Em 2010, na festa de milhões da Traffic, Ronaldo FOTO: MASTRANGELO REINO_2010_FOLHAPRESS
O grande baile da Traffic
A trajetória de J. Hawilla no submundo do futebol
Allan de Abreu e Carlos Petrocilo | Edição 141, Junho 2018
Bem ao seu estilo, Galvão Bueno, microfone a tiracolo, caprichava no tom das palavras e no discurso repleto de deferências ao grande amigo Jotinha.
“Hawilla, você não precisa mais de dinheiro”, disse o locutor, virando-se para o protagonista da festa com um sorriso largo.
“Preciso, sim”, disse o empresário.
Explodiu no ambiente uma sonora gargalhada.
O empresário inaugurava naquela tarde de 10 de março de 2009 um moderníssimo centro de treinamento em Porto Feliz, interior de São Paulo, de números superlativos: 156 mil metros quadrados, alojamento para 144 jogadores, salas de fisioterapia, musculação, fisiologia, piscina e refeitório para servir até 800 refeições por dia. Com um investimento de 18 milhões de reais, o CT seria uma grande incubadora de atletas nas categorias de base para o Desportivo Brasil, clube-empresa de Hawilla. A ideia era construir outros dez CTs semelhantes pelo país, para descobrir craques em potencial.
“Nasce aqui o primeiro clube essencialmente empresa do Brasil. Acho que vamos ser um modelo, porque o futuro pede a profissionalização do futebol”, discursou o empresário.
Para tanto, Hawilla havia recorrido ao então consultor Carlos Alberto Parreira. “O Hawilla sempre foi muito caprichoso. Quando fazia as coisas, fazia muito bem-feito. Foi um centro de treinamento muito bem montado”, disse Parreira, técnico da Seleção na conquista da Copa do Mundo de 1994 e que, no comando da África do Sul no Mundial de 2010, levou sua equipe por duas semanas para se refugiar em Porto Feliz.
José Hawilla vivia o apogeu de sua fortuna e prestígio. Em maio de 2008, a revista inglesa World Soccer o colocou na 56ª posição dos homens mais influentes do mundo do futebol. Dois anos depois, a revista Placar fez um ranking dos “poderosos chefões” do futebol brasileiro. Ele ficou em segundo lugar, atrás apenas do então presidente da Confederação Brasileira de Futebol, Ricardo Teixeira. “Nenhum personagem pode influenciar em tantos setores do futebol brasileiro como J. Hawilla. Sua atuação vai dos vestiários aos corredores da Fifa, passando por redações de meios de comunicação. É um dos poucos que Ricardo Teixeira ouve antes de tomar decisões”, escreveram os repórteres Ricardo Perrone e Bernardo Itri na Placar.
A Traffic, empresa de Hawilla, era, de longe, a maior empresa de marketing esportivo do Brasil, com faturamento médio anual de 100 milhões de reais, mas que por vezes superava os 300 milhões. Com filiais nos Estados Unidos e na Holanda e clientes na Europa, Ásia e nas três Américas, a empresa vendia os direitos de transmissão de 300 jogos por ano, de torneios como as eliminatórias da Copa do Mundo, Libertadores e Copa América.
Hawilla era dono do Desportivo Brasil, do Miami FC, na Flórida, e do Estoril Praia, na época um clube da segunda divisão do futebol português. Atuava no projeto da nova arena do Palmeiras e, ao lado do grupo Sonda, sua Traffic era a maior investidora do futebol brasileiro, administrando um fundo de 40 milhões de reais. Números estimados, já que a empresa, de capital fechado, nunca divulgou seus balanços financeiros anuais.
“Quanto a Traffic faturou em 2002?”, perguntou o repórter José Roberto Caetano, da revista Exame.
“Não posso falar.”
“Quanto pagou pelas três afiliadas da Rede Globo no interior de São Paulo?”
“Estou impedido de revelar por uma cláusula contratual.”
Disse que acabara de fechar um contrato de marketing esportivo, mas, sobre com quem seria:
“Não posso contar.”
Hawilla dava expediente diário na sede da Traffic, um prédio de design moderno no Jardim Paulistano, em São Paulo, a poucos metros do Parque do Ibirapuera. A área de 1 400 metros quadrados, que soma três lotes, foi adquirida em 1998 do Banco Itaú por 1,2 milhão de reais (5,2 milhões, em valores corrigidos). Dois anos depois, quando a empresa completou 20 anos, o empresário encomendou um projeto arquitetônico sob medida à empreiteira JHSF, que tem em seu portfólio prédios imponentes na capital paulista, como a sede do antigo Banco Santos.
A casa que hospedava a empresa de marketing esportivo foi derrubada para dar lugar a um edifício com pórtico de mármore, salões amplos com pé-direito alto e fachada de vidro que dão luminosidade ao ambiente. Quadros temáticos relacionados ao futebol, como o do artista Gustavo Rosa, logo na entrada à direita, e sofás muito amplos completavam o cenário. Na sala de Hawilla, chamava atenção uma bola usada na Copa do Mundo de 1962, assinada pelos jogado-res da Seleção Brasileira da época.
Para espantar o “olho gordo”, o supersticioso empresário fez questão de colocar, próximo à porta de entrada da sede, um arranjo com sete raízes de plantas e muito sal grosso. Meses mais tarde, Hawilla comprou o terreno vizinho e, no mesmo estilo arquitetônico da Traffic, construiu uma produtora de vídeo, a TV 7, um investimento de 10 milhões de reais, em valores da época.
Havia dinheiro de sobra. Graças a isso, Hawilla seria aceito no mundo restrito da grã-finagem de São Paulo. Em agosto de 2011, foi um dos 600 convidados VIPs para o almoço de inauguração do novo hotel Fasano, grife da culinária paulistana, na Fazenda Boa Vista, na mesma Porto Feliz do centro de treinamento da Traffic. No cardápio, picadinho, arroz com castanha e ovo poché, preparados pelo chef francês Laurent Suaudeau, regado a taças de vinho, champanhe, caipirinha e clericot.
Nos negócios, o empresário aproveitava-se da penúria financeira dos clubes para avançar sobre a gestão das equipes. A Traffic FC administrava o futebol do Palmeiras (a parceria durou de 2008 a 2010) e do Ituano (entre janeiro de 2008 e maio de 2009), e detinha jogadores no Flamengo, Corinthians, Fluminense, São Paulo e Vitória, com lucros bastante elevados: em 2008, por exemplo, a empresa pagaria 1,5 milhão de dólares pelo passe do meia Everton e, dois anos depois, venderia o jogador por 10 milhões de dólares a um clube mexicano – um lucro de 650%. Em 2011, mantinha negócios com todos os clubes de futebol da primeira divisão do Campeonato Brasileiro, o que gerava inevitáveis questionamentos éticos.
Um exemplo concreto viria no fim do Brasileirão de 2008, quando o Vitória enfrentou o Palmeiras, clube parceiro da Traffic. Dois jogadores do time baiano, Willians e Marquinhos, já sabiam que no ano seguinte estariam no clube paulista e que, se o Vitória vencesse aquele jogo, desclassificaria a futura equipe para a Libertadores no ano seguinte. O jogo terminou 0 a 0.
Mas Hawilla dava de ombros às críticas da imprensa esportiva. Costumava atribuí-las à inveja de jornalistas de sua geração que, diferentemente dele, não haviam enriquecido com o futebol: “Mesmo que você trabalhe honestamente, com transparência e dignidade, como sempre foi feito aqui, eles falam. Uma meia dúzia de jornalistas esportivos. Acho que é mais inveja e rancor, porque, no fundo, eles querem profissionalização e sabem que trabalhamos bem”, disse certa vez.
O empresário havia sido bombardeado pela mídia em janeiro de 2009, quando o então ministro do Esporte, Orlando Silva, o nomeara membro do Conselho Nacional de Esporte, ligado à pasta. Silva, filiado ao Partido Comunista do Brasil, o PCdoB, havia se aproximado da Traffic poucos meses antes – em junho de 2008, Hawilla foi um dos convidados para a festa de aniversário do ministro, em São Paulo. O empresário ingressou no órgão como “representante do desporto nacional”. Enquanto conselheiro, ele poderia, com os outros 21 membros, propor prioridades na aplicação de verbas ministeriais, emitir pareceres sobre questões esportivas nacionais e aprovar mudanças nos códigos da Justiça Desportiva. Além de atuar diretamente na organização da Copa de 2014 – na qual ele fatalmente teria negócios (como de fato teve). Uma raposa tomando conta do galinheiro? O então ministro não vê dessa forma. “Tínhamos a representação de atletas, árbitros, técnicos. Faltava o olhar do empresário. Ele enriqueceria o debate”, disse Silva.
Na época, a presença de Hawilla foi criticada pelo Sindicato de Atletas Profissionais do Estado de São Paulo e por membros do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD). “Não acho que o conselho precise de empresários ligados a negócios esportivos. Precisa de gente que entenda de esporte”, disse o então presidente do sindicato, Rinaldo Martorelli.
A nomeação seria revogada em maio de 2009. Mas a amizade entre Hawilla e Orlando Silva permaneceu. O ministro estava em Porto Feliz, na inauguração do CT da Traffic, em março daquele ano, assim como o então governador José Serra e a nata da cartolagem brasileira: Ricardo Teixeira, Marco Polo del Nero, então presidente da Federação Paulista de Futebol (FPF), e seu vice, Reinaldo Carneiro Bastos.
Aliás, Hawilla convivia bem com gente de todos os espectros ideológicos, embora nunca tivesse se envolvido diretamente com a política, nem mesmo como financiador de campanha, ao menos em registros oficiais, com exceção de uma pequena doação à campanha bem-sucedida do deputado federal Edinho Araújo (PMDB) à Prefeitura de São José do Rio Preto, terra natal do empresário. Em 2010, Hawilla cedeu seu camarote no Morumbi para o ex-ministro José Dirceu assistir a um show de Paul McCartney, relevando o fato de o petista haver criticado os negócios da Traffic nos tempos em que era deputado.
No entanto, era evidente a simpatia de Hawilla pela grã-tucanagem paulista, especialmente o conterrâneo Aloysio Nunes Ferreira e José Serra, sem contar a amizade com aliados do PSDB, como Gilberto Kassab, hoje no PSD. Na campanha à Presidência da República de 2006, a Rede Bom Dia de Comuni-cações (rede de jornais de Hawilla no interior paulista) estampou um editorial na capa de suas quatro edições pregando voto em Alckmin contra Lula. O petista acabou reeleito.
Havia uma profunda sintonia entre Teixeira e Hawilla, seu sócio oculto, embora ambos tivessem personalidades bem distintas: o primeiro, explosivo, não raro grosseiro; o segundo, adepto das boas maneiras e da diplomacia. Água e óleo que, para desconfiança de muitos, se misturavam em meio a interesses financeiros comuns – ambos se entendiam apenas pela troca de olhares.
Teixeira era um operador do mercado financeiro que, mesmo sem muito interesse por futebol (seu esporte preferido é o turfe), chegou ao comando da CBF pelas mãos do sogro, o poderoso presidente da Federação Internacional de Futebol (Fifa), João Havelange, que entregou a entidade à sanha do marketing esportivo e a transformou em uma máquina de fazer dinheiro – para a Fifa e para si próprio. Deu tão certo que decidiu fazer o mesmo no Brasil por meio do genro, um mineiro criado na Zona Sul do Rio com hábitos de playboy na juventude, casado com Lúcia, sua filha. Teixeira, que não havia passado de um lateral-direito esforçado no futebol de areia e que nunca administrara nenhum clube de futebol, de repente se via no comando da CBF.
A dupla Teixeira-Havelange personificou graves vícios que mancharam a imagem da administração do futebol brasileiro. É do poderoso chefão da Fifa uma das melhores definições do genro, que chegou a alimentar o desejo de assumir o comando da entidade com sede na Suíça, novamente com o auxílio prestimoso de Havelange, o “Rei Sol”: “Se a senhora um dia tivesse que definir a malandragem, no bom sentido”, disse uma vez à piauí, “ela se chamaria Ricardo Teixeira.”
Formulada em 2011, a frase parece premonitória da tempestade que cairia sobre a cabeça de Teixeira e Havelange meses mais tarde.
Mas, na noite de 17 de maio de 2010, uma segunda-feira, nada disso interessava. Hawilla gastou milhões numa festa no Hotel Unique, um dos mais sofisticados de São Paulo, para comemorar os 30 anos da Traffic. A lista de convidados era a prova do poder do empresário: além do onipresente Teixeira, Pelé, Galvão Bueno, Andrés Sanchez, Luciano Huck, Ronaldo Fenômeno. Da política, os tucanos Aloysio Nunes, Geraldo Alckmin, Vaz de Lima e Barros Munhoz; o cacique do PMDB Orestes Quércia; a petista Marta Suplicy e o então candidato a deputado Protógenes Queiroz, do PCdoB.
Entre tantos amigos ilustres, Hawilla, sempre gentil, esforçava-se para dar atenção a todos, em meio ao bombardeio de flashes das colunas sociais. Pelé, alvo natural da mídia, deixara de ser inimigo da máfia do futebol, e naquela noite lamentava não ter cursado marketing esportivo em vez de educação física: “Se tivesse feito, talvez estivesse trabalhando com ele [Hawilla]”, disse.
Entre doses de uísque e alguns canapés, os convidados assistiram ao show de um cover de Michael Jackson e, em seguida, a uma apresentação intimista de Lulu Santos, um dos cantores preferidos de Hawilla. O momento era de confraternização, mas nem assim o dono da Traffic perdia a oportunidade de fazer lobby por seus interesses.
Hawilla aproveitou a presença do ministro do Esporte e de Kassab, então prefeito de São Paulo, para pressionar Kassab a desistir do projeto de reforma do estádio do Morumbi para a Copa de 2014. De acordo com o empresário, a cidade deveria investir em um novo estádio para o mundial, mesmo pensamento de Teixeira – o próprio Hawilla havia intermediado um encontro semanas antes entre Kassab e Teixeira para tratar do assunto na fazenda do presidente da CBF, no Rio. Hawilla negou a existência da conversa. Mas aproveitou a festa para publicamente rasgar elogios ao prefeito paulistano: “O Kassab é a maior revelação da política brasileira nas últimas décadas”, disse.
Apenas duas semanas depois, os grandes amigos Hawilla e Teixeira conseguiriam fazer valer seus desejos. O prefeito, um são-paulino até então contrário à construção de uma nova arena na cidade, subitamente mudou de opinião, e o Morumbi perdeu a disputa. Com o apoio entusiasmado do corintiano Lula da Silva, já no ano seguinte, 2011, a Odebrecht iniciaria a construção da Arena Corinthians em Itaquera, na Zona Leste da capital. A obra, orçada inicialmente em 400 milhões de reais, foi concluída com atraso, às vésperas da Copa do Mundo, a um custo total de 1,2 bilhão de reais, parte financiada com dinheiro do BNDES.
O Itaquerão, como seria conhecido, entrou na mira da Lava Jato no início de 2017, quando delatores da Odebrecht disseram ter pago propina para o caixa dois de campanha de dois petistas: 50 mil reais para Vicente Cândido e 3 milhões de reais para Andrés Sanchez, o ex-presidente do Corinthians, presença marcante no jantar dos 30 anos da Traffic – ambos negam o recebimento do suborno. O próprio Marcelo Odebrecht questionou a utilidade da obra em depoimento aos procuradores do Ministério Público Federal: “É um absurdo. Você faz o estádio para um dia e depois tem que desmontar um bocado de coisas.”
As investigações da Lava Jato em relação à Arena Corinthians estão em andamento.
Kleber Leite era um dos convivas mais expansivos do banquete de 30 anos da Traffic. “Não poderia perder um show intimista do meu querido amigo Lulu.” Sempre simpático e sorridente, o ex-presidente do Flamengo mantinha com Hawilla uma amizade sólida que vinha do jornalismo esportivo – ambos haviam passado pelo rádio nos anos 70, Hawilla em São Paulo, Leite no Rio, e depois migraram juntos para o marketing no futebol. O primeiro fundou a Traffic, em 1980, e o segundo, a Klefer Produções e Promoções Ltda., três anos mais tarde.
Em vez de concorrerem entre si, uniram forças e montaram uma sociedade informal: o carioca tornava-se assim uma espécie de extensão de Hawilla no Rio de Janeiro. “Eu tenho pelo presidente da Traffic, J. Hawilla, o maior apreço possível, o tenho como um amigo querido. […] Uma pessoa não chega aonde o Hawilla chegou de graça, não chega subornando as pessoas, não chega enganando as pessoas. Chega por meio de trabalho, de competência. Ele é, inegavelmente, um gênio na matéria”, disse Kleber Leite em depoimento à CPI da CBF/Nike, em 2001.
Em março de 1985, Carlos Arthur Nuzman, presidente da Confederação Brasileira de Voleibol (CBV), que seria preso em 2017, acusado de pagar propina para garantir o Rio de Janeiro como sede dos Jogos Olímpicos, cedeu à Traffic “todos os direitos de organização, realização, promoção, exploração comercial e publicitária e direitos de transmissão para o Brasil e exterior de todas as competições de voleibol nacionais e internacionais”. Em troca, a Traffic pagaria à CBV 40% “do total líquido apurado em cada evento”. Na cláusula sexta, a empresa cedia à Klefer 50% dos direitos e obrigações do contrato.
Mas o acordo Traffic-CBV teve vida curta: seria rescindido em outubro de 1985 por falta de patrocínio – na ocasião, Nuzman declarou-se “atônito, decepcionado e chocado” com a atitude das empresas. Já a dobradinha Hawilla-Kleber permaneceu sólida.
Ambos se cumprimentavam com um beijo no rosto. O carioca costumava passar temporadas na mansão do amigo em São José do Rio Preto (SP) e era chamado de “tio Kleber” pelos filhos de Hawilla, Stefano, Rafael e Renata. A Klefer tinha parceria comercial com o Flamengo quando Kleber Leite assumiu a presidência do clube, em 1995. Para evitar questionamentos por parte da imprensa, ele encerrou o contrato com a sua empresa, mas logo em seguida fechou parceria de marketing entre o clube rubro-negro e a Traffic.
Em 1997, também na gestão de Leite no Flamengo, a empresa de Hawilla obteve um contrato mais do que generoso para cuidar das placas de publicidade do Maracanã. Sem licitação, a Superintendência de Desportos do Estado do Rio de Janeiro (Suderj), que administrava o estádio, escolheu a dedo quatro empresas de marketing esportivo, “Traffic incluída”, para apresentar suas propostas no prazo de 24 horas. A empresa de Hawilla ofereceu 821 700 reais anuais por dezoito placas do estádio, ou 45 600 reais por painel, em valores da época. A Brilho Publicidade & Promoções ofertou 806 mil reais, mas prometeu aumentar a oferta em 48 horas. A Suderj, porém, ignorou a proposta e declarou vencedora a Traffic. Apesar do valor ligeiramente maior que o da concorrente, a Traffic propôs um valor baixíssimo se comparado ao que a Suderj faturara com as outras 22 placas que negociava diretamente com os patrocinadores naquele ano: 3,2 milhões de reais. Prejuízo para os cofres públicos, lucro certo para a Traffic.
Nos quatro anos em que Kleber Leite ficou à frente do Flamengo, Hawilla se tornaria uma espécie de conselheiro informal do clube. Foi o empresário paulista que indicou o amigo em comum Vanderlei Luxemburgo como treinador da equipe, em 1995, no galáctico time rubro-negro que tinha Romário, Edmundo e Sávio, mas ganhou apenas uma modesta Taça Guanabara. Jotinha soube retribuir a gentileza do “tio Kleber”: anos depois, o parceiro do Rio seria nomeado vice-presidente da empresa paulistana. A confiança entre eles parecia inabalável.
Afesta da Traffic seguia perfeita, exceto por um detalhe: Teixeira e Ronaldo Fenômeno não se falavam. Estavam rompidos desde a Copa do Mundo de 2006, quando, após a eliminação da Seleção Brasileira, derrotada pela França nas quartas de final, o cartola criticou publicamente as farras noturnas protagonizadas pelo centroavante durante a competição na Alemanha. Três anos depois, Teixeira teria vetado a convocação do jogador para a Seleção, ignorando sua ótima fase no Corinthians. Por tudo isso, não havia clima para uma reaproximação naquela noite.
Acompanhado de dois seguranças e de Bia, então sua mulher, Ronaldo ignorou completamente a presença do presidente da CBF e sentou-se a uma mesa no fundo do salão, logo após o show do cover de Michael Jackson. Com uma taça de champanhe na mão, assistiu à apresentação seguinte, de Lulu Santos.
Hawilla, parceiro do ex-jogador nos torneios de golfe no São Paulo Golf Club, notou a saia justa e o burburinho. Resolveu entrar em ação. Conversou longamente com Teixeira num canto, depois foi até a mesa do atacante. Passados alguns minutos, Ronaldo cruzou o salão, chamou o cartola e lhe deu um longo e forte abraço. Teixeira retribuiu o carinho com um beijo no rosto do jogador. Graças a Hawilla, a paz estava selada.
“Foi a imprensa que brigou ‘ele comigo e eu com ele’”, disse o cartola, demonstrando sinais de leve embriaguez. “Quando duas pessoas se abraçam e se beijam, isso quer dizer o quê? Que elas se gostam. Precisa de mais alguma coisa?” Sorridentes, ambos posaram para fotos. Flashes pipocavam por todo canto. Já passava da meia-noite e a festa se encaminhava para o fim.
Quatro anos depois do grande baile da Traffic, a empresa ainda influenciava o marketing esportivo, mas havia sofrido fortes abalos em contratos da Copa América e da Copa do Brasil. Nem por isso o acordo firmado entre Hawilla e Teixeira foi interrompido, embora já não houvesse a ampla confiança mútua de anos anteriores.
Ricardo Teixeira estava em sua casa na Flórida quando o celular tocou. Era Hawilla, querendo marcar um encontro. Como não se viam havia tempos, combinaram um jantar no Smith & Wollensky, restaurante à beira-mar em Miami. Teixeira, que deixara a CBF em março de 2012, em meio a fortes suspeitas de corrupção, encontrou o Hawilla cordato de sempre, mas notou que ele estava um pouco tenso. A conversa começou amena, entremeada de algumas taças de vinho. De repente, o empresário começou a rememorar episódios do passado de ambos. Hawilla falava de dinheiro, lícito e ilícito, que correra na relação Traffic-CBF. Uma conversa estranha para o ambiente e as circunstâncias. Enquanto o velho parceiro falava, Teixeira olhou de soslaio para as mesas no entorno. Nada anormal, exceto o movimento dos garçons, que a todo momento passavam próximos à mesa deles.
Com toda a malandragem que lhe imputava o ex-sogro Havelange, Teixeira farejou a arapuca, e com razão: já delator, Hawilla era um grampo ambulante, cercado de agentes do FBI disfarçados de garçons. Subitamente o rosto do ex-cartola ruborizou. Encarou o empresário com os olhos cheios de raiva, socou levemente a mesa e levantou. Dedo em riste, apontou-o para o antigo parceiro: “Filho da puta!”
E foi embora, para espanto de Hawilla. Chegara, enfim, o divórcio, antes mesmo daquele fatídico 27 de maio de 2015, quando o FBI deflagrou a operação que desnudaria a máfia do futebol e o Brasil assistiria, perplexo, à confissão de graves crimes pelo magnata-que-se-dizia-honesto José Hawilla.
“Ele não merecia isso”, lamentava Galvão Bueno a amigos. Era o anticlímax dos tempos de Porto Feliz.
Na manhã daquele mesmo dia 27, a Polícia Federal invadiu a sede da Klefer no Rio. Cumpria mandados judiciais de busca e apreensão a pedido da Justiça norte-americana. Os agentes apreenderam computadores e coletaram milhares de páginas de documentos – parte seria remetida aos Estados Unidos. A Justiça brasileira também quebrou os sigilos bancário e fiscal de Kleber Leite, além de bloquear seus bens.
Semanas depois, o empresário obteve um habeas corpus no Tribunal Regional Federal (TRF) da 2ª Região que anulou toda a operação policial. Mesmo assim, não perdoaria o ex-amigo Hawilla, até porque, assim como Teixeira, já percebera algo estranho nas intenções e nas palavras do dono da Traffic antes de o Fifagate vir à tona: “Hawilla, me desculpa, presta atenção”, disse numa das conversas interceptadas pelo FBI. “Com base na nossa amizade, eu passei a vida toda contigo. E eu confio em você completamente. Nunca te questionei nada. Mas você tá sendo um tremendo cuzão! Como você desconfia de mim?”
Em depoimento à CPI da Máfia do Futebol na Câmara dos Deputados, em junho de 2016, Kleber Leite soltou o verbo contra Jotinha, que passou a ser “o senhor J. Hawilla”: “O problema do senhor J. Hawilla é o seguinte: eu, se advogado fosse, e se, porventura, um dia tivesse a necessidade de enfrentamento com ele, a primeira coisa que eu pediria seria um teste de sanidade mental com relação a ele. Eu duvido que ele esteja no gozo pleno de sua sanidade mental. […] O senhor Hawilla é uma pessoa de duas personalidades. Ele é uma pessoa extraordinária, delicada, doce, amável, meiga, amiga, quando não há qualquer interesse financeiro envolvido. Quando há dinheiro envolvido, é outra figura completamente diferente. Eu diria que há dois Hawillas, um normal, quando não há dinheiro envolvido, e outro, quando há dinheiro envolvido, é o ser mais materialista que eu já vi na minha vida.”
O empresário carioca já havia atacado o antigo parceiro em seu blog na internet: escrevera que “a cabeça” de Hawilla “deve ter sido afetada” pelo câncer na garganta (curado em meados de 2014). Procurado, Leite não quis se manifestar. E justificou-se: “Esta é a mais decepcionante página na minha história de vida com relação a um ser humano. Como não está em mim odiar, melhor esquecer. Em homenagem e respeito à família do seu personagem, nada tenho a declarar.” À imprensa, Ricardo Teixeira também atacaria o ex-amigo: “Ele está completamente descompensado e quer solucionar o problema dele.”
Os Hawilla assistiram a tudo perplexos e calados. A discrição em momentos difíceis, afinal, era parte dos ensinamentos que Fuad e Georgina, pais do empresário, legaram aos filhos e aos netos.
*
Trecho do livro O Delator, que será lançado em junho pela Record.
Repórter da piauí, é autor dos livros O Delator, Cocaína: A Rota Caipira e Cabeça Branca (Record)
Carlos Petrocilo é editor de esportes do Diário da Região, em São José do Rio Preto.