem as saudações de praxe em suas línguas nativas. Autoridades de passagem pelo Alto Rio Negro são recebidas por uma banda infantil que canta o hino nacional em língua geral.
A língua geral, ou nheengatu, é uma língua supraétnica – compartilhada por diferentes etnias – que até o final do século XIX, no início do ciclo da borracha, era a mais falada no norte do país, inclusive por brancos e negros. Suplantava o português.
São Gabriel está localizada na região conhecida como “Cabeça do Cachorro”, aquela pontinha no extremo noroeste do Brasil que parece um dog alemão de boca aberta e orelha pontuda. A Cabeça do Cachorro é o que o professor Eduardo Navarro, da Universidade de São Paulo (USP), chama de “o último refúgio da língua geral”.
No Brasil Colônia coexistiam duas versões de língua geral: a amazônica, ou nheengatu, ainda hoje empregada por cerca de 8 mil pessoas na Cabeça do Cachorro, e a paulista, que desapareceu em meados do século XVIII, não sem deixar marcas na toponímia do país e na língua portuguesa. Se você tem um xará em Itacoatiara que fica cheio de nhe-nhe-nhem porque ninguém o visita e cujo filho adora jogar peteca e não para de cutucar suas perebas, isso se deve à língua geral. É ela também que nos permitiria observar um caipira jururu à beira de um igarapé socando milho para preparar mingau – sem os termos que migraram para o português, só poderíamos dizer que vimos um habitante da área rural, melancólico, preparando comida às margens de um riacho. Sem caipira, sem jururu, sem igarapé, sem socar e sem mingau, a cena perde em colorido. Poderia ser uma bucólica paisagem inglesa.
“O processo de integração efetiva da gente paulista no mundo da língua portuguesa pode dizer-se que ocorreu, com todas as probabilidades, durante a primeira metade do século XVIII”, afirma Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Até então a gente paulista, fossem índios, brancos ou mamelucos, não se comunicava em português, mas numa língua de origem indígena, derivada do tupi e chamada língua brasílica, brasiliana ou, mais comumente, geral.
As duas línguas gerais brasileiras têm origens semelhantes, e as línguas indígenas que lhes deram vida pertencem à mesma família linguística, o tupi-guarani. O tupi é a base da língua geral paulista, e o tupinambá, da língua geral amazônica.
O idioma da gente paulista formou-se como resultado de duas práticas: a miscigenação entre portugueses e índias, e a escravização dos índios. A primeira foi facilitada por uma tradição que o antropólogo Darcy Ribeiro chamou de “cunhadismo”, costume adotado por índios do Brasil meridional que consistia em incorporar estranhos à tribo oferecendo em casamento uma menina da família. Os primeiros europeus que aqui aportaram, sem mulheres, uniram-se aos nativos e criaram os filhos juntos e misturados – as crianças falavam o tupi da mãe e o português do pai. Aos poucos, essas famílias mestiças se afastavam da cultura indígena e casavam entre si, não mais em suas aldeias de origem. Formava-se assim uma cultura mameluca, nem europeia nem indígena, com uma língua que já não era o tupi, tampouco era o português. Era o que falavam os primeiros paulistas, os bandeirantes, que a difundiram nas bandeiras até as terras que hoje constituem o Mato Grosso e o Paraná. Traziam de lá índios escravizados de outras famílias linguísticas que não a tupi, aumentando o número de falantes e o território da língua geral.
Navarro, da USP, vê a escravização indígena como um fator importante na disseminação da língua também entre famílias não mestiças, “cujos filhos brancos a aprendiam com suas amas indígenas e outros escravos domésticos, servindo na casa de seus senhores e educando seus filhos”. Antonio Candido de Mello e Souza, professor emérito da USP, disse à piauí que Pio Lourenço Corrêa – fazendeiro de São Paulo e tio de sua mulher, Gilda de Mello e Souza – lhe contou que sua avó e as amigas falavam em língua geral quando não queriam que as crianças entendessem a conversa. O professor calcula que isso tenha ocorrido na primeira década do século XIX, portanto sessenta ou setenta anos depois da “integração efetiva da gente paulista na língua portuguesa”.
Antônio Fernandes Góes Neto, um jovem linguista de Osasco, na Grande São Paulo, cresceu falando português e nunca desconfiou que já existira outra língua no lugar em que vivia. Sem que ele tivesse consciência do fato, seu processo de integração efetiva na língua geral foi desencadeado pelas caminhadas entre a casa e o colégio, que a rápida urbanização da cidade dificultava cada vez mais. A construção do Rodoanel e a poluição do rio Tietê – palavra que na língua significa volumoso – colaboravam para piorar o trajeto. Quando chegou o momento de Góes Neto fazer o cursinho pré-vestibular, o rio em que seu pai nadava e pescava em criança cheirava mal e já não corria, represado pelo lixo. Já não lhe era possível atravessar as vias expressas para ir à aula.
O futuro linguista queria fugir do Rodoanel e viver em contato com a natureza. No curso de letras da USP conheceu o professor Navarro, da cadeira de tupi antigo. Com ele, descobriu não apenas o tupi antigo, ensinado em pé de igualdade com o latim e o grego, mas também o tupi moderno, ou língua geral, ou ainda nheengatu, palavra que significa “fala boa”. Ao jovem soou também como “vida boa”. Hoje com 27 anos, um mestrado em linguística e cursando o doutorado, Góes Neto vai duas vezes por ano a Santarém, no Pará, ensinar nheengatu a índios em diferentes estágios de reafirmação da identidade indígena.
São treze os povos que vivem na região do Baixo Tapajós – Arapiun, Apiaká, Arara Vermelha, Borary, Tupayú, Tapajó, Maytapu, Kumaruara, Tapuia, Kayabi, Tupinambá, Jaraqui, Munduruku. Os alunos de Góes Neto falam exclusivamente português e pertencem, ou reivindicam o pertencimento, a esses povos. O programa, organizado pela Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), se propõe a recuperar o nheengatu.
A maioria dos alunos se lembra de suas avós, ou bisavós, falando língua geral, sobretudo para ralhar quando eles aprontavam. Não davam valor ao idioma, achavam que era “maluquice de velho”, como diz Bernadete de Melo, da etnia Tupinambá, auxiliar de enfermagem e aluna de Góes Neto. Sua bisavó era xamã, tinha poderes de adivinhação, falava nheengatu e se servia de seu conhecimento sobrenatural para espantar os pretendentes das filhas, os quais morriam de medo dela. Hoje, Melo ensina nheengatu numa escola indígena e é uma das líderes do movimento de reafirmação étnica e de autodemarcação das terras tupinambás na Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, próxima a Santarém.
O movimento de reafirmação étnica na região começou nos anos 90, sob a liderança, entre outros, do frade franciscano Florêncio Vaz, professor de antropologia da Ufopa e indígena da etnia Maytapu. Antes, todos ali se consideravam caboclos ou brancos. É no Centro Indígena Maíra, pertencente à Custódia Franciscana São Benedito da Amazônia, que são ministrados os cursos de nheengatu. As aulas são praticamente a céu aberto, num pátio cercado de floresta, coberto por um telhado em três águas encostado à parede dos fundos do centro franciscano. É o lugar mais fresco de Santarém, onde o calor é tamanho que se tem a impressão de estar numa sauna a vapor desregulada, sem porta de saída. Em janeiro, a sensação térmica chega frequentemente a 43 graus.
Muitos dos alunos de Góes Neto sentem falta de falar uma língua indígena, por isso o curso cumpre o papel de reafirmar a importância da cultura dos seus povos para a região. Outro papel, não menos importante, é o certificado da Ufopa, que lhes permite se candidatar a uma vaga de professor de língua nas escolas indígenas espalhadas pelas aldeias do Baixo Tapajós, algumas a vários dias de barco de Santarém. Segundo Góes Neto, “o critério do uso da língua como defesa de território se deve ao fato de o território ser todo nomeado em nheengatu, as espécies animais, vegetais, um velho que ainda fala [a língua], as práticas de saúde e da terra, a educação, o que é passado de geração em geração, tudo é em nheengatu”. No curso, Góes Neto ensina que essas palavras todas são da língua geral, o que muitos deles desconhecem.
Os futuros professores nutrem enorme respeito pelos índios de São Gabriel e de todo o Alto Rio Negro que ainda falam suas línguas, mesmo que esta seja língua geral. A expansão do idioma no Grão-Pará – como os portugueses chamavam o território hoje ocupado por Maranhão, Piauí, Pará, Amazonas, Amapá, Rondônia e Roraima – foi em parte responsável pela destruição da enorme diversidade linguística que havia na Amazônia. Calcula-se que no século XVI eram mais de 700 línguas. Hoje não passam de 120.
Góes Neto, que aprendeu nheengatu na USP, também tem São Gabriel como referência. Frequenta a cidade desde 2012, quando estava na graduação. Lá, faz suas pesquisas e aproveita para aperfeiçoar o conhecimento da língua e a pronúncia. O jovem professor tem a fala mansa, modos gentis, cabelos pretos já rareando no cocuruto, olhos cor de mel e um aspecto frágil de seminarista. Saiu de Osasco e hoje mora em São Paulo com a namorada, Camila de Lima Gervaz, professora de espanhol e especialista em didática de segunda língua.
Gervaz é responsável pela metodologia de ensino no curso de nheengatu da Ufopa. Assertiva e segura de seus conhecimentos, passa o tempo todo no computador organizando o material enquanto o namorado dá aula. Não fala nheengatu, mas cuida de modernizar o ensino da língua, até então baseado no aprendizado de línguas clássicas como latim e grego – metodologia desenvolvida pelo professor Navarro, formado em grego clássico. Gervaz levou para o curso da Ufopa a didática aplicada às línguas modernas, como inglês, espanhol ou alemão, assim como a metodologia de ensino de línguas indígenas desenvolvida no México. Atualmente o casal passa uma temporada no país considerado referência no assunto, estudando as práticas mexicanas com o intuito de aplicá-las ao ensino de língua geral no Brasil.
“Foi um baque, um banho de água fria”, disse Góes Neto, lembrando o momento em que pisou em São Gabriel pela primeira vez. “A variante ensinada na universidade era outra, diferente das três que são faladas no Rio Negro. O que aprendi na USP era o nheengatu da virada do século XIX para o XX. Eu não entendia nada do que eles diziam, mas eles me entendiam.” Desde então, esteve no local várias vezes, tendo morado na região por seis meses durante sua pesquisa de mestrado.
São Gabriel é uma cidade difícil, pobre, malcuidada, com muitos conflitos entre indígenas, entre brancos, entre brancos e indígenas, entre o Alto Rio Negro e Manaus, entre o Brasil, a Colômbia e a Venezuela. Há tráfico de drogas nas fronteiras, há guerrilheiros das Farc – todos os dramas por que passam os índios no Brasil estão a descoberto nas ruas. A presença do Exército é ostensiva, mas o mesmo não se pode dizer da Justiça e do Estado.
Por outro lado, a cidade está situada numa das regiões mais bonitas do país, com a floresta amazônica bem preservada, às margens do rio Negro, junto à serra de Curicuriari, conhecida como “Bela Adormecida” por lembrar o perfil de uma mulher deitada. É a porta de entrada para expedições ao pico da Neblina. São Gabriel ainda tem ares de cidade do interior, com casarões antigos, jardins floridos, casas pintadas de cores fortes e ruas tranquilas. As pessoas dizem bom-dia e boa-tarde umas às outras, mesmo a desconhecidos. Góes Neto e seus colegas da USP são encantados com o lugar.
Na cidade, a etnia dominante são os barés, que perderam sua língua há tempos e até os anos 80 sequer se consideravam índios. Eram caboclos, como a maioria da população do Amazonas. Hoje são indígenas e reivindicam como língua étnica o nheengatu, imposto a seu povo nos aldeamentos e missões jesuítas do Brasil Colônia. Segundo José Ribamar Bessa Freire, historiador das línguas do rio Amazonas, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), o nheengatu “continua sendo uma língua interétnica, falada por baniwas, tukanos e outras etnias, além de ser a língua dos barés”.
Foram dois os principais processos de formação e expansão da língua geral amazônica: os aldeamentos e a mestiçagem causada pelo convívio de tupinambás, no Pará e no Maranhão, com soldados e colonos portugueses. A instalação do Forte do Presépio – origem da atual cidade de Belém – na foz do rio Guamá, em 1616, marca o início da colonização portuguesa na região. A enorme diversidade linguística fez frente aos colonizadores, acostumados à relativa homogeneidade encontrada no sul. A criação das aldeias domésticas, ou aldeias de repartição, resolveu o problema, proporcionando um ambiente favorável à imposição de uma língua franca. Os índios eram “descidos” de suas aldeias de origem e “estocados” nos aldeamentos, onde o capitão de aldeia os alugava aos colonos. Esses índios de aluguel eram considerados livres, mas também havia os oficialmente escravizados, que ficavam sob jugo direto de seus senhores, sem passar pelas aldeias de “descimento”.
Os jesuítas detinham o governo espiritual dos índios aldeados – educação e catequese – e competiam com os colonos pelo governo temporal – controle sobre os corpos e, portanto, sobre a força de trabalho. Até 1759, quando o marquês de Pombal, ministro de dom José I, rei de Portugal, expulsou os jesuítas do Reino, religiosos e colonos disputaram um cabo de guerra pelo comando dos índios. Os primeiros estiveram muitas vezes em franca vantagem por dominar a língua geral, que estudavam desde que o padre José de Anchieta escrevera a Arte de Gramática da Língua Mais Usada na Costa do Brasil, o tupi, publicada em Portugal no século XVI.
Ao chegar às terras que hoje constituem o Pará e o Maranhão, os colonizadores tiveram a sorte de topar com os tupinambás, falantes de uma língua pertencente à família do tupi do sul. Como se entenderam com eles em língua geral paulista, logo perceberam que a estratégia de comunicação tão bem-sucedida no sul também funcionaria no norte, pois os povos da margem direita do rio Amazonas eram falantes de línguas da mesma família. Se tivessem aportado pela cabeceira do rio, como fizeram os espanhóis, talvez o nheengatu não tivesse se instalado com tanta facilidade.
Seja como for, as outras etnias aldeadas, falantes de línguas das famílias aruak, karib, tukano, pano, e outras, muito diferentes do tupi, foram obrigadas a aprender essa nova língua de contato. Nos 100 anos seguintes, a própria Coroa portuguesa estimulou sua disseminação, considerando-a a língua oficial da região para funções como catequese e comunicação interétnica. A Carta Régia de 30 de novembro de 1689 determinou que os missionários deveriam ensinar língua geral não apenas aos índios, como já ocorria, mas também aos filhos dos portugueses. E assim se fez. E, a exemplo do que ocorrera em São Paulo, a língua se alastrou e se modificou em contato com outros falares indígenas e com o português. Tornou-se dominante.
O predomínio de uma língua de base indígena, diferente daquela da metrópole e ainda por cima controlada por jesuítas, começou a causar problemas para a Coroa portuguesa. Para se comunicar com os súditos, os representantes da Coroa recém-chegados ao Grão-Pará precisavam recorrer a intermediários, os missionários, nem sempre maleáveis aos desejos de Portugal e cada vez mais exigentes. Os jesuítas demandavam mais autonomia para a ordem, mais controle sobre os índios, mais poder na colônia. Em conversa com a piauí, o professor Bessa Freire lembra: “Encontrei documentos dos arquivos públicos do Pará, do Xavier de Mendonça Furtado, governador do Grão-Pará e Maranhão [de 1751 a 1759], meio-irmão do marquês do Pombal. É ele quem começa a mandar cartas sobre língua geral dizendo que era uma invenção diabólica e perniciosa dos jesuítas, porque os jesuítas já estavam sendo expulsos de Portugal.”
Bessa Freire reconta uma cena descrita em uma das cartas: “Ele escreve para o Pombal: ‘Porra, eu estava dormindo a siesta no palácio, naquele sono, e ouvi um negócio lá fora. Acordei e fui até a janela, e o que eu vi? Um índio batendo o maior papo com um negro que veio comigo três meses antes.’ Claro que o negro não falava, mas acompanhava a conversa. Então, além dos índios de diferentes aldeias, falavam os mestiços, falavam os negros, a Amazônia falava língua geral. Ele conta [para o irmão] que chamou um alto funcionário português da Coroa, no Pará havia uns trinta anos e cujos filhos só falavam língua geral, ele dá uma ordem em português e o cara não entende porra nenhuma.”
Mendonça Furtado escreve a Pombal explicando que “a perniciosa e abominável língua que aqui improprissimamente deram o nome de geral, cuja diabólica invenção produziu nestas partes a real separação das gentes na confusão e desordem”, estava impedindo o bom funcionamento do governo.
Como parte de sua batalha contra os jesuítas, cada vez mais senhores dos aldeamentos, em 1755 Pombal proíbe, ao menos no papel, a escravização dos índios na colônia. Em 1758, com a publicação do Diretório dos Índios, bane o uso e o ensino da língua geral. Um ano depois, expulsa os jesuítas de Portugal e seus domínios.
Em seu gabinete no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP, Navarro tentava explicar as intenções do marquês de Pombal enquanto no pátio havia uma movimentação sindical, com um dos grevistas gritando palavras de ordem num megafone.
Falando num português impecável, como se estivesse lendo, o professor explica que seu interesse pelo tupi está ligado a seu “nacionalismo”. Isso, segundo ele, “vem desde a infância, quando fazia viagens pelo Brasil. A realidade brasileira rural me foi atraindo muito desde pequeno”. Sua família é de Fernandópolis, interior de São Paulo, origem de seu sotaque caipira, mas tem fortes raízes em Mato Grosso, onde seu avô fundou a cidade de Nova Olímpia. Navarro escreveu sua tese de doutorado à luz de um lampião a gás, “por opção, numa casa sem energia elétrica”. Sonha ficar o mais longe possível da cidade quando se aposentar, fixando-se em Paranapiacaba – lugar de onde se vê o mar, em tupi. Por enquanto, mora num apartamento em Santo André.
O som vindo do pátio finalmente cessou e ele pôde continuar seu raciocínio, explicando que na era de Pombal tivemos pela primeira vez a questão linguística como uma questão vital para a geopolítica portuguesa. O marquês, querendo modernizar o Estado português, fortalecer a economia e enfraquecer a Igreja, tinha um projeto linguístico-político bastante consistente: enfraquecer o domínio da língua geral. “Era um momento de disputas territoriais entre Portugal e Espanha, o Tratado de Madrid [definindo os limites entre as colônias na América do Sul] fora assinado em 1750 e era preciso, para se afirmar a posse de um território, que a língua do Império nele fosse falada. O uso da língua portuguesa passa a ser fundamental porque Portugal queria a Amazônia. Pombal proíbe a língua geral porque o português, sendo falado nos mais remotos lugares da Amazônia, permitiria confirmar posse territorial.”
Não se proíbe língua por decreto, porém. O povo do norte continuou a falar o que bem entendia por mais 100 anos, até que dois eventos praticamente exterminaram os falantes: a Cabanagem (1835–40), uma insurreição sangrenta que deixou 40 mil mortos no Amazonas, e a Guerra do Paraguai (1864–70), cujo número de baixas é até hoje objeto de controvérsia – computados os dois lados, são centenas de milhares de óbitos. Bessa Freire conta que “proporcionalmente, o Amazonas foi o estado que mais forneceu Voluntários da Pátria, que eram pegos a laço e embarcados acorrentados. Chegavam lá, o oficial dava uma ordem que o monolíngue do Amazonas, o tapuio, não entendia, mas se o inimigo [paraguaio] falasse guarani ele entendia, porque é uma língua paritária. Mas do outro lado tinha monolíngues guaranis também, aí o cara era preso pelo Exército Brasileiro e como iam interrogar? Chama o amazonense bilíngue para traduzir”.
O nheengatu, a língua geral paulista e o guarani paraguaio são línguas gerais da família tupi-guarani, mutuamente inteligíveis, mais ou menos como espanhol e português. O guarani paraguaio é língua oficial do Paraguai desde 1992, falada por 85% da população e ensinada nas escolas, junto com o espanhol. Desde 2014 é, ao lado do português e do espanhol, língua oficial do Mercosul. O nheengatu, ou tupi moderno, como quer Navarro, ou língua geral do Brasil, poderia ter tido o mesmo destino. Mais uma vez Bessa Freire explica: “A Espanha teve uma porrada de estados, vice-reinado do Peru, do Rio da Prata, Nova Espanha, Nova Granada etc., que depois se transformaram em estados nacionais. Suponha que a Argentina tivesse anexado o Paraguai como uma província e elaborasse uma política de línguas como fez para si mesma – o Paraguai hoje não seria bilíngue.” E complementa, sublinhando que evidentemente a história não se faz assim: “Agora suponha o contrário, que o Grão-Pará, que na época da Independência tinha, recenseados, 200 mil habitantes, todos falantes de língua geral como monolíngues ou bilíngues, se mantivesse independente do Estado do Brasil, que tinha 4 milhões de falantes de português. Talvez eu hoje fosse falante de nheengatu.”
O Grão-Pará só reconheceu a Independência do Brasil quase um ano depois do Grito do Ipiranga, em agosto de 1823, quando a esquadra de lorde Cochrane, contratada por dom Pedro, cercou Belém e obrigou o governo a aderir, formando uma só nação.
Bessa Freire é animado, piadista, pontua sua fala com palavrões bem colocados e sem ofensa. Adora seu cachorro e seu gato, a ponto de recusar viagens para conferências internacionais com tudo pago caso tenha que deixá-los em um hotel para animais. “O gato é tão filho da puta que três dias antes de eu viajar ele me vê baixar as malas e já fica puto. O cachorro só vai saber que eu viajei quando eu volto e ele fica alegre.” Nasceu e foi criado em Manaus, e apesar de ser um dos maiores estudiosos da língua e de sua história, não fala nheengatu. Mantém fortes laços com sua terra natal, tem uma coluna semanal no jornal Diário do Amazonas chamada “Taqui pra ti”, na qual gosta de provocar as autoridades locais, principalmente com relação à política indígena. “Eu não devo fidelidade a ninguém. Aos índios.”
Bernadete de Melo, a aluna de Góes Neto em Santarém e professora de nheengatu, lembra a importância da Cabanagem para a exterminação da língua e da cultura indígenas na região. “Minha mãe contava que quando eles vieram fugidos da guerra dos cabanos, meu tio, que se chamava cacique Parauá, começou a povoar o lugar. Só que, com medo dos brancos, eles foram esquecendo a língua. Foram povoando, mas já com a mentalidade do branco. Os idosos foram morrendo, os novos foram vivendo, já com vergonha de dizer que eram indígenas.” E acrescenta: “Com o tempo passado, procuramos nossas raízes, descobrimos de onde viemos, quem somos, somos verdadeiros índios.” Formaram, então, um grupo de pessoas que se autodeclararam indígenas. “Chamamos o Conselho Indígena Tapajós Arapiuns, que analisa o pedido, leva para a Funai. Aí a gente busca uma escola indígena para ensinar nossos filhos, para resgatar nossa cultura, nossa língua, nossa roça. Porque hoje o branco não quer mais trabalhar, só quer viver de Bolsa Família, e nós não somos assim.”
Melo tem a face angulosa, a pele morena, as maçãs do rosto altas e os olhos amendoados que associamos aos índios. É um rosto ao qual ninguém em sã consciência recusaria a identidade indígena, caso fosse esse o critério. Não é. Como rege a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais, da qual o Brasil é signatário, o critério é a autoidentificação e a aceitação pelo grupo. O aprendizado do nheengatu entra no bolo como fator importante da recuperação da cultura perdida há 175 anos, mas a Funai não exige o domínio do idioma para legitimar a nova aldeia. Línguas orais são muito voláteis, bastam duas ou três gerações de contato com uma língua dominante para que se percam.
E essa perecibilidade pode ser agravada numa situação de repressão, como a dos cabanos, que saíram derrotados da guerra e tiveram que se esconder e disfarçar sua identidade para sobreviver. É isso que a Funai reconhece ao desobrigar os índios em processo de afirmação do conhecimento da língua do grupo a que almejam pertencer. Conversando com os alunos de Góes Neto em Santarém, a impressão que se tem é que a revolta dos cabanos aconteceu outro dia. Frei Florêncio Vaz, o antropólogo da Ufopa, explica que “a Cabanagem é o mito fundante de muitas comunidades aqui”.
O golpe de misericórdia na língua geral amazônica foi o desembarque de centenas de milhares de nordestinos que fugiam da seca de 1877. Foram trabalhar na produção da borracha e levaram consigo a língua portuguesa. Foi só então que o idioma oficial do Brasil se estabeleceu na Região Norte do país e o Alto Rio Negro se tornou, como diz Navarro, o último refúgio da língua geral.
Orlando José de Oliveira, indígena da etnia Baré, integrou-se ao mundo da língua portuguesa em 1966. Tinha 13 anos e foi mandado para o internato salesiano de Santa Isabel do Rio Negro, Amazonas, cidade onde morava com os pais. O adolescente só falava língua geral, o que era proibido no internato. Os outros meninos caçoavam dele, os padres lhe batiam cada vez que abria a boca e o obrigavam a portar uma pesada placa de madeira em torno do pescoço, onde se lia EU SOU DO DIABO.
Oliveira é professor aposentado de educação física, história e português do município de São Gabriel. De 2001 a 2004 também presidiu a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), entidade importante da região. Hoje cuida de um pequeno comércio com sua mulher.
O idioma baré já não existe e nunca foi registrado – há muito os barés adotaram a língua geral. Há boatos não confirmados de um casal falante do idioma no Alto Rio Negro em 2007, os dois já muito velhinhos. É mais provável que a última pessoa a usar a língua tenha morrido em 1995, nas imediações de Manaus.
As missões salesianas chegaram ao Alto Rio Negro em 1914. Catequizavam os adultos e retiravam as crianças de suas aldeias, mandando-as a internatos. Separados da família, os pequenos voltavam para casa apenas uma vez por ano. Estudavam metade do dia e trabalhavam o resto do tempo na roça, ou na fabricação de roupas e sapatos, entre outros objetos. Tinham uma rotina de exercícios físicos, como no Exército, e eram obrigados a comer o que lhes era dado, alimentos muito diferentes daqueles a que estavam acostumados. A vida no internato era muito dura, mas os índios vinham de uma situação tão ou mais dura, à mercê dos comerciantes. Viviam num sistema de trabalhos forçados, pagando dívidas que nunca eram sanadas e vendo rotineiramente suas mulheres sendo estupradas pelo patrão. Com o advento dos padres nas aldeias, a supremacia dos comerciantes se esgarçou e os índios passaram do jugo de um grupo à submissão a outro.
Clara Soares, também da etnia Baré, é neta de um português que conhecia a língua. Seus cinco filhos entendem nheengatu, mas não falam. Ela tenta ensinar ao neto caçula, de 3 anos, que acha engraçado, aprende algumas palavras mas esquece rápido. Hoje, conversa na língua apenas com a irmã e as primas, ou com Marcel Ávila, aluno de Navarro e colega de Góes Neto na USP. Ávila, cujo nheengatu é considerado excelente pelos barés de São Gabriel, passa longas temporadas na cidade. Uma das primas de Soares, Celina Menezes da Cruz, diz: “O Marcel fala até melhor do que eu.”
Junto com o marido Linhares, cearense, Clara Soares administra um misto de mercearia e bar, frequentado por políticos e comerciantes locais sempre no final da tarde. A casa de madeira azul-clara, com duas portas generosas e três bancos compridos na calçada, é um ótimo lugar para se manter a par das intrigas de São Gabriel. Quando os bancos lotam, os donos logo providenciam tamboretes para que ninguém fique de pé. Duas geladeiras bem fornidas de água, refrigerantes, cerveja e suco de caixinha aplacam a sede de transeuntes e fregueses.
Como sempre faz muito calor e a mercearia se situa numa rua de passagem, mesmo sem dispor de balcão e sem servir comida, o alpendre do casal Soares Linhares é irresistível. A proprietária é simpática e um pouco tímida, tem os cabelos longos, lisos e negros, ainda sem fios brancos, para seu espanto. Diz já ter passado da idade de ficar grisalha e não pretende pintar os cabelos se isso vier a acontecer. A casa da família fica atrás da mercearia, de frente para o rio Negro. Sua filha, formada em sociologia, e o genro, que a moça conheceu na faculdade em Brasília, moram com ela. Os netos aprendem espanhol como segunda língua na escola.
Soares conta que foi para o internato salesiano em São Gabriel aos 12 anos, em 1968. Não apanhou das freiras porque já estava acostumada a se esconder para falar nheengatu. Seu pai, um baré, dizia que “falar língua geral empatava os estudos”. E ela complementa: “Acho que por causa da pronúncia, não sei. Ele se criou com os padres, queria ser padre, mas não pôde porque era o único filho homem e na época não deixavam. A gente esperava ele sair para a roça para falar língua geral.”
Na época, moravam no sítio, numa comunidade indígena onde a mãe e as tias tinham uma escola. Eram todas professoras e bilíngues em língua geral e português, menos uma, tia Neca, que não falava português. Quando a família se mudou para a cidade em busca de escola e trabalho, três anos depois de Soares ir para o internato, tia Neca foi encarregada de cuidar da casa e das crianças. A mãe e o pai tornaram-se professores da escola municipal. A família toda acabou saindo da comunidade onde morava e se estabeleceu em São Gabriel. Segundo Soares, o nheengatu está desaparecendo porque os jovens estão migrando para a cidade e deixam de falar com os pais. “Mesmo em São Joaquim [uma comunidade longe], onde a gente passa as férias, só as senhoras de idade é que falam. Os jovens às vezes nem entendem.”
Celina Menezes da Cruz – a prima de Soares que considera o nheengatu de Ávila, da USP, melhor do que o dela – tem o riso frouxo, é simpática, tagarela, gosta de cantar e, apesar de “ter levado muito coque e galho de cuia nas canelas”, admira as freiras do internato salesiano onde passou dez anos de sua infância, de 1962 a 1972, e com quem trabalha até hoje em projetos sociais: “Quando vejo a irmã Elizabete é como se estivesse vendo, assim, a minha mãe, as minhas tias.”
A família morava a três quadras do internato, em São Gabriel. Visitas, no entanto, só eram permitidas uma vez por mês. Férias, uma vez por ano. “No internato, nem os tukanos falavam a língua deles, nem os baniwas e principalmente o nheengatu. Quando a gente conversava na hora do recreio com as que sabiam menos, a gente perdia os tíquetes – a gente ganhava uns tíquetes de comportamento, um por dia.” Com os cupons amealhados, no fim do ano as meninas compravam coisas para levar para casa. “Roupas que vinham da América, diziam, né, cobertor, calçado, perfume, grampo, amarrador de cabelo, óleo de cabelo, ninguém queria perder aqueles tíquetes.”
O pai de Menezes da Cruz foi timoneiro do padre Afonso Casasnovas, um grande estudioso da língua, autor de uma gramática até hoje usada nos cursos, Noções de Língua Geral ou Nheengatú. Góes Neto, por exemplo, adota o Casasnovas como um dos livros de referência em seu curso em Santarém. Entre 1964 e 1968, a família toda saiu de São Gabriel e foi para a região do rio Içana, acompanhando o padre. Lá, não só era permitido falar língua geral, como a prática era incentivada. Menezes da Cruz aprendeu a cantar canções religiosas em nheengatu. Até hoje se lembra de Noite Feliz, que uma freira jovem e bonita chamada Bernadete lhe ensinou.
Os filhos de Menezes da Cruz não falam nheengatu, com exceção de uma, Adriana, que ao acompanhar o marido ao Pelotão Especial de Fronteira, o PEF, voltou de lá fluente. Os PEFs estão estacionados nas regiões mais remotas, no meio da selva, em condições extremamente precárias. São apenas 45 homens, às vezes acompanhados das mulheres. A cada três meses os soldados têm direito ao “arejamento” de quinze dias, quando o avião da FAB os leva a São Gabriel, a Manaus, a Barcelos, ou aonde quer que fique sua cidade natal.
O Exército se esforça em recrutar soldados locais para os PEFs, em geral indígenas acostumados à vida na selva e ao isolamento extremo. Resultado: os PEFs são uma babel. Adriana, filha de Menezes da Cruz, disse à mãe que “lá a gente escuta tanto eles falarem a língua deles que a gente tem que falar a nossa também”. Como a mãe sempre usara o nheengatu com os seis filhos e ela entendia tudo, não precisou de muito para destravar a língua.
O nheengatu fez falta também ao tio de Menezes da Cruz, Delfim Vilagelim, que em 1954 deixou o norte para ser piloto da Força Aérea no Rio de Janeiro. Telefonava uma vez por ano para São Gabriel e se recusava a falar português, de tantas saudades que tinha da língua geral. Vilagelim fez carreira na FAB e morreu em 2012 sem nunca voltar ao Amazonas.
Em um artigo intitulado “O último refúgio da língua geral no Brasil”, Navarro diz “que o vigor que a língua geral apresentava no Rio Negro até a década de 1970 devia-se também à precariedade da escolarização da infância e da juventude. As taxas de analfabetismo ali sempre foram altíssimas. Com efeito, o subdesenvolvimento econômico preserva por mais tempo as culturas tradicionais, e o Rio Negro era um bom exemplo disso até poucas décadas atrás.”
É difícil prever o futuro do nheengatu, mais vigoroso que muitas outras línguas indígenas, algumas das quais não contam mais de cinquenta falantes. O nheengatu tem entre 6 e 8 mil. Mesmo assim, 8 mil pessoas não é muita gente – sem o recrutamento das novas gerações, a língua tem prazo de vencimento.
O esforço de Navarro, Góes Neto, Ávila e os outros estudantes da USP de tupi antigo e moderno é incrementar a fixação do nheengatu no Alto Rio Negro e seu resgate no Baixo Tapajós. O das lideranças indígenas, como o vice-prefeito de São Gabriel, Camico Agudelos, da etnia Baniwa, falante de nheengatu e apresentador, quando vereador, do projeto de cooficialização das línguas indígenas, é “mostrar ao indígena que a gente não está obrigando ele a falar português, que quem deve se adequar somos nós”.
Já Bessa Freire procura lembrar ao Brasil que essa foi a nossa língua, falada por nossos antepassados, do norte do Paraná ao Amazonas.
“Deleuze dizia que o contrário da memória não é o esquecimento, o contrário da memória é o esquecimento do esquecimento. Porque se você esqueceu, mas sabe que esqueceu, pode correr atrás se precisar. Mas se você esqueceu que esqueceu, c’est fini. A gente esqueceu que esqueceu a língua geral. Eu sou amazonense, cresci no Amazonas. Lá, até 1870, a língua geral era dominante, não era índio só, era mestiço, branco, negro, todo mundo falava língua geral. E de repente se apaga isso, se esquece isso. Tudo bem, línguas nascem, crescem, morrem, em função de políticas linguísticas, mas a gente esquecer que esqueceu, isso é que eu acho trágico. Parece que o Cabral chegou aqui e todo mundo começou a falar português. Apagou-se a língua, e apagou-se a memória da língua também.”
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Mais: confira a transcrição, traduzida, de uma conversa em nheengatu entre Marcel Ávila e Clara Soares
Marcel – Supí. São Paulo upé, USP upé, siía mira ta uyumbué ta uikú sesewara. Ma yawatá ramé cidade rupí kwá yawé, nẽ awá…
Marcel – É verdade. Em São Paulo, na USP, muitas pessoas estão aprendendo sobre ela [a língua nheengatu]. Mas se andamos assim pela cidade, ninguém…
Clara – Ti awasemu nẽ awá ukuntái…
Clara – Não encontramos ninguém que fale [ a língua nheengatu]…
M – Umbaá, ti yawasemu ne awá. Asuí nẽ awá ukwáu sesewara. Yapurandú ramé mira-itá suí, nẽ awá ukwáu sesewara. Sesewara tẽ aé umipinima uikú kwá nheenga resewara, amú mira-itá ta umaã arama kwá… nheenga, mayé aé uyupirũ kwá Brasil upé… aé umukameẽ arama amú mira-itá supé aikwé rẽ awá upurungitá nheengatu rupí iké.
M – Não, não encontramos ninguém. E ninguém sabe sobre ela. Se perguntarmos pras pessoas, ninguém sabe sobre ela. Por isso mesmo ela [a Branca] está escrevendo sobre essa língua, para outras pessoas verem… como ela começou no Brasil… para ela mostrar para outras pessoas que ainda há quem fale o nheengatu aqui.
C – Ma kuíri uri São Gabriel kití ukuntái arama yané irũ, ti será?
C – Mas agora [ela] veio para São Gabriel para falar com a gente, não é?
M – Yawé tẽ. Ape, ixé asuantí aé yepé í…
M – Isso mesmo. Lá [em São Paulo], eu a encontrei uma vez…
C – Tenki rerasú aé mí professora Celina… penheẽ…. puranga ukuntái.
C- Você tem que levar ela lá na professora Celina… [aí] vocês dizem… ela fala bem.
M – Akití tẽ ixé asú.
M – Eu vou pra lá mesmo.
C – Ape tẽ usú arama.
C – Tem que ir lá mesmo.
M – Ma ixé ayuri kwá kití tẽ, amaã arama indé.
M – Mas eu vim pra cá mesmo, pra ver você.
C – Haa… puranga. Ma nẽ akwáu sá indé resika reikú.
C – Haaa… que bom. Mas eu nem sabia se você estava chegando.
M – Ixé asika mituú ramé. Asasá kwá rupí siía í, ma pituna ramé.
M – Eu cheguei domingo. Passei por aqui muitas vezes, mas à noite.
C – Mituú… mituú asú mi kaá kití.
C – Domingo… domingo eu fui lá pra mata.
M – Haa… mi kaá kití. Indé resú repuú maniaka?
M – Haa… lá pra mata! Você foi colher mandioca?
C – Asú ayasuka… igarapé upé.
C – Fui banhar… no igarapé.
M – Nẽ resenũi ixé! [risadas]
M – Você nem me chamou! [risadas]
C – Ti akwáu sá reikú iké! [risadas]
C – Não sabia se você estava aqui! [risadas]
M – Ixé asú putari yuíri igarapé kití, nhaãsé sakú retana.
M – Eu também quero ir ao igarapé, porque está muito quente.
C – Pô… puranga yayasuka arã…. Irusanga igarapé. Porque iké sakú retana.
C – Pô… é bom pra gente banhar… é gelado o igarapé. Porque aqui é muito quente.
M – Asú putari tẽ mikití. Ma ixé asika ramé ixé se kweré retana, nhaãnsé mukũi ara pawa mí lancha kwara upé.
M – Eu quero ir mesmo pra lá. Mas quando eu cheguei eu estava muito cansado, porque foram dois dias inteiros dentro da lancha.
C – Tenki resú mi nhaã equador kití.
C – Você tem que ir ao equador [onde há o marco da linha do equador].
M – Haa… nhaã usú waá Cucuí kití, ti será?
M – Haa… aquela [estrada] que vai pra Cucuí, não é?
C – Ape tẽ.
C – Lá mesmo.
M – Ma yapisika ramé yepé lotação, muiri taá usemu nhaã lotação, yasika arama yepé igarapé upé.
M – Mas se pegarmos uma lotação, quanto custa a lotação, pra chegarmos num igarapé.
C – Hoo… akwáu katú sepiasú.
C – Hoo… acho que é caro.
M – Sepiasú xinga… Asuí ti kurí ta upitá ta usarú arama yandé? [risadas]
M – É um pouco caro… E eles não vão ficar pra esperar a gente? [risadas]
C – Ti ta usarú indé reyasuka. [risadas]
C – Eles não esperam você banhar. [risadas]
M – Aramé iwasú xinga. Yawatá ramé iwasú yasika arama yepé igarapé upé?
M – Então é um pouco difícil. Se a gente for andando é difícil de chegar num igarapé?
C – Apekatú.
C – É longe.
M – Apekatú xinga… Ma yasú yayumungitá yasú arama nhaã… maita sera… Celina rendawa upé. Aikwé… mikití aikwé… aikwé yepé igarapé puranga mimi…
M – É um pouco longe… Mas vamos combinar pra a gente ir naquele… qual o nome dela?.. no sítio da Celina. Lá tem um igarapé bonito.
C- Puranga yayasuka arã.
C – É bom pra a gente banhar.
M – Yasú-kwáu yayasuka mirupí.
M – Agente pode ir banhar por lá.
C – Yamixiri yambaú arã pirá…
C – Assamos peixe pra comer…
M – Yawé tẽ. Yasú yayumungitá yasú arama mikití!
M – Isso mesmo. Vamos combinar pra irmos pra lá!
C – Puranga! Aramé puranga.
C – Está bem! Então está bem.
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