Uma alternativa promissora ao uso de cobaias é uma espécie de organismo artificial – chamado Human on a Chip – que reúne células de vários órgãos num único dispositivo ILUSTRAÇÃO: ANDREW TISLEY
O fim das cobaias
Será possível deixar de sacrificar animais em nome da ciência?
Roberto Kaz | Edição 137, Fevereiro 2018
Alguém aqui é ativista?”, perguntou o biólogo Octavio Presgrave para os nove alunos à sua frente, que se entreolharam em silêncio. “Só por curiosidade. Eu me dou bem com eles.” Era uma terça-feira de julho do ano passado na Fundação Oswaldo Cruz, centro de referência em biologia e saúde pública localizado no Rio de Janeiro. Presgrave ministrava a primeira aula de um curso sobre métodos alternativos ao uso de cobaias, parte de um mestrado profissional em ciência de animais de laboratório.
“Sou biólogo, trabalho há 32 anos com métodos alternativos”, explicou, enquanto usava um controle remoto para projetar imagens numa tela, para onde se voltavam todas as atenções. Mencionou um projeto de lei federal que visa proibir o uso de animais em pesquisa de cosméticos (“É um erro”), e depois resumiu, de forma breve, os passos que levaram às tentativas recentes de reduzir o uso de cobaias em laboratório (“Foi só no século XVIII que se colocou em questão, pela primeira vez, se os animais sofriam”).
A sala, pequena, era decorada com uma espécie de anúncio, em forma de pôster, onde se viam as imagens de 21 camundongos comercializados por um laboratório americano. Do lado de fora, no corredor, havia outro cartaz – dessa vez celebrando as quatro “Maravilhas da Engenharia”. A primeira era a Estátua da Liberdade. A segunda, o Big Ben, e a terceira, um pagode japonês. A quarta e derradeira “maravilha” era um camundongo da raça Black-6 – de longe, a mais usada em pesquisa laboratorial.
“Sou fã de Darwin”, continuou Presgrave, em tom de piada. “Mas ele teve culpa ao apontar a proximidade entre humanos e outros animais.” A ideia de continuidade entre as diversas espécies, tal como descrita pelo naturalista inglês, ajudou a impulsionar as pesquisas com bichos a partir do século XIX. Camundongos, ratos, cachorros e outros mamíferos passaram a ser usados em testes laboratoriais, a fim de saber se certas substâncias serviriam aos seres humanos.
Presgrave apertou um botão no controle remoto, fazendo surgir na tela a imagem de um coelho sem pelos na região do tórax. “No passado, era preciso raspar a cobaia para testar se um protetor solar era tóxico. Uma parte da pele era exposta à luz com o produto, outra era exposta sem, para comparar. Mas agora já existe um método alternativo. É só aplicar o protetor num conjunto de células, e colocar essas células dentro de uma máquina.”
Antes de dar a aula por encerrada, o biólogo mostrou a lista de onze princípios éticos estabelecidos pela Sociedade Brasileira de Ciência em Animais de Laboratório, da qual ele é vice-presidente. O primeiro artigo defende que “é primordial manter posturas de respeito ao animal, como ser vivo, e pela contribuição científica que ele proporciona”. Já o segundo postula que “a sensibilidade do animal é similar à humana no que se refere a dor, memória, angústia e instinto de sobrevivência”. O texto projetado na parede da sala lembrava ainda que, apesar da semelhança entre humanos e cobaias, elas estavam impossibilitadas de se proteger das “manobras experimentais e da dor” que essas experiências pudessem causar.
Presgrave lembrou que gatos já haviam servido a pesquisas sobre o sistema circulatório, cães elucidaram dúvidas sobre o mecanismo urinário, e pequenos roedores ajudaram a entender os meandros da respiração. Após uma pausa, lançou a pergunta: “É correto experimentar no animal o que moralmente não poderia ser experimentado no homem?”
Oremédio para a dor de cabeça, a vacina contra a gripe, o repelente contra o mosquito, o soro para a picada de cobra. O antialérgico, o antitérmico, o anti-inflamatório, o antibiótico. O Dorflex, o Rivotril, o Sonrisal, o Neosoro, o Viagra. Todo remédio disponível no mercado – da pomada mais simples ao mais pesado quimioterápico – só chegou às prateleiras das farmácias porque foi testado, antes, em milhares de animais.
Para testar um remédio em um bicho, é preciso inoculá-lo com a doença (ou ao menos induzir algum sintoma). Como saber se uma substância reduz a obesidade? Tornando um camundongo obeso por manipulação genética. Como saber se um analgésico alivia a dor? Colocando um rato sobre uma chapa quente, para que ele sinta dor. Como testar um fármaco contra o vício em cocaína? Viciando um macaco em cocaína.
Um dia qualquer da minha vida, por exemplo, começa com um antidepressivo. Para que esse remédio chegasse à minha gaveta, milhares de camundongos foram separados, ainda filhotes, de suas mães – e depois medicados. Uso lentes de contato, que atravessam a noite mergulhadas numa solução aquosa. Para que esse líquido chegasse com segurança aos meus olhos, milhares de coelhos tiveram seus olhos testados (vários deles com fórmulas anteriores, possivelmente tóxicas, que não foram aprovadas). Animais ajudaram a desenvolver o meu creme contra psoríase, o remédio que tomo para dormir, o colírio que aplico diariamente em meu gato.
É possível, também, expandir a escala. Se a expectativa de vida do brasileiro é de mais de 75 anos – contra 50 anos em meados do século passado –, isso deveu-se, em parte, ao uso de animais na biomedicina. Hoje temos transplante (aprimorado em porcos), vacina (desenvolvida em cavalos) e toda sorte de remédio para controle cardíaco (testados em camundongos, ratos, coelhos, carneiros e cachorros). O debate atual sobre a reforma da Previdência está diretamente ligado aos avanços obtidos em pesquisas com animais.
Bichos servem à ciência desde o século II, quando Galeno de Pérgamo, médico influente do Império Romano, passou a abrir porcos e primatas vivos para entender o funcionamento dos órgãos (a dissecção de humanos era proibida por lei, proibição que foi mantida pelo cristianismo ao longo de toda a Idade Média). Mas foi a partir do século XIX que a experimentação animal ganhou um papel central na pesquisa médica. A guinada foi motivada, em parte, pela publicação em 1859 de A Origem das Espécies, o livro de Darwin que desvendou a proximidade entre o homem e os demais animais. Já a responsabilidade prática ficou por conta do médico francês Claude Bernard, que escreveu, seis anos depois, um livro chamado Introdução ao Estudo da Medicina Experimental.
À época, a Europa era varrida por epidemias de tuberculose, tifo e difteria. Bernard passou a defender uma ideia contraintuitiva até então: de que o tratamento para as doenças humanas poderia ser encontrado em pesquisas com animais não humanos. “Investigações de substâncias medicinais ou tóxicas [em animais] são totalmente aplicáveis ao homem do ponto de vista terapêutico”, escreveu, defendendo que o efeito era o mesmo, “a não ser por diferenças em grau”.
Bernard dissecou, vivos, dezenas de cães, inclusive o da sua própria casa, em nome do avanço da ciência. “O fisiologista não é um homem do mundo”, escreveu em seu livro. “Não ouve os gritos dos animais, não vê o sangue que se alastra. Só vê a ideia, só observa os organismos que lhe escondem problemas que quer descobrir.”
Na mesma obra, fazia uma comparação provocativa, em defesa própria: “Seria estranho se reconhecermos o direito do homem de fazer uso dos animais em vários âmbitos da vida, para serviços domésticos, comida, e proibir o uso para sua própria instrução em uma das ciências mais úteis para a humanidade. Nenhuma hesitação é possível; a ciência da vida só pode ser estabelecida pelo experimento, e podemos salvar vidas apenas após sacrificar outras.”
Hoje, estima-se que ao menos 100 milhões de animais sejam sacrificados, a cada ano, para salvar vidas humanas (sem contar os bilhões que nos servem de alimento). Os chamados métodos alternativos são a principal aposta da ciência para tentar diminuir esse número.
Em linhas gerais, um método alternativo é aquele que corresponde a um teste com animal – mas sem a necessidade de utilização de um animal. O problema é que o conceito de “animal” é um tanto relativo aos olhos das leis internacionais que regem a pesquisa científica. Via de regra, apenas os vertebrados são protegidos. “Você tem que seguir várias normas para usar cinco ratos, mas pode usar 5 mil abelhas da forma como quiser”, explicou Octavio Presgrave, durante sua aula na Fiocruz. Embriões, mesmo os de vertebrados, também podem ser utilizados, por não disporem de um sistema nervoso formado (o que anula a possibilidade de dor). Há métodos alternativos com embriões de peixe e galinha.
Métodos alternativos sempre atendem a um objetivo específico (ou “desfecho”, no jargão científico). O BCOP – sigla em inglês para o teste de opacidade e permeabilidade da córnea bovina – tem o objetivo de atestar se uma substância causa corrosão ocular (o método é considerado alternativo por usar um órgão, o olho do boi já morto, descartado pela indústria alimentícia). O MAT – teste de ativação de monócitos – usa sangue humano como meio de avaliar a segurança de uma vacina. Há ainda a pele reconstituída, que se vale de células, também humanas, para testar o potencial tóxico de um cosmético (a maior parte das empresas de cosméticos já aboliu os testes com animais).
Um dos métodos alternativos que mais tem mobilizado os cientistas, chamado Human on a Chip, mistura diferentes tipos de células humanas, de vários órgãos, num aparato que lembra uma fita cassete. O tal “chip” difere dos demais métodos de substituição do uso de animais por não estar associado a um único tipo de teste ou pesquisa, mas por poder gerar uma possibilidade enorme de desfechos – de testes toxicológicos à pesquisa de novos fármacos.
A ideia do aparato, como o nome sugere, é resumir o corpo humano em um pequeno objeto (a palavra “chip”, nesse caso, não remete a chip de computador, e sim ao sentido literal, que em inglês significa “lasca”). Nessa “lasca de humano”, feita de plástico, vidro e silicone, há uma série de compartimentos, cada qual desenhado para receber células de um órgão específico. Num deles, por exemplo, o pesquisador pode colocar células de rim. Noutro, intestino. Se o chip tiver quatro entradas, ele pode acrescentar epiderme, fígado, ou células de qualquer outro órgão desejado. Se chegar a dez compartimentos (modelo que ainda está sendo desenvolvido), o cientista poderá preencher a pequena lasca com todos os órgãos vitais – e então utilizá-la na pesquisa que bem entender.
Órgãos em miniatura – chamados de organoides – não são novidade na ciência. Em alguma escala, são produzidos desde os anos 70, embora a técnica só tenha sido consolidada na década passada. A novidade do chip está em juntá-los num só objeto, para testar a reação em cadeia dos organoides. “Antes havia dois tipos de teste: aqueles feitos em animal ou os que eram feitos em tecido humano não sistêmico”, explicou-me o médico Eduardo Pagani, referindo-se ao cultivo isolado de células. “O chip, que integra vários tipos de células, fica no meio do caminho.”
Pagani é gerente de desenvolvimento de fármacos do LNBio, o Laboratório Nacional de Biociências – um centro federal de excelência, voltado à pesquisa biológica, que existe desde 2009 em Campinas. Foi por sugestão dele – e por decisão da Renama, a Rede Nacional de Métodos Alternativos do Ministério da Ciência – que o LNBio passou a estudar o Human on a Chip, a partir de 2014.
“A Renama tinha recebido uma verba do Ministério da Saúde para investir em linhas de pesquisa que diminuíssem o uso de animais”, contou Pagani, durante uma conversa em seu gabinete, no fim do ano passado. “Então em 2014 eu fui a um congresso de métodos alternativos, em Praga.” Foi quando ouviu falar pela primeira vez do chip. “Eu não tinha ideia da existência desse negócio.”
Pagani disse ter ficado “maravilhado” com a novidade. “Eu tinha viajado para lá disposto a adquirir uma tecnologia chamada Pathways of Toxicity, que fazia muito sucesso naquele momento”, lembrou. “Mas voltei tendo que convencer o pessoal da Renama a investir em outra história.” No final daquele ano, a verba de 1 milhão de reais foi liberada.
Foi na Inglaterra, em 1876, que surgiu a primeira lei a regular a experimentação com animais (a título de comparação, isso só ocorreria no Brasil em 2008). Fazia então onze anos que o médico francês Claude Bernard publicara seu livro, contribuindo para difundir a vivissecção pela Europa. Fazia também um ano que o bacteriologista croata Emanuel Klein fora inquirido, a respeito da pesquisa com animais, por uma comissão do Parlamento britânico. “Um pesquisador não tem tempo para pensar sobre o que um animal vai sentir ou sofrer”, respondeu Klein, com indiferença, a respeito dos seres que abria sem anestesia em seu laboratório. Publicada nos tabloides, a frase acabou por fortalecer o movimento antivivissecção.
A Inglaterra já despontava, então, como o país de referência no campo do direito dos animais, posto que ocupa até hoje. Ainda em 1789 o filósofo inglês Jeremy Bentham postulou a primeira pergunta a problematizar a experiência dos bichos (e a contestar o modelo do filósofo René Descartes, que via os animais como autômatos, sem capacidade de pensar sobre a própria existência e, portanto, sem alma). “A questão não é se eles pensam ou falam”, escreveu Bentham. “A questão é: eles sofrem?” Em 1822, o Parlamento britânico aprovaria a primeira lei a versar sobre o sofrimento de uma espécie que não a nossa (no caso, bois, cavalos, ovelhas e outros bichos de fazenda). Dois anos depois surgiria o primeiro grupo civil organizado em defesa da causa animal.
Foi também na Inglaterra que dois jovens cientistas – o zoólogo William Russell e o microbiologista Rex Burch – começaram a visitar, em 1954, uma série de laboratórios que trabalhavam com animais. Cinco anos depois, publicaram um livro técnico, defendendo que o resultado de uma pesquisa dependia, em muito, do estado mental das cobaias. “Há boas razões para supor que a angústia [vivenciada pelos bichos] acaba por acarretar em escassez de informações”, escreveram, acrescentando que um animal em perigo só era capaz de dar informações sobre “a sua própria miséria”. Do livro acabou surgindo o conceito dos 3Rs, acrônimo para as palavras replacement, reduction e refinement, marco zero de todo método alternativo que substitui, reduz ou refina o uso científico de animais.
O Human on a Chip se encaixa no escaninho dos métodos substitutivos (o primeiro dos 3Rs): ou seja, aqueles que eliminam ou diminuem drasticamente o uso de cobaias. Os métodos de redução (o segundo “R”) consistem em mudanças de protocolo, como filmar o experimento. Uma vez registrado em vídeo, é possível acessar a gravação, em casos de dúvidas sobre alguma etapa da pesquisa, diminuindo assim a necessidade de usar novos animais no processo. Já os de refinamento (o último dos 3Rs) são os que geram mais controvérsia, por pressuporem uma certa resignação: a ideia básica é melhorar a vida dos bichos que nascem e morrem no laboratório.
“Refinamento passa por administrar anestésico ou analgésico durante o experimento, ou por manter os animais em grupo no caso em que são gregários, por exemplo”, explicou Octavio Presgrave durante sua aula na Fiocruz, no ano passado.
Presgrave mencionou um experimento real – e algo anedótico – realizado nos Estados Unidos. A ideia era inferir se o desconforto sentido por funcionários de um laboratório afetava as cobaias. Para isso, o hormônio do estresse, chamado cortisol, era medido nos camundongos em duas situações. Na primeira, os tratadores manuseavam os animais enquanto ouviam, no fone de ouvido, as músicas de que gostavam. “Quem gostava de jazz ouvia jazz, quem era de heavy metal ia de heavy metal”, explicou. Depois, a lógica era invertida, e os tratadores passavam a escutar o que detestavam. “E sabe o que aconteceu?”, perguntou Presgrave. “O cortisol dos bichos aumentou!” Concluiu, após uma pausa: “Animal sente dor e angústia como a gente. Camundongo não é um tubo de ensaio com patas.”
Existem ao menos vinte empresas – nenhuma brasileira – que fabricam o Human on a Chip (ou Organs on a Chip, como o aparato também é chamado). As duas maiores são a americana Wyss, sediada na Universidade Harvard, e a alemã TissUse. O LNBio trabalha com o da empresa alemã. “É que o Wyss só vende o chip com o organoide já pronto, ao passo em que a TissUse ensina o comprador a produzir os organoides”, explicou Talita Marin.
Marin é uma mulher de cabelos lisos, de 37 anos, que coordena o Laboratório de Cultivo de Tecidos Humanos do LNBio. Especializou-se no manejo, in vitro, de células cardíacas – tema que estuda desde o mestrado, quando abria camundongos para fazer suas pesquisas. “Eu estreitava o canal da aorta com um clipe ou uma linha, para provocar uma hipertrofia no coração”, explicou. Quando o bicho piorava, ela administrava remédios que melhorassem a disfunção – e depois fazia a eutanásia, para poder analisar os órgãos. “É uma cena de horror”, contou-me, quando a visitei pela primeira vez no LNBio, em meados do ano passado. “Você vê o bicho te olhando, o coração dele palpitando. Dá muito dó.”
Em paralelo, Marin passou a cultivar, in vitro, um tipo de célula cardíaca do camundongo. “Eu mimetizava a hipertrofia diretamente na célula, para ter um sistema de estudo isolado”, explicou. O experimento acabou por render-lhe um convite para continuar a pesquisa, durante o doutorado, na Universidade Harvard. Em 2014, já trabalhando no LNBio, seria chamada por Eduardo Pagani para coordenar o estudo do chip.
A exemplo do médico, Marin também não ouvira falar do chip. “Mas aceitei, mesmo sem saber onde eu estava me metendo”, disse. Passou o primeiro semestre de 2015 estudando que chip usaria, com que linhagens de célula, até decidir pelo da empresa alemã. Em setembro daquele ano, viajou com mais dois pesquisadores a Berlim. “Fiquei duas semanas, para aprender a manipular o chip e a fazer o organoide de fígado.” De volta ao Brasil, produziu o organoide de intestino por conta própria. “A gente já tinha noção básica de cultura celular.” Os dois órgãos, explicou Marin, são os mais importantes para testes de fármacos. “Eles respondem pela absorção dos nutrientes.”
Produzir um organoide é um processo complexo, que envolve células de diferentes linhagens – geralmente de origem cancerígena –, que precisam ser reconfiguradas, em laboratório, de forma a cumprir novos papéis (esse processo leva o nome técnico de diferenciação).
Marin diz ter passado seis meses consolidando a produção, até que pudesse testar os organoides no chip. No de fígado, as células passaram a ocupar a função do hepatócito (responsável pela metabolização), colangiócito (excreção) e célula estrelada (que, desregulada, pode provocar fibrose). “Óbvio que não é igual a um órgão normal, mas é o mais avançado que temos”, explicou a pesquisadora. No intestino, as células passaram a atuar como enterócito (responsável pela absorção) e célula caliciforme (produtora de muco). “Um intestino humano tem ao menos mais dois tipos de células, mas nesse momento, essas são as que importam para o meu experimento.” Comparou: “Se eu fizesse um pulmão para o chip, ele não precisaria respirar, mas precisaria ter uma célula chamada pneumócito, que reage bem em estudo de toxicidade.”
Marin pegou um recipiente com um líquido transparente, onde havia vários pontos brancos que lembravam grãos de areia. “São os fígados”, explicou. “Cada um tem 50 mil células. Não podem ter mais porque o centro da esfera morreria sem oxigênio.” Em seguida mostrou-me os organoides de intestino (na verdade, uma membrana semipermeável de 1 centímetro quadrado, sobre a qual as células intestinais são depositadas). “No corpo, o intestino filtra os nutrientes para a corrente sanguínea. Aqui ele faz a mesma coisa, através dessa membrana.”
A pesquisadora abriu uma estufa, ajustada à temperatura do corpo humano, de onde tirou um recipiente com um organoide de coração. Colocou-o sob a lente de um microscópio, e pediu que eu observasse. “Está vendo pulsar?”, perguntou. “Foi feito há uma semana, a partir de célula-tronco.” Explicou que apesar do movimento, as células não bombeavam sangue. Essa responsabilidade, por assim dizer, ficava a cargo de uma máquina, chamada unidade de controle, que fazia um barulho grave e marcado. “Ela bate sessenta vezes por minuto, enviando ar comprimido para o chip, na mesma frequência do nosso coração.”
Desenvolver um método alternativo à pesquisa com animais é custoso e demorado. Para ter utilização comercial, ele precisa atravessar um processo de validação, que pode durar mais de dez anos, divididos numa série de fases. Na primeira fase – em que se encontra o Human on a Chip –, a pesquisa é tocada por laboratórios isolados, que atestam se o método merece ser estudado a longo prazo. Comprovada a aposta, parte-se para a segunda etapa, em que uma mesma pesquisa é repetida em pelo menos três laboratórios. Na última fase, o estudo passa a ser feito em larga escala (com mais laboratórios e mais substâncias avaliadas). O processo precisa ser coordenado por um centro público de validação.
Existem dois grandes centros internacionais de validação: o ICCVAM – sigla em inglês para Comitê de Coordenação Interagencial para Validação de Métodos Alternativos –, sediado nos Estados Unidos, e o ECVAM – o Centro Europeu para Validação de Métodos Alternativos –, o mais antigo deles, criado em 1991 na União Europeia. A validação do Human on a Chip deve passar por ambos – e, eventualmente, também pelo BraCVAM, o Centro Brasileiro para Validação de Métodos Alternativos, sediado na Fundação Oswaldo Cruz, que é comandado justamente pelo biólogo Octavio Presgrave.
Presgrave é um tipo baixo e redondo, de 55 anos, que combina o sotaque carioca com uma voz mansa e arrastada. Na Fiocruz, chefia também a Comissão de Ética no Uso de Animais e o INCQS, um laboratório responsável por controlar a qualidade de soros, vacinas, remédios, alimentos e cosméticos disponíveis no mercado. De quebra, ainda toca bateria numa banda de rock, dessas de fundo de garagem, que se reúne em estúdio uma vez por semana.
Ele trabalha numa sala simples, de frente para uma janela estilhaçada por uma bala de fuzil. “Foi num fim de semana, antes de eu ser diretor”, explicou, com naturalidade (a Fiocruz é rodeada por favelas dominadas pelo tráfico). Começou a se interessar pelo campo da metodologia alternativa em 1986. Na época, ele usava ratos e coelhos para testes de controle toxicológico. “Eu trabalhava bem com animal, como trabalho até hoje”, comentou. “Mas, claro, me preocupava com o bem-estar deles.”
Além disso, Presgrave queria encontrar métodos mais confiáveis. O animal de laboratório, por mais controlado que seja, sempre estará sujeito a variações biológicas, o que torna o resultado do que está sendo testado, em alguma medida, uma reação particular daquela cobaia.
Em 1989, Presgrave publicou o primeiro de vários estudos a respeito do tema. Comparava o teste de DL50 – em que a dose tóxica de uma substância é determinada a partir da morte de metade das cobaias – com quatro outros métodos. Mostrava que um resultado obtido com a morte de 77 camundongos (no DL50) poderia ser alcançado com 71 animais a menos (num método chamado de “dose letal aproximada”). Apontava também que o DL50, apesar de exigido por agências reguladoras, “depende de tantas variáveis, como espécie e raça do animal, sexo e idade, dieta, tempo de jejum, temperatura, umidade”, que deveria ser visto como um “resultado único”, irreplicável, em vez de “uma constante biológica”.
Apartir dos anos 90, o estudo de métodos alternativos passou a pipocar, de forma pontual, em um ou outro laboratório do país. Na USP e na UFRJ surgiram trabalhos com pele artificial. Na Universidade Federal de Santa Maria, trocou-se o coelho pelo MAT, o teste de ativação de monócitos, que usa sangue humano. “A gente se encontrava em congressos, mas as iniciativas eram isoladas”, explicou Presgrave. Em 2013, o BraCVAM foi criado. Desde então, o centro brasileiro coordena a validação de um método que tenta substituir o teste de corrosão ocular – feito em coelhos –, pela membrana de um ovo embrionado de galinha. O método se chama Het-CAM (em inglês, Hen’s Egg Test on Chorioallantoic Membrane).
Numa terça-feira do ano passado, fui à Fundação Oswaldo Cruz para acompanhar um dia de pesquisas do Het-CAM, num laboratório sem ar-condicionado, atulhado de caixas de ovos, onde trabalhava a tecnologista Luciana Madureira, de 40 anos. “Os ovos foram pegos ontem, em Bio-Manguinhos”, explicou Madureira, referindo-se à unidade da Fiocruz responsável pela produção de vacinas (a da febre amarela é feita com embriões de galinha). “Eles produzem 8 mil ovos por semana. Nós pegamos sessenta.”
Os ovos estavam no décimo dia de incubação – o último antes que o embrião comece a formar o sistema nervoso. Madureira pegou uma tesoura, e passou a abrir um buraco, do tamanho de uma moeda, na parte superior de um dos ovos. Em seguida usou uma pinça para retirar uma das duas membranas que envolvem o embrião (a membrana mais interna, chamada cório-alantoide, é a que serve ao Het-CAM). Era possível ver o embrião se mexendo.
“Hoje vou testar três cremes para vitiligo”, explicou, enquanto aplicava o primeiro creme sobre a membrana. Contou vinte segundos, retirou o creme e ligou um cronômetro por mais meio minuto para observar a reação da membrana. Os vasos sanguíneos começaram a estourar. “Olha, deu uma hemorragia”, ela disse – o que apontava para a possibilidade de o creme também ser irritante ao olho humano. O resultado foi anotado numa tabela, e o ovo foi colocado num congelador, onde permaneceria até ser incinerado.
Apesar de usar um ser vivo em formação, o Het-CAM é considerado um método alternativo porque embriões não costumam ser protegidos por lei. Ele é utilizado na França e na Alemanha, mas enfrenta resistência nos Estados Unidos e no resto da Europa. “Já houve duas tentativas de validação não concluídas, por falta de informação suficiente”, explicou-me Octavio Presgrave. Por ser barato – e por já dispor de uma literatura científica considerável a seu respeito –, o método acabou sendo adotado pelo BraCVAM.
Se validado, a ideia é que o Het-CAM sirva de alternativa, junto com outros métodos, ao teste ocular de Draize (técnica em que uma substância é pingada no olho de um coelho, para atestar o perigo de ser usada por humanos). A validação tenta provar que a reação da membrana a uma substância pode ser comparada ao efeito que essa mesma substância teria na nossa conjuntiva. Presgrave estima que o processo ainda deva exigir pelo menos mais dois anos de pesquisa.
Avalidação do Human on a Chip ainda está em fase bem anterior. Primeiro, os laboratórios têm de provar que os organoides – não só os de fígado e intestino, mas também os de coração, pulmão, cérebro, pâncreas, estômago, rim e outros mais – interagem bem dentro do chip. Para que isso ocorra, é preciso haver uma espécie de sangue sintético, chamado de meio de cultura, que seja aceito por todo organoide. “O problema é que cada célula funciona melhor num meio de cultura específico”, explicou Talita Marin. Por ora, o máximo que se conseguiu foi a interação satisfatória de quatro organoides.
O segundo desafio é mostrar que o chip produz resultados confiáveis. Por isso, a pesquisa no LNBio já envolve o teste de fármacos. Os primeiros experimentos foram feitos com alpidem, um ansiolítico retirado do mercado, por ser muito tóxico ao fígado. “Era um bom marcador para testar a reação do nosso organoide”, explicou Marin. Os testes atuais, bem mais específicos, são com paracetamol, um dos mais populares analgésicos do mundo.
“Escolhemos o paracetamol por três razões”, ela disse. “A primeira é que ele também danifica o fígado, quando usado em altas doses” (a toxicidade é bem-vinda por criar um parâmetro de comparação com o corpo humano: se é tóxico no órgão, também tem que ser no organoide). A segunda razão é que existe uma ampla literatura médica disponível sobre o paracetamol. “O chip é uma variável desconhecida”, continuou Marin. “Então eu preciso ao menos usar uma droga conhecida, bem estudada, para me ajudar na hora de comparar os resultados.” A terceira é que a substância é quase toda metabolizada no fígado. “Não precisaria do rim, que ainda não desenvolvi. É uma droga adequada ao meu sistema.”
A ideia é testar o paracetamol até encontrar uma dose que seja absorvida sem danificar os organoides (para fazer isso num camundongo, seria necessário administrar a droga por via oral ou intravenosa, depois coletar o sangue para avaliação e, por fim, matar a cobaia). Uma vez alcançada a dose ideal, a equipe de Marin precisa criar uma equação que relacione a absorção do remédio, pelos organoides do chip, ao efeito que ele tem no corpo humano. “Aqui não tem vaso sanguíneo, não tem hormônio, rim, bile, então a equação não pode ser simples”, explicou. Mais adiante, Marin pretende partir para outros fármacos. “Vamos fazer isso com dez ou vinte substâncias, até chegar a uma equação segura.”
Oavanço dos métodos alternativos não é movido apenas pela preocupação com o sofrimento dos bichos. Na ciência, há quem fale em “esgotamento do modelo animal” nas pesquisas. O câncer, por exemplo, já foi curado dezenas de vezes em camundongos. A depressão, que tem quadro oscilante em humanos, só pode ser mimetizada de forma precária em roedores. A septicemia gera efeitos distintos, a depender do animal estudado.
“Toda semana publicamos mensagens encorajadoras da contínua guerra contra doenças e problemas de saúde”, dizia um editorial de 2010 da revista Nature. “Vias genéticas são elucidadas, drogas promissoras são identificadas e modelos animais doentes são trazidos de volta à saúde. Ainda assim, o número de doenças humanas que pode ser eficientemente tratado permanece baixo. A incômoda verdade é que cientistas e clínicos têm sido incapazes de converter os avanços na biologia básica em terapias.”
Decorrem, daí, os casos esporádicos de retirada de um remédio do mercado. A talidomida – substância sedativa, testada com sucesso em ratos – resultou em milhares de bebês com malformação das extremidades. O rofecoxibe – princípio ativo do anti-inflamatório Vioxx, famoso nos anos 2000 – foi usado por 80 milhões de pessoas até ficar provado que aumentava o risco de enfarto. Noventa por cento dos remédios que funcionam em cobaias são reprovados nos testes com humanos. Fazer um remédio chegar à farmácia pode custar mais de 1 bilhão de dólares.
Há ainda um segundo problema, de ordem hipotética, que surge quando se inverte a lógica. Se um remédio que funciona em cobaias tende a falhar em humanos, é de se supor que essa mesma situação ocorra na direção oposta. “O FDA [sigla do departamento que regulamenta o uso de remédios nos Estados Unidos] diz que é preciso testar 5 mil substâncias para achar uma que mereça ser estudada”, explicou-me o biólogo Thales Tréz, de 40 anos. “Imagina quantas dessas substâncias poderiam ter efeito em humanos, mas foram descartadas por não mostrar resultado em animais?”
Tréz é um ativista com formação científica, que leciona na Universidade Federal de Alfenas, além de presidir um instituto, chamado 1R, que prega a substituição total dos testes com animais. Ele é vegetariano, mas não vegano, o que lhe permite tomar remédios de forma esporádica. “Sim, há uma incoerência nisso”, admitiu. “Se houvesse um antibiótico ou anti-inflamatório que não houvessem sido testados em animal, eu usaria. Mas não há.”
Ele diz nunca ter usado uma cobaia, mesmo quando estudava biologia na Universidade Federal de Santa Catarina – época em que chegou a resgatar um cachorro de um laboratório, na véspera de uma aula prática. “Ele seria anestesiado e aberto para que nós estudássemos o funcionamento do coração”, contou. “A ideia era observar como o batimento cardíaco mudava, dependendo da substância injetada. Depois ele seria eutanasiado.” O cachorro, vira-lata, acabou sendo adotado – ao passo que o biólogo foi fichado pela polícia, sob a acusação de roubo de patrimônio público. “Mas no semestre seguinte a universidade trocou os animais por vídeos de cirurgias antigas”, disse, com orgulho. “Teve um efeito positivo.”
Tréz defende uma tese controversa – exposta num livro recente, de sua autoria –, de que a experimentação animal é nociva ao avanço da ciência. “O que eu proponho é que a fase pré-clínica”, ou seja, aquela dos testes com cobaias, “já esteja ligada à nossa espécie”, explicou. Hoje, um remédio não pode ser testado em uma pessoa antes de passar pelo crivo de três espécies de animais. A regra, que visa proteger os humanos, surgiu depois que o Tribunal de Nuremberg expôs as atrocidades em nome da ciência ocorridas nos campos de concentração nazistas. O que os ativistas afirmam é que as atrocidades continuam a ser praticadas, só que em animais, em laboratórios – caso em que são chamadas de “experimentos científicos”.
“É possível fazer pesquisa com humanos de forma ética”, continuou Tréz, mencionando o caso dos remédios contra o vírus HIV, testados em pessoas, com consentimento, por falta de uma cobaia satisfatória. Octavio Presgrave, do BraCVAM, tem uma visão mais pragmática. Ele diz que a substituição total até poderá ocorrer, mas não num futuro próximo. “Gosto do Thales, ele é bastante ponderado”, comentou, recentemente, pelo telefone. “Mas para certas pesquisas ainda não há alternativa. Só dá para saber se uma substância faz mal ao feto testando com animal.” Citou também os testes de toxicidade repetida – em que um animal passa meses sendo medicado, para saber se o acúmulo de um remédio pode intoxicá-lo. “O Human on a Chip até pode ser um bom instrumento para substituir os animais nesse tipo de experimento.” Mas no futuro, frisou o biólogo. “Por enquanto não dá.”
Foi a partir da segunda metade do século XX que o ativismo em defesa dos animais ganhou força. A guinada foi provocada justamente pelo o avanço da ciência – em particular, pela corrida espacial, que enviou cachorros e macacos ao espaço durante a Guerra Fria. O voo sem volta da cadela Laika, em 1957, gerou protestos na Inglaterra e nos Estados Unidos, onde várias pessoas se reuniram em frente à sede das Nações Unidas, em Nova York.
Com a publicação em 1975 do livro Libertação Animal, do filósofo australiano Peter Singer, passou-se a contar com uma base teórica – e não apenas emocional – para a defesa dos direitos dos animais. Na obra, Singer se valia do conceito de especismo, cunhado cinco anos antes pelo psicólogo britânico Richard Ryder, para dizer que discriminar um ser vivo qualquer, por sua espécie, era tão grave quanto segregar alguém por cor ou por gênero. Na obra, o filósofo defendia uma ideia simples e forte: a de que todo animal, por ter a capacidade de sofrer, tinha também interesses próprios, que deviam ser considerados (mesmo que o interesse fosse apenas o de não sofrer).
Ao longo do livro, Singer fazia um inventário do especismo na ciência e na indústria da carne. Usava estudos públicos, disponíveis na literatura científica, para falar de cachorros obrigados a engolir cápsulas de explosivo, macacos expostos à radiação química, filhotes de chimpanzé separados da mãe, para ter sintomas análogos ao da depressão – isso para ficar apenas nos exemplos ligados à pesquisa científica. “Certamente que um dia, os filhos dos nossos filhos, ao terem conhecimento do que se praticava nos laboratórios do século XX, sentirão tanto horror e incredulidade perante o que pessoas, tão civilizadas noutras áreas, puderam fazer”, escreveu, comparando essas práticas científicas ao horror “que nós sentimos quando lemos acerca das atrocidades perpetradas nas arenas de gladiadores romanos, ou no comércio de escravos do século XVIII.” Por fim, dizia que “essa projeção pode soar exagerada, mas a história nos ensina que apenas a moda das roupas muda mais rápido que a moda da ética”.
No Brasil, o caso mais emblemático de ativismo em prol de animais ocorreu em 2013, com a invasão do Instituto Royal, que resultou no resgate de 178 cães da raça beagle. O laboratório, localizado na cidade de São Roque, entre São Paulo e Sorocaba, havia recebido um aporte de 5,2 milhões de reais de uma agência de fomento, ligada ao Ministério da Ciência, para fazer testes de toxicidade com cachorros, coelhos, camundongos e ratos.
A celeuma do Royal começou em 2012, quando um tratador chamado Henrique Cesar Pereira da Silva entrou em contato com a Aspa, a Associação Sempre Pelos Animais, de São Roque, após passar uma semana trabalhando no canil do laboratório. A associação encaminhou uma denúncia ao Ministério Público, que abriu um inquérito para investigar o caso. O tratador foi ouvido, assim como uma veterinária do Royal. A pedido do Ministério Público, um biólogo e uma veterinária independentes fizeram visitas técnicas ao laboratório. Depois disso, o inquérito ficou estagnado.
Em 2013, a associação de São Roque pediu ajuda da Uipa, a União Internacional Protetora dos Animais, sediada em São Paulo. O caso chegou à imprensa e às redes sociais – o que acabou motivando cinco ativistas a se acorrentarem, por uma semana, no portão de entrada do Royal. No dia 17 de outubro, uma quinta-feira, representantes do laboratório concordaram em se reunir com os ativistas no Centro de Saúde de São Roque. “Eu fui acompanhar”, contou-me a advogada Viviane Cabral, de 45 anos, assessora do deputado federal Ricardo Tripoli, do PSDB de São Paulo. “Mas quando deu cinco da tarde, nos avisaram que não iriam mais. As protetoras entenderam que aquela tinha sido uma artimanha para tirá-las do portão.” Ato contínuo, o portão lotou de gente.
Às duas da manhã, quando o instituto estava vazio, os ativistas cortaram o alambrado, quebraram algumas portas e entraram. Fizeram uma fila indiana para tirar os cachorros e os coelhos das gaiolas. Por falta de logística, ou de empatia, os camundongos e ratos foram deixados para trás. Cabral argumenta que eram muitos, os roedores. “Ninguém tinha caixa para transportá-los.”
Naquele mês, Ricardo Tripoli pediu a instauração, na Câmara dos Deputados, de uma comissão externa para apurar o caso. “Chegou muita coisa, incluindo um envelope lacrado, sem remetente, com um monte de documento tirado do instituto”, contou Cabral. Partes da descrição, no relatório final, fazem lembrar o cenário de um presídio: “Os canis não possuíam incidência de luz solar, e eram desprovidos de camas, casinhas ou paletes. Os filhotes mantidos no canil estoque demonstravam alto grau de estresse, e permaneciam encarcerados em gaiolas metálicas suspensas, de 2,5 por 1,5 metro, que acomodavam até cinco cães. Latiam incessantemente, tornando o ambiente insalubre e estressante. O odor de fezes era sentido ainda na entrada da sala.”
Viviane Cabral lembrou que nenhum dos cinco inquéritos sobre o Royal chegou à fase processual: “O desfecho legal não aconteceu, mas o caso levantou uma discussão, mostrou uma evolução histórica, colocou a sociedade se opondo a uma prática vigente, ainda que essa prática seja permitida.”
O dentista José Mauro Granjeiro era coordenador do Concea, o Conselho Nacional de Controle e Experimentação Animal – um colegiado vinculado ao Ministério da Ciência –, na época da invasão do Royal. Ele me disse que o instituto cumpria todos os protocolos exigidos para a pesquisa, tanto que fora agraciado com o selo de Boas Práticas de Laboratório, concedido pelo Inmetro. “A invasão trouxe à discussão um tema importante, mas foi ruim para o país. Jogou vários anos de pesquisa no lixo”, afirmou. “O Royal fazia testes de toxicidade aguda e sensibilidade cutânea que quase ninguém fazia. Agora, têm que ser feitos no exterior.”
OConselho Nacional de Controle e Experimentação Animal foi criado em 2008, como parte de uma legislação que estabelecia regras para o uso de animais em pesquisa. Em 2014, o Concea publicou duas resoluções normativas, em que autorizava o uso de 24 métodos alternativos já validados na Europa. A partir do próximo ano, parte desses métodos – que incluem a pele reconstituída e o uso de córneas bovinas – vai se tornar obrigatória, em substituição a alguns testes com cobaias.
Quem coordena atualmente o Concea é a biomédica Monica Andersen, uma mulher elegante, especializada no estudo do sono. Ela trabalha na Universidade Federal de São Paulo, numa sala decorada com quadros e pelúcias de animais de laboratório. Numa das imagens emolduradas aparecem três camundongos vestidos de astronauta (roedores foram lançados ao espaço muito antes do voo de Yuri Gagarin). Outro quadro traz um grupo de ratos sem pelo, da raça hairless, sob o título “Colônia nudista”. Um terceiro retrata uma cobaia, acompanhada de uma frase em inglês, que explica: “É claro que ela parece cansada. Está trabalhando há dois anos pela cura do câncer.”
Andersen começou a estudar a ciência de animais em laboratório em 1999, no Canadá, durante um curso preparatório para o doutorado. “O doutorado era sobre ciência do sono”, lembrou. “Mas eu só podia cursar se completasse uma aula sobre o manejo de animais.” Foi quando descobriu haver um universo de regras, leis e condutas, por lá, que não existiam no Brasil. “Aqui eu falava: ‘Me libera trinta ratos para amanhã’, e conseguia.” Desde então, escreveu três livros sobre o assunto. Um deles, publicado em parceria com o fisiologista Sergio Tufik, foi dedicado “aos animais de laboratório que, com suas vidas, dão uma contribuição notável ao desenvolvimento de novas técnicas e tratamentos médicos”.
“Às vezes você vai ter que usar um número grande de animais para beneficiar o que está lá na frente”, ela disse, pragmática, durante uma conversa no ano passado. “A sociedade protetora vende uma ideia muito bonita, mas é preciso pensar que doenças seriam negligenciadas”, caso se priorizasse a vida dos animais usados nos experimentos. Exemplificou: “Uma amiga minha, de faculdade, tinha alopecia areata, uma doença em que caem todos os pelos do corpo. Dá para testar o tratamento no camundongo hairless.” Citou também uma regra da empresa aérea Latam, que não transporta animais de laboratório. “Isso significa que ela não carrega cobaias que podem ajudar a estudar o vírus da zika no Nordeste.”
Andersen fala em dez anos para que se comece a ver alguma redução mais significativa na pesquisa com bichos. Hoje, de acordo com o Concea, 650 mil animais são usados por ano, no Brasil, em pesquisa científica (os dados, de 2015, foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Imprensa). Aves respondem por quase um terço do total, seguidas de camundongos, peixes e ratos (é preciso frisar que um teste de ração já configura uso científico; daí a abundância de aves). Thales Tréz acredita que os números são mais expressivos. “Há vários biotérios que funcionam sem o aval do Concea.”
Voltei a encontrar Talita Marin na manhã de uma segunda-feira, em dezembro do ano passado. Ela estava em seu laboratório, no LNBio, acompanhada de uma assistente, Nathalia Indolfo, que a ajudava a preparar o conteúdo de dezoito chips. O silêncio das duas só era quebrado pelo barulho alto de uma máquina de esterilização. “Chato, né?”, comentou Marin, enquanto colocava o meio de cultura em cada chip. “Vou misturar o fluido do intestino com o do fígado, para os dois ficarem bem.”
O laboratório tinha uma estufa ajustada à temperatura do corpo humano, de onde Marin tirou dois estojos, cada qual com 24 organoides de intestino. “Eles ficaram três semanas no líquido, para atingir o desempenho máximo”, explicou, antes de depositá-los nos chips com a ajuda de uma pinça. Depois partiu para os organoides de fígado, que se acumulavam às dezenas em três recipientes (cada “fígado” é formado por vinte grãozinhos separados, que têm que ser “pescados” um a um, com uma pipeta, e depois colocados no chip). O trabalho durou meia hora.
“Agora a Nathália vai colocar o paracetamol no intestino”, explicou Marin, enquanto a assistente pingava um líquido vermelho em cada chip. Em seguida, Indolfo caminhou até bancada onde estava a unidade de controle – o computador que bate sessenta vezes por minuto, transportando ar comprimido para o chip, como se fosse um coração. Plugou os dutos de ar em parte dos chips, e depois os colocou dentro da estufa. O efeito do remédio seria medido em intervalos subsequentes: após os trinta minutos iniciais, e depois de uma, duas, três, seis, doze e 24 horas, de forma a mapear como o medicamento atua, no chip, ao longo de um dia.
Enquanto aguardava, perguntei a Marin quais seriam os próximos passos da pesquisa para desenvolver o Human on a Chip. “No ano que vem vamos integrar rim e tecido adiposo, para ter uma farmacocinética completa”, respondeu, referindo-se ao processo de absorção e a distribuição de um fármaco no corpo. Os testes de eficácia – ou seja, do efeito clínico de uma substância – só devem acontecer quando o chip tiver mais organoides. “Aí, em vez de saber o que corpo faz com o remédio, saberemos o que o remédio faz com o corpo”, explicou. Para ela, o grande desafio é achar um meio de cultura – o substituto do sangue – que funcione igualmente bem para todos os tipos de células usados no chip. “Vai acontecer. Tem muita gente trabalhando para isso, no mundo todo.”
Eduardo Pagani, seu chefe no LNBio, é taxativo: “Não tem nenhuma chance de o Human on a Chip não dar certo.” Lembra que a pele reconstituída, inventada no final da década de 70, é hoje amplamente usada pela indústria de cosméticos. “Se funcionou para um organoide, vai funcionar para os outros”, disse. “Talvez demore três décadas. Eu vou estar gagá, em cadeira de rodas, mas vou ver.”