A crise global dificulta a realização do projeto de crescimento da presidente e pode alterar drasticamente as condições em que o "estilo Dilma" tem operado com sucesso ILUSTRAÇÃO: CASSIO LOREDANO_2012
O estilo Dilma na hora H
A política brasileira ainda se organiza em torno da defesa das conquistas de FHC e de Lula, e não a partir de projetos que enfrentem os problemas que nenhum dos dois resolveu
Celso Rocha de Barros | Edição 72, Setembro 2012
Já parece haver, entre os observadores da política brasileira, algum consenso sobre o que é o estilo da presidente. Dilma Rousseff dá broncas espetaculares em seus ministros, já tendo abalado a estabilidade emocional de alguns deles. Dilma microgerencia os projetos do governo, muitas vezes passando por cima dos titulares dos ministérios para lidar direto com o segundo ou terceiro escalão. Dilma tem pouca paciência com barganhas políticas (mas há quem diga que o tempo a está tornando mais paciente com elas). Dilma é uma negociadora dura que deixa claro o ponto em que não pretende mais continuar conversando. Dilma é pouco propensa a estabelecer relacionamentos pessoais próximos com aliados. (Lembram dos churrascos do Lula com direito a pelada entre os ministros?) Dilma é mais discreta, e provoca menos a oposição. Dilma tem menos diálogo com os movimentos sociais do que tinha Lula. Dilma concentra sua atenção em um número limitado de problemas, o que para alguns é foco, e, para outros, estreiteza. Já se lembraram de Max Weber para opor Dilma, a tecnocrata racional-legal, a Lula, o carismático. E, o que talvez seja o aspecto que mais aparece para a população em geral, Dilma tem parecido ser menos conivente com a corrupção, demitindo mais ou menos rapidamente ministros denunciados pela imprensa.
A vontade de fazer o contraste com Lula talvez exagere esses atributos, mas é provável que o retrato que emerge da sobreposição dessas várias descrições seja razoavelmente fiel. A imagem de presidente gestora corresponde, no mínimo, a um aspecto da autoimagem de Dilma. Em uma entrevista à tevê em 2009, ela disse que seu grande objetivo, se eleita, seria aumentar a eficiência e a capacidade de ação do Estado brasileiro. Creio que devemos levar essa afirmativa a sério, ao menos como sinalização do que Dilma pensa e espera de si mesma. (Leitores diferentes terão opiniões diferentes sobre sua capacidade de entregar o que diz pretender.) Já há, em termos de eficiência, pelo menos alguns resultados palpáveis: segundo o economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (e crítico do governo) Mansueto Almeida, em junho de 2012 houve um aumento da execução orçamentária dos ministérios (à exceção do Ministério dos Transportes, abalado por uma série de escândalos), o que é uma medida aproximada do quanto o governo consegue implementar seus projetos (mas não, é importante frisar, do quão bons possam ser esses projetos).
A popularidade da presidente sugere que as pessoas – além de compreender que mulheres podem atuar em outros papéis que não apenas de mãe em música do Agnaldo Timóteo – têm uma demanda por clareza política e rigor administrativo anteriormente não satisfeita. Talvez porque, quando essa demanda aparecia no discurso da oposição, lhes fosse apresentada como uma escolha: ou isso ou as políticas sociais do Lula. Pode ser verdade o que se dizia na época da eleição de 2010, que Dilma tinha muitas características semelhantes às de José Serra, mas tinha a vantagem crucial de que não forçava ninguém a fazer essa escolha. Se a população está certa em sua avaliação de Dilma, ou se apenas projeta nela suas expectativas, é algo que descobriremos até o fim de seu mandato.
É claro que nem tudo nessa história é estilo ou, o que talvez seja mais preciso, nem tudo no estilo de uma Presidência é a personalidade do presidente. Muitas das diferenças entre Lula e Dilma, e muito da viabilidade dos dois estilos, são explicáveis por diferenças entre os momentos políticos em que cada um estabeleceu sua assinatura individual.
Por exemplo, se Dilma tem mais autonomia diante da base parlamentar, também é verdade que enfrenta uma oposição muito mais fraca do que a que confrontou Lula, especialmente após o racha do DEM (que levou à formação do PSD) e a catástrofe de Demóstenes Torres. A força do PSDB e PFL/DEM durante o governo Luiz Inácio Lula da Silva (em especial durante o primeiro mandato) aumentava o poder de barganha da base aliada, que podia ameaçar, com credibilidade, passar para a oposição (com a qual, afinal, tinha mais afinidade ideológica). Com a oposição fraca como está, os partidos menores calculam que romper com o governo é se afastar do poder (e dos favores que ele distribui) por um bom tempo. Em épocas de governo forte, a oferta de aliados cresce, e a lei da oferta e da procura faz seu trabalho com o preço dos aliados. Não é só de corrupção que estou falando, vejam bem: faz parte do jogo que os deputados briguem por recursos para suas regiões e bases de apoio.
Por outro lado, se Dilma tem menos diálogo com os movimentos sociais, em boa parte é porque tem menos a lhes oferecer, dada a política econômica. Na análise já citada de Mansueto Almeida (leiam esse cara), fica claro que a presidente está gastando o dinheiro que tem para gastar, fundamentalmente, com programas sociais (o Minha Casa, Minha Vida, por exemplo, está recebendo uma boa grana). Esses programas são direcionados ao que o cientista político André Singer identificou como a base social do lulismo: os pobres desorganizados, que ele chama de “subproletariado”.
A prioridade dos gastos de Dilma não é, portanto, a base social do PT, onde predominam os setores populares organizados. E definitivamente não são os setores de renda média tradicionalmente associados ao PT, como o funcionalismo público. Diante da crise mundial, Dilma tem preferido usar o resto do dinheiro de que dispõe para tentar incentivar a economia. (Pode-se discutir, é claro, o quanto essas medidas serão eficazes.) Isso quer dizer que, a menos que a presidente decida cortar gastos sociais, não há muito dinheiro para atender reivindicações de ninguém. Como seria de se esperar, isso não está semeando alegria entre os funcionários públicos. Mas tampouco os funcionários ficariam felizes se Dilma os convidasse para um café, lhes fizesse um cafuné, e explicasse, no final, que não tem dinheiro para aumentar o salário de ninguém. Se Dilma aumentasse os salários, por outro lado, poderia receber os sindicalistas a golpes de pá que não perderia seus votos no concurso de Miss Simpatia. Isso vale, em dobro, para deputados da base governista e seus pedidos de liberação de emendas parlamentares. Não se trata de estilo.
As diferenças de estilo também podem refletir mudanças no jeito com que diferentes atores se relacionam com a nova presidente. Não sabemos se partidos aliados, ou o PT, não estão testando o terreno para saber se podem pedir mais de Dilma do que pediam de Lula; se for este o caso, isso exigirá, por parte da presidente, demonstrações de rigor para segurar a sede com que vão ao pote. Lula inspira deferência muito maior dentro do PT, o que talvez o dispensasse de maiores demonstrações de autoridade. Dilma, por outro lado, sofre muito menos preconceito de classe, o que a livra de ataques elitistas (“Vamos acabar com essa raça”) que precisariam ser respondidos com gestos populistas ameaçadores (“Vamos exterminar o DEM”).
A atitude diferente diante da oposição, e mesmo a atitude diante de aliados acusados de corrupção, também é reflexo de diferenças na rede de apoios dos dois presidentes. Há testemunhos de que, após a crise do mensalão, Lula procurou se entrincheirar com os setores com os quais podia contar em qualquer eventualidade, em especial os sindicatos. Dilma não tem ninguém com quem possa contar com esse grau de certeza; por essas e outras razões, tem muito menos meios de administrar um grande escândalo de corrupção, e precisa construir mais pontes com a oposição.
Finalmente, não se pode descartar a possibilidade de as diversas manifestações de simpatia ou antipatia pelo “estilo Dilma” serem outra coisa: acertos de contas tardios e meio envergonhados de gente que faz tempo percebeu que vinha falando besteira (contra ou a favor) sobre o governo Lula, mas que já tinha empenhado sua posição, bem como sua credibilidade em sua roda de truco, a favor ou contra o sujeito, e achou mais fácil mudar de opinião agora que mudou o presidente.
Tenho amigos de esquerda que romperam com o governo Dilma por causa da Usina de Belo Monte, e lamentam a virada à direita que esse projeto “ecocida” imposto de cima para baixo representa. Mas Lula também era a favor de Belo Monte. Parece-me que esses colegas superestimaram o esquerdismo (ou, no mínimo, o ambientalismo) de Lula, e só por isso veem uma grande virada em Dilma. Da mesma forma o fazem os que passaram oito anos soando o alarme de comunismo, totalitarismo, aparelhamento, Foro de São Paulo, o “polvo” da Veja, e depois acharam meio difícil admitir que Lula, se tinha lá seus problemas, nunca esteve nem sequer perto de ser um fanático de esquerda. É mais fácil para essa turma dizer que a Dilma é tão diferente de Lula que já é possível reconhecer uma ou outra qualidade em um governo do PT. Nessa hipótese, o que está havendo é menos uma racionalização do governo e mais uma racionalização da discussão política, que se confundiu um pouco vendo o Lula implementar políticas moderadas.
Oestilo de Dilma também é sintoma de seu projeto. É possível, é claro, que Dilma tenha escolhido seu projeto por ser o tipo de tarefa que atrai alguém com sua personalidade. E é provável que Lula a tenha escolhido como sucessora porque também apostou na importância do projeto, e viu em Dilma alguém capaz de levá-lo adiante.
Quando Dilma era ministra de Lula, seu nome era frequentemente associado ao “desenvolvimentismo”. Esse é um nome que já foi usado para descrever coisas tão diferentes que talvez não seja mais muito útil, mas, em geral, se refere à defesa de que o Estado, sem substituir a iniciativa privada, tente acelerar ou induzir o desenvolvimento com obras de infraestrutura, política industrial, intervenção na taxa de câmbio ou outras coisas do tipo. Em grandes linhas, e com idas e voltas, descreve a política econômica brasileira entre Vargas e o fim da ditadura militar. Em fases diferentes, o desenvolvimentismo foi mais estatista ou mais privatista, democrático ou autoritário, com grande participação do capital estrangeiro ou nacionalista. Produziu altas taxas de crescimento por algumas décadas, mas desabou espetacularmente sob o próprio peso na passagem para a década de 80.
A moderna democracia brasileira nasce justamente na crise do desenvolvimentismo, e convive problematicamente com sua memória. As grandes realizações do Brasil nas últimas décadas foram correções de legados ruins do desenvolvimentismo: a hiperinflação (que só acabou em 1994) e a desigualdade (que só agora caiu abaixo do que era nos anos 60). Por outro lado, o crescimento econômico brasileiro na era democrática foi baixo, bem mais baixo do que no período desenvolvimentista. Por estupenda que tenha sido a vitória de Fernando Henrique Cardoso sobre a inflação, ela se deu ao preço de o Brasil ter a maior taxa de juros do mundo. E, por mais indiscutivelmente justas que sejam as políticas sociais de Lula, é fato que mais dinheiro para a área social é menos dinheiro para investimento. Isto é: a herança que Dilma recebeu de seus antecessores inclui a prataria, mas também aquele quadro feio de palhaço chorando.
Quando Dilma escolheu como prioridade recuperar a capacidade de ação do Estado, indicou disposição para enfrentar esse nó restante da transição democrática. O leitor pode chamar essa postura de “desenvolvimentista”, dependendo do que entender por desenvolvimentismo, mas o que importa é o foco na remoção de obstáculos para o crescimento. Dilma se preocupa com o financiamento de investimentos de longo prazo e com a perda de competitividade da indústria. Dilma quer criar condições para a redução da taxa de juros e resolver carências de capital humano. Dilma fala muito mais em políticas de inovação tecnológica do que seus antecessores. O desafio é implementar essa agenda sem repetir as violências praticadas pelo velho desenvolvimentismo contra a democracia, a boa gestão macroeconômica, o meio ambiente ou a igualdade.
Há quem diga que os velhos vícios estão de volta: à esquerda, militantes ambientalistas críticos da construção da Usina de Belo Monte, como o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, argumentam que Dilma demonstra a mesma despreocupação com direitos indígenas que o regime militar demonstrava. À direita, o economista Alexandre Schwartsman manifesta ceticismo em relação ao compromisso do atual governo com o regime de metas de inflação herdado de FHC. Ainda que admitamos que Dilma escolheu para si um desafio que eventualmente teria que ser enfrentado, é preciso admitir que a escolha traz riscos significativos.
É fácil ver que muitas das características do estilo Dilma derivam da tarefa que ela se colocou. Os problemas que a presidente tem à sua frente não vão ser resolvidos por um grande plano econômico, por melhor que seja, ou por um ou dois programas sociais bem desenhados. Se Dilma é detalhista é porque os problemas que enfrenta agora exigem desatar centenas de nós menores. Se prefere discussões técnicas, é porque todos esses problemas têm aspectos técnicos absolutamente infernais. (Se alguém te disser que basta vontade política para baixar os juros, ou reduzir os gastos públicos, nunca mais ouça o sujeito.)
O estilo Dilma, portanto, é a resultante de uma personalidade, uma conjuntura política e um projeto. Resta saber qual a viabilidade desse conjunto nas circunstâncias atuais. Até porque, convenhamos, a conjuntura faz você desejar que o sujeito que sempre aparece nessas horas dizendo que “o ideograma chinês para crise é o mesmo para oportunidade” seja obrigado a lavar as cuecas de todo o Exército de Libertação Popular para ver que oportunidade ele encontra lá dentro.
Uma crise profunda como a que atinge a economia mundial desde 2008 exige certo tipo de liderança. Em horas como essa, é bem mais importante ser capaz de evitar o pânico do que despertar entusiasmo.
Dificilmente se pode acusar Dilma de ter ficado parada. Os bancos governamentais agiram coordenadamente para colocar pressão sobre os juros dos bancos privados. Dilma promoveu uma série de isenções tributárias (incluindo a desoneração da folha de pagamento para vários setores), deu mais dinheiro para o BNDES emprestar, lançou um pacote de concessões ao setor privado na área de infraestrutura, e arriscou um protecionismo muito questionável.
Para tornar a redução de juros possível, a presidente arriscou seu capital político alterando a rentabilidade da poupança, o que foi uma jogada ousada. Alguns críticos têm reclamado da falta de reformas que beneficiem a economia no longo prazo, mas o foco atual do governo no curto prazo é menos um sintoma de nossa velha inércia do que a consequência do fato de que esse curto prazo que temos pela frente é muito mais perigoso do que os curtos prazos costumam ser: os curtos prazos não nascem todos iguais, e o atual é particularmente horroroso. Alguns dos que criticam o governo por miopia no meio de uma crise desse tamanho estão sofrendo de severa hipermetropia, mesmo se as reformas por eles defendidas forem uma excelente ideia e merecerem mesmo ser implementadas.
Se a crise durar menos do que se espera, é possível que as medidas tomadas até agora, ou outras da mesma natureza, sejam suficientes para blindar o Brasil contra os piores aspectos do desastre. Agora, podemos nos perguntar, quais as chances de a crise durar pouco?
Certas coisas que hoje não parecem prováveis precisariam acontecer. Nos Estados Unidos, algum acordo entre Obama e oposição precisaria ser celebrado para garantir que o governo jogue mais dinheiro na economia agora, estimulando-a, e se planeje para economizar mais (bem mais) quando a economia voltar a funcionar. Na zona do euro, a Alemanha precisaria aceitar ter uma inflação maior do que a dos países devedores (Grécia, Espanha, Portugal, Itália), em troca de promessas, críveis, de que esses países vão tentar reformar suas economias: quer dizer, o eleitorado alemão vai ter que aceitar riscos por causa dos países devedores, e o eleitorado dos países devedores vai ter que aceitar sacrifícios para limitar o risco dos alemães. E se vocês acharam que isso tudo já estava difícil, a China, que é quem costuma vender para essa turma toda (e comprar da gente), vai ter que se voltar mais para o mercado interno. Isso quer dizer mexer no arranjo que até agora deu muito certo: poupança altíssima, investimento altíssimo e dependência das exportações. Para a China desenvolver seu mercado interno, vai ter que implementar reformas dificílimas (na remuneração da poupança, na propriedade da terra, nas políticas sociais, no financiamento dos governos locais), e todas elas, sem exceção, ameaçam algum interesse poderoso na política chinesa.
Pode ser que tudo isso seja resolvido, ou, pelo menos, resolvido o suficiente para encaminhar a solução da crise, mas seria irresponsável apostar nisso. As exigências que a crise econômica está fazendo à política estão léguas além do que seria razoável ou parece factível. O cenário mais provável para os próximos anos inclui baixo crescimento entremeado com choques negativos, produzidos na tentativa de desemperrar os mecanismos políticos nos países desenvolvidos e na China.
Isso dificulta a realização do projeto da presidente e pode alterar drasticamente as condições políticas em que o “estilo Dilma” tem operado com sucesso. Convém aqui examinar o cenário pessimista, em que a crise bate fundo na economia brasileira, a arrecadação cresce devagar, o desemprego sobe – enfim, nada que nós nunca tenhamos visto acontecer.
Há, em primeiro lugar, o risco de o dilmismo entrar em conflito agudo com a herança de Lula. Se a situação piorar e a quantidade de recursos encolher, Dilma pode ter que escolher entre abandonar seu plano desenvolvimentista inicial ou sacrificar as conquistas sociais de Lula; isto é, escolher entre aumentar o investimento público ou manter os gastos sociais.
Caso opte por cortar os gastos sociais (o que me parece improvável), Dilma corre um sério risco de perder o apoio da base social do lulismo (os mais pobres). Isto é, Dilma teria que contar apenas com o apoio que conquista sozinha, sem o contágio da popularidade de Lula. O que hoje nela é visto como objetividade e determinação aos poucos seria reinterpretado como frieza e insensibilidade social. Se Dilma perde o lulismo (o que é diferente, vejam bem, de perder o PT), corre o risco de se aproximar demais da marca José Serra. É verdade que muitos eleitores de Serra na classe média têm se entusiasmado por Dilma, mas não sabemos se esse apoio resistiria a uma deterioração da economia ou a uma crise política mais séria. Por esses e outros riscos, seria bastante surpreendente se Dilma escolhesse sacrificar a herança de Lula.
Há, é claro, a possibilidade de abandonar a herança de FHC, uma proposta em cuja defesa, infelizmente, não faltará quem saia na esquerda. Isso poderia ser feito só pelo lado fiscal, aumentando o gasto com investimentos e com a área social muito além do que seria responsável, ou substituindo o comando do Banco Central por uma equipe mais dócil que aceitasse baixar os juros muito mais do que seria responsável. Implicaria, naturalmente, voltar a conviver com inflação mais alta.
Isso teria tudo para ser um desastre, porque – repitam 100 vezes comigo – a inflação sob controle é tão parte do lulismo quanto os gastos sociais: os aumentos da renda dos pobres seriam facilmente anulados por uma inflação só um pouco mais alta. Aqui também, cedo ou tarde, Dilma perderia o apoio dos mais pobres, além, é claro, de comprar brigas violentas com os setores que não gostavam de Lula, mas simpatizam com ela (parte da classe média, do empresariado etc.). Dilma perderia, definitivamente, sua reputação de competência gerencial, adquiriria a imagem de ideóloga populista radical (como a de Cristina Kirchner), seria vista como traidora de Lula, como destruidora do legado de FHC, e seu estilo “distante dos partidos” rapidamente apareceria como “incapaz de agradar quem quer que seja”. Os riscos associados a essa opção também a tornam improvável.
Ou seja, governar sem dinheiro durante as grandes crises cíclicas da economia moderna é uma desgraça, é horroroso, não aconselho a ninguém. Mas isso não quer dizer que, mesmo que a crise piore, não haja nada que Dilma possa fazer. Só não há nada que seja fácil. Em vez de crescer a partir das conquistas de FHC e Lula, Dilma teria que partir da solução dos problemas que os dois lhe legaram, em especial os dois citados acima: os juros muito altos e o pouco espaço no orçamento público para investimentos após a expansão dos gastos sociais.
Dilma poderia, por exemplo, tentar enfrentar a parte (vejam bem, é só uma parte) dos juros altos que, segundo gente que entende dessas coisas, é causada por mecanismos meio emperrados na economia brasileira. Não estou falando de ir lá no prédio do Banco Central e pedir para o Alexandre Tombini baixar os juros na marra (isso seria abandonar a herança do FHC). A ideia é o governo economizar dinheiro (sem isso a conversa não vai muito adiante) e tentar resolver imperfeições nos mecanismos da economia brasileira que mantêm os juros em um patamar alto demais para padrões internacionais. A complexidade do problema é infernal, e a coisa não é para amadores.
Se Dilma tentar esse caminho e der errado, pode acabar abandonando a herança de FHC involuntariamente, com as consequências já previstas. Mas, se der certo, será naturalmente um enorme sucesso, mesmo que suas consequências só sejam visíveis alguns anos depois (com a possibilidade, inclusive, de algum outro presidente colher esses benefícios, e Dilma jamais receber qualquer crédito).
Uma outra alternativa seria preservar os gastos sociais de Lula e “tucanizar” um pouco suas propostas para aumentar o investimento, para que não concorra com os gastos sociais pelos poucos recursos no orçamento. O uso de concessões nos serviços públicos, como foi feito recentemente com o pacote para rodovias e ferrovias, pode ser interpretado dessa forma. A interpretação corrente, porém, não é essa: é que Dilma descobriu que o Estado brasileiro é ainda mais ineficiente do que ela imaginava. Isso é parte da verdade, mas não acho que seja tudo, ou o mais importante. Mesmo se o Estado fosse inteiramente capaz de investir os recursos que agora esperamos que a iniciativa privada invista, essa seria a melhor maneira de gastar esse dinheiro? Politicamente, creio que não: é melhor para Dilma manter as políticas sociais, e o apoio político que elas trazem entre os pobres.
Leitores diferentes terão opiniões diferentes sobre a probabilidade de essa estratégia ser eficiente, mas, a crise piorando, não haverá como fazer desaparecer a escolha entre ampliar gastos sociais ou ampliar investimentos. Ainda na linha de transferir a responsabilidade do investimento para o setor privado, o governo poderia promover algumas reformas tributárias ou regulatórias que favorecessem a atividade empresarial sem conflitar demais com sua posição de esquerda. Por exemplo, duvido que muita gente na esquerda se importasse caso Dilma tivesse como objetivo melhorar a posição do país nos rankings de ambiente de negócios (dificuldade de abrir e fechar uma empresa, complexidade do sistema tributário etc.). Isso seria visto com bons olhos por novos simpatizantes de Dilma na velha classe média, mas é possível que também o fosse na nova, a classe C do Lula: ainda não sabemos o tamanho do potencial empreendedor ali travado até agora.
A estratégia tucanizante ofende profundamente muita gente no PT (bem como nos outros partidos de esquerda da base governista), mas é provável que, em algum momento, o partido seja forçado a escolher entre suas preferências por estatismo econômico e por políticas sociais generosas. O discurso da oposição, em especial do PSDB, pode ser fortalecido, o que, como já vimos, aumenta o preço dos membros da base aliada. No mínimo, o debate ideológico pode ser reiniciado, o que tende a dissolver a imagem de uma Presidência puramente técnica. Se a estratégia der errado, Dilma realizará a façanha de não agradar ninguém; mas, se der certo, reforçará suas credenciais de pragmática e acima de interesses partidários mesquinhos. E, naturalmente, como em tudo que envolve concessão pública, haverá denúncias de corrupção (várias delas, sem dúvida, verdadeiras), que ameaçarão um aspecto crucial da imagem da presidente.
A política brasileira está organizada muito mais em torno da defesa das conquistas de FHC ou de Lula do que a partir de projetos de resolução das tarefas que nenhum dos dois resolveu. Seria desastroso se qualquer das duas heranças fosse desperdiçada, e, se o preço para preservá-las for se mover mais lentamente, eu faria isso. Mas a margem para Dilma se desviar desses problemas é bem menor do que a de seus antecessores, e a situação internacional não está com cara de que vai ampliá-la. É possível que, dentro de seu estilo de tocadora de projetos, Dilma acabe implementando uma grande reorganização da discussão pública brasileira, quer queira, quer não.
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