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    Depois de incendiar a batina de um padre quando era coroinha, Arlindo encarnou o papel de pastor. Hoje faz mágicas, engole espadas e se apresenta em igrejas evangélicas FOTO: CRISTIANA PAULA_TAMPA_FL

questões artístico-religiosas

O palhaço de Deus

O filho de Márcia de Windsor e ex-marido de Gretchen se viciou em cocaína, foi diretor de cinema, ator de filmes pornográficos e palhaço Bozo antes de ganhar a vida como pastor evangélico

Raquel Freire Zangrandi | Edição 15, Dezembro 2007

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Arlindo Tadeu Barreto Montanha de Andrade estava sem camisa e com o rosto coberto de camadas de pancake. Ele riscou um sorriso vermelho no rosto enquanto a filha, Stacy Lôyde, de 13 anos, o ajudava na arrumação da mesa para o espetáculo. O palhaço arrematou a maquiagem com um naco de creme dental Colgate em cima das sobrancelhas. Uma platéia de oitenta pessoas o aguardava, ansiosa, na favela Beira-Mar, em Duque de Caxias, no Rio. Ele foi mocinho de novela das seis na Globo, palhaço Bozo no SBT, galã de novela das oito na Bandeirantes, maquiador, dublador de desenho animado, malabarista de circo, diretor de cinema, trapezista, domador de leões, ator de teatro infantil e de filmes pornográficos. Fora das artes, foi surfista, coroinha e tentou ser médico, psicólogo, biólogo e vereador. Desafiou a reencarnação ao viver muitas vidas até que, há vinte anos, virou evangélico e tornou-se o pastor Arlindo.

De microfone em punho, entrou aos pulos no fundo da Igreja Presbiteriana Parque Beira-Mar e anunciou:

– Glória a Deus, Aleluia! Música, maestro.

Começou a música e o pastor-palhaço interrompeu:

– Não essa, maestro. É a música número um.

O sonoplasta botou outra música: “Sorria, é tempo de sorrir. Sorria”. Vestindo calça e paletó de cetim azul degradê, suspensório, sapato de bico largo, gravata-borboleta vermelha, cabelo de algodão e cartola azul, o pastor Arlindo cantou junto. No espetáculo, cada truque de mágica serve de ilustração para uma mensagem bíblica. O palhaço disse que muitas pessoas acham a palavra de Deus “sacal”, mas ela não é. Ele abriu uma Bíblia e pimba!, saltou uma flor colorida. “Um universo mágico explode diante de nossos olhos quando conhecemos a palavra de Deus”, ele disse. Um garotinho no fundo da platéia estava inquieto na cadeira. O pastor se aborreceu: “Ei, menino! Quando um palhaço fala, o outro cala a boca”.

Mais adiante, anunciou: “Deus opera milagres. Assim como transforma água em vinho, transformou um viciado em um homem de Deus, me libertou da maconha, da cocaína e do álcool”. Ele jogou um líquido transparente num copo d’água e a água virou groselha. Platéia em silêncio. “Uma salva de palmas para Jesus!”, conclamou. Aplausos tímidos. O palhaço explicou: “Nós somos como um copo vazio. Mas, se bebermos a palavra de Deus, ela nos transforma”. Em seguida, derramou a groselha num copo vazio e o líquido se transformou de novo em água.

Arlindo Barreto é filho da atriz Márcia de Windsor que começou a carreira como vedete e foi jurada de televisão até o final dos anos 70 (só dava nota 10). Márcia era amiga da atriz e musa do Pasquim Leila Diniz, que morreu jovem, em 1972, num desastre de avião. Leila era desbocada e liberada. Certa vez, ela tomava banho na casa de Márcia quando Arlindo e seu irmão Gilberto descobriram uma brecha por onde podiam espiá-la nua. Ela percebeu que estava sendo observada e disse a Arlindo, que não tinha mais de 12 anos: “Que é isso? Não precisa se esconder, não, Arlindinho. Estamos aí. Vem aqui, se você tem coragem”. O menino deu no pé.

 

Na adolescência, Arlindo foi coroinha por um ano na Igreja Nossa Senhora da Paz, Zona Sul do Rio. Numa das missas, quando ia passando com o incensário, fixou os olhos numa moça que sentava na frente e tropeçou com a chama fumegante nas mãos. Tocou fogo na batina do padre. Ficou envergonhado e nunca mais voltou. Gostava de comer hóstia com vinho e adorava piada de padre. Nessa época, morava com a mãe e um padrasto em Ipanema, num apartamento de frente para o mar, e pegava onda no Arpoador. Arlindo foi uma ovelha negra na família, da qual se desgarrou desde pequeno. Na juventude, matriculou-se em várias faculdades, mas não concluiu nenhuma. Em seu primeiro dia no curso de psicologia, apareceu vestido todo de branco, com um estetoscópio pendurado no pescoço e uma plaquinha no bolso esquerdo da camisa, na qual se lia “Dr. Freud”.

Aos 26 anos, Arlindo decidiu-se pela carreira de ator. No Rio, fez cursos de teatro, balé clássico, jazz, sapateado e canto. Integrava o grupo de teatro amador na faculdade e conseguiu uma chance na Globo como figurante. Participou das novelas Maria, Maria e Gina e do seriado infantil Sítio do Picapau Amarelo. Na Bandeirantes, atuou na refilmagem de Os Imigrantes, mas desentendeu-se com a produção e seu personagem morreu no meio da novela. No seu testemunho de conversão evangélica, vendido em CD, ele conta que nessa época foi “assediado por homossexuais e pressionado a fazer certas concessões”, eufemismo que indicava sua disposição pelo sucesso a qualquer custo. Tornou-se alcoólatra, tinha acessos de violência e conta que tomou um tiro no corpo ao tentar socorrer uma mulher que estava sendo assaltada. Trabalhou com cinema e atuou em 25 longas-metragens, a maioria filmes pornográficos. Chegou a ser indicado como melhor ator coadjuvante no Festival de Gramado pela sua atuação em A intrusa, em que contracenava com José de Abreu. Dirigiu dois filmes que nunca foram lançados.

“Fiquei pelado durante dois anos na minha vida”, ele conta, referindo-se aos filmes e peças que fez no início dos anos 80: O Império das Taras, Me Deixa de Quatro, A Insaciável, Corpo Devasso, Delírios Eróticos, As Histórias que Nossas Vovós não Contavam etc. No final de uma de suas peças pornográficas, sua mãe foi ao camarim: “Arlindinho, não foi isso que eu planejei para você, meu filho”. A morte da mãe, pouco depois, foi um grande choque e só agravou seu mergulho nas drogas, sobretudo cocaína. Para se livrar da dependência, fez curso de ioga, meditação transcendental, freqüentou mesas de kardecismo, terreiros de umbanda, quimbanda e candomblé.

Arlindo se casou oito vezes. Sua primeira mulher foi Angelina Muniz, atriz que conheceu nas filmagens de As Borboletas também Amam, cujo roteiro era inspirado em Nelson Rodrigues. Depois, morou com várias atrizes e modelos, sempre por pouco tempo. Numa cerimônia de candomblé, casou-se com a cantora Maria Odete Brito de Miranda, a Gretchen. A empolgação não durou mais do que dois anos. Nessa leva, produziu o filme musical Vamos Cantar o Disco, Baby, estrelado por Gretchen e suas irmãs, que formavam o grupo As Melindrosas. Gretchen não fala dos ex-maridos (na contagem mais recente, eram oito). Ela é mãe de cinco filhos, continua no ramo do rebolado e faz parte da Igreja Sara Nossa Terra. Recentemente anunciou que irá disputar a prefeitura da Ilha de Itamaracá, em Pernambuco.

Arlindo namorou por dois anos Lucilia Diniz, irmã do empresário Abílio Diniz. Na época, a sócio-proprietária dos supermercados Pão de Açúcar pesava mais de 100 quilos. O casal vivia às turras. Com apoio de Lucilia, ele criou o personagem War Man, um super-herói de ficção científica, e se apresentava nos supermercados Jumbo Eletro, do grupo que pertencia à família da namorada. O personagem, um “guerreiro do bem”, se apresentava com um macacão metalizado azul e roxo. (Nem Gretchen nem Lucilia Diniz quiseram falar sobre Arlindo.) Depois, ele viveu cinco anos com Zélia Diniz, modelo e atriz, com quem teve seu primeiro filho, Diego. Por fim, casou-se com a evangélica Elisabete Locatelli Andrade e, aparentemente, sossegou.

 

Era a hora de engolir a espada. Na primeira tentativa, o “Palhaço de Deus” a empurrou contra a língua, dando a impressão de engoli-la, mas a espada emperrou e não se retraiu, como deveria acontecer. Para ganhar tempo, ele anunciou à Congregação Batista da Favela Jardim Fontalis, na periferia paulistana: “Não façam esse truque em casa, é muito perigoso”. Virou-se de lado e tentou novamente. A espada entortou em vez de encolher, aos trancos foi sumindo na boca do palhaço, mas parou no meio. O pastor recolheu a espada e desistiu. A mensagem seria: “A palavra de Deus penetra dentro de nós”. Não penetrou. Arlindo torceu para que ninguém fizesse a ilação herética.

Para não dar tempo a raciocínios ímpios, sacou imediatamente um lenço vermelho e o fez desaparecer. “Deus elimina as angústias e pecados de quem tem fé”, disse. Tentou acender a ponta de um bastão com isqueiro, mas a chama não saiu. Perguntou se alguém da platéia tinha fogo. Negativo. Pulou essa parte. De um copinho de plástico, assoprou bolhinhas de sabão: “As palavras humanas saem de nosso coração como bolhas ao vento”.

Em 1981, o SBT havia comprado os direitos de uso do personagem Bozo. O primeiro ator escolhido teve problemas pessoais e a emissora teve que escolher outro intérprete. Para se precaver, a rede de Silvio Santos decidiu contratar dois atores, que se revezariam na função do palhaço. No teste de elenco, o próprio dono da marca, o americano Larry Harmon, veio ao Brasil para escolher os atores. Arlindo trabalhava na linha de shows do SBT e conhecia o pessoal do estúdio onde era feito o teste. Ficou fulo ao ver o mau humor e a impaciência com que o americano tratava os palhaços veteranos que eram testados. Do lado de fora, só se ouviam os gritos do diretor: “No, no! Stop. Next!“, “Go on! Shit! Stop. Next!” Uma fila de palhaços cabisbaixos saía do estúdio.

Arlindo tomou as dores dos colegas. O que o moveu era o sentimento pouco cristão de vingança. Não tinha intenção de disputar a vaga. “Eu vou sacanear esse gringo”, pensou. Entrou no figurino, pegou uma senha e aguardou a sua vez. O americano, impassível, não se comovia com nenhum dos calejados velhinhos de circo. Arlindo entrou no estúdio e, aos berros, em português, começou a gesticular e xingar o diretor. Dizia obscenidades. A equipe atrás das câmeras riu às gargalhadas. O americano, sem entender uma palavra, olhou em volta e ficou maravilhado. Achou que havia descoberto o palhaço mais engraçado do Brasil. Arlindo foi imediatamente contratado e mais tarde dividiu o personagem com Luis Ricardo Monteiro, palhaço profissional e cantor, que trabalha até hoje no SBT. Ele se recusa a falar de Arlindo. Nenhum dos dois tem saudade da época em que foram colegas. Era notória a rivalidade entre eles.

Como precisava aprender o ofício de palhaço para fazer o Bozo, Arlindo foi trabalhar no Circo Vostok como “barreira”, uma espécie de assistente de picadeiro e ajudante geral. Fazia dupla jornada entre o circo e a televisão. Havia um contrato de sigilo com o SBT que não permitia que contasse que era o Bozo, e ele morou três anos num trailer do circo. No início, lavava elefantes e hipopótamos. Pagava aos artistas circenses para que lhe ensinassem trapézio, malabarismo, mágica e arame. Conquistou experiência e respeito. Chegou a fazer uma cena em que tomava banho dentro de um globo da morte, enquanto quatro motocicletas giravam à sua volta. Comprou um filhote de leão para entrar na jaula e aprender a domá-lo. Dizia no circo que estudava pela manhã e ia escondido para o estúdio gravar o programa do Bozo. Anos depois, revelou sua identidade secreta e chegou a gravar alguns programas no circo.

No auge do sucesso como Bozo, seu filho mais velho, Diego, tinha 5 anos. O salário de palhaço no SBT não era alto, mas o dinheiro ganho com merchandising compensava. Numa ocasião, Arlindo, que via pouco Diego, quis fazer-lhe uma surpresa. Chegou de madrugada com o presente mais caro que pôde comprar: um carrinho importado com controle remoto. Acordou o filho com o presente, mas o menino não se impressionou: “Pai, você é o único pai que brinca com todas as crianças, menos comigo”. A frase entrou no cérebro do palhaço e não saiu mais.

Tempos depois, separou-se e foi impedido de acompanhar a rotina escolar do filho. Arlindo bolou um plano para se fazer presente: passou a enviar cartas para Diego com regras de etiqueta, lições sobre conhecimentos gerais e conselhos diversos, e sempre botava uma cédula de dinheiro nos envelopes. Depois, ligava para tomar as lições por telefone. Seu método de educação à distância aliviava sua consciência. Arlindo sempre soube ganhar dinheiro, e muito mais como gastá-lo. Como Bozo, ganhou três discos de ouro e cinco troféus Imprensa. Em sua melhor fase financeira, teve dois apartamentos em São Paulo, uma casa de campo na Serra da Cantareira, um Alfa Romeo, um Escort conversível e uma moto Kawasaki. Algumas vezes, alugou jatinho particular. Hoje, mora numa casa alugada no interior de São Paulo e seu último apartamento na capital está à venda.

 

Arlindo Barreto conta a sua história por meio de listas. A coleção de filmes, peças, cursos, espetáculos, ex-mulheres e peripécias vividas por ele desmoraliza o bom senso e a linearidade. Na família de sua mãe, pródiga em artistas e malucos de todos os naipes, as notícias que chegavam de Arlindinho causavam espanto. Ele sempre se superava. Quando tornou-se pastor, a reação foi de ceticismo e ironia. Sua tia Cássia ligou correndo para uma comadre:

– Loló, você não vai acreditar: Arlindo virou pastor.
– Pastor alemão?
– Não, pastor evangélico.
– Meu Deus…

A entrada de Arlindo na igreja evangélica se deu quando namorou Elisabete Locatelli, sua colega no SBT, coordenadora de produção da linha de shows. Eles namoravam há pouco tempo quando, no final de 1986, Arlindo soube, chocado, que ela era “crente”. Poucos casais vinham de origens tão diferentes. Ele estava envolvido com álcool e drogas. Na passagem do ano, uma platéia de milhares de pessoas o aguardava na avenida Paulista, onde ele comandaria ao vivo pelo SBT a contagem regressiva para a chegada de 1987. Tomado por uma, como ele diz, “angústia inexplicável”, trancou-se na cobertura do apart-hotel onde vivia sozinho e tentou se suicidar. Foi encontrado no banheiro, desmaiado e com um corte profundo no braço direito. Perdeu muito sangue e foi internado.

Elisabete foi visitá-lo no hospital e, penalizada com o tormento em que vivia o namorado, levou o pastor de sua igreja para orar por ele. Em pouco tempo, Arlindo se recuperou e decidiu se converter ao protestantismo. Passou por várias igrejas evangélicas antes de optar pela Igreja Batista e, em 1991, foi ordenado pastor. Ele é um pastor pouco convencional. É comum vê-lo chegar para uma apresentação com a camisa estampada aberta no peito e uma capanga debaixo do braço. Tem um sorriso escancarado e chacoalha a cabeça para todos os lados ao falar. Entusiasmado consigo próprio, fala coisas diversas ao mesmo tempo e dá a impressão de que está prestes a levantar vôo. Com um milhão de histórias do passado e projetos para o futuro, sua cabeça parece ferver. Em casa, o filho David o apelidou de “febrão”. Vive no superlativo. Está sempre no comando da casa e decide tudo o que os filhos devem fazer.

No mesmo ano em que se ordenou pastor, Arlindo foi convidado a participar do projeto “Tenda da Esperança”, uma iniciativa da Igreja Batista que consistia em armar tendas de circo em cidades do Nordeste onde havia romeiros católicos. A intenção era converter o rebanho alheio. Os batistas da Tenda perambularam por Juazeiro do Norte e arredores, redutos de veneração do Padre Cícero. Durante o dia, faziam assistência social, com aplicação de flúor, atendimento médico e consultas psicológicas. À noite, promoviam cultos evangélicos. A Tenda durou dois anos e converteu 919 almas. Em 1999, Arlindo coordenou o projeto “Barco Luz do Tietê”. A bordo de um catamarã, um grupo de evangélicos visitava as cidades ribeirinhas do Rio Tietê, em São Paulo. Faziam pregações, distribuíam bíblias e ofereciam serviço médico, odontológico e até veterinário. Também contavam com uma equipe de cabeleireiros e psicólogos. Davam cursos de corte e costura e gestão ambiental. A base do barco ficava em Barra Bonita e eles tinham apoio da prefeitura local.

 

No bairro Riachuelo, na Zona Norte carioca, uma morena de olhos verdes veio receber o pastor na entrada da igreja e disse:

– Pastor Arlindo! O senhor não vai se lembrar de mim…
– E eu ia me esquecer de um mulherão desses? – respondeu o religioso.

Sob uma tenda de circo, ele era aguardado por 200 pessoas na platéia, entre crianças e adultos. Na entrada, havia uma mesa onde se vendia pizza, cachorro-quente, picolé, pudim e refrigerante, tudo a 1 real. Numa salinha transformada em camarim improvisado, Arlindo se maquiava com dificuldade: o calor era tamanho que ele não parava de suar. Um compensado de madeira lhe servia de mesa. No chão, não tinha onde pousar o pé, tantas eram as traquitanas espalhadas: quatro malas gigantes, uma gaiola com uma pomba, meia dúzia de bambolês, uma bandeja de salgadinhos, uma bateria de música, dois sacos com brinquedos, um minifogão de plástico, uma girafa de pelúcia e uma bicicleta. O cheiro de fritura entrava pela janela.

Ele começou o show de mágica usando óculos de grau sobre o nariz de palhaço, provocando risos involuntários. “Pegue o seu coração e declare sua fé em Jesus”, disse. “Ele te liberta. O amor de Deus é invisível aos olhos, mas, quando cremos nele, a força do Espírito Santo se manifesta.” Um balão vermelho estourou e surgiu a pomba branca. “Palmas para Jesus!” O palhaço prosseguiu: “Eu ganhei muito dinheiro, mas gastei tudo. Se vier à casa de Deus, e separar a décima parte, Deus te dá dinheiro de volta, ele multiplica 100 vezes mais”. Pôs uma moeda pequena no saco de pano e tirou uma moeda gigante. “Deus disse: ‘No dia em que os homens me reconhecerem em seus corações, Eu farei desta terra um grande país’.” Pegou um pano preto, revirou pelo avesso e surgiu a bandeira dos Estados Unidos. Silêncio. Convocou as crianças para virem à frente e organizou uma competição entre meninos e meninas. A igreja se transformou em um programa de auditório, com torcidas e gritaria.

O palhaço-pastor foi recebido, no início, com desconfiança pela comunidade evangélica. Arlindo foi chamado de maluco, demônio e ingênuo, mas em pouco tempo passou a ser aceito por seus novos pares. O pastor Oliveira de Araújo, presidente da Convenção Batista Brasileira, dá o seu aval: “Pastor Arlindo faz com que as pessoas tenham maior compreensão de Deus através de sua arte, que ele domina tão bem”. Convencido de seu sucesso entre o rebanho evangélico e empolgado com suas próprias idéias, Arlindo Barreto candidatou-se a vereador pelo Partido Social Liberal, PSL, em 2004, por São Paulo. Obteve apenas 500 votos e não se elegeu. Não se meteu mais em política.

No ano seguinte, diplomou-se como bacharel em teologia. Fez um curso por correspondência na Faculdade Filadélfia, em João Pessoa, na Paraíba. O seu boletim mostra que foi um bom aluno: 10 em escatologia e hermenêutica, 9,5 em hebraico, e 9 em grego e arqueologia bíblica.

Juridicamente, Arlindo Barreto não pode mais ser Bozo. Há seis meses, ele esteve nos Estados Unidos e se reuniu com Larry Harmon, detentor dos direitos da marca Bozo. Queria permissão para pregar fantasiado como o palhaço. O americano foi inflexível. Além do preço proibitivo de 1 milhão de dólares anuais para o licenciamento do personagem, Harmon não permitiu que a imagem de Bozo fosse usada para fins religiosos. Assim, Arlindo se viu obrigado a criar um novo personagem, “Mr. Clown”, mas ainda é conhecido nas comunidades evangélicas como “Pastor Bozo”.

Arlindo nasceu em Ilhéus, na Bahia, foi criado no Rio, viveu em São Paulo e há dois anos mora em São José dos Campos. Está casado há vinte anos com Elisabete Locatelli, com quem tem dois filhos: David, de 18 anos, e a adolescente Stacy Lôyde, que acaba de gravar um CD de músicas gospel, Simplesmente Stacy. O primogênito, Diego, tem 25 anos. Os três filhos, alternadamente, contracenaram com o pai. Arlindo, que fez vasectomia, é colaborador do Lar Batista de Crianças, um programa de estímulo à adoção infantil, sediado em São Paulo. Lida com crianças em situação de risco e sua função é arrecadar recursos financeiros para o projeto.

Ele mora com a família numa casa de três quartos no Jardim Industrial, um bairro popular de São José. Os únicos luxos da residência são dois aparelhos de ginástica: uma esteira rolante e um step. Arlindo é pastor-presidente do Ministério dos Artistas de Cristo e vive da venda dos CDs que produz, coletâneas de músicas infantis e evangélicas, oferecidas a 15 reais nos locais onde se apresenta. Ele não cobra pelas apresentações em igrejas, mas quem o convida paga suas despesas e se compromete a vender previamente uma quantidade mínima de CDs. Já se apresentou como palhaço de Deus em comunidades evangélicas de brasileiros no Japão, Suíça, Canadá, Estados Unidos, Panamá, Inglaterra e França. Planeja mudar-se, em janeiro, para a Flórida, onde será diretor do Ministério das Artes na Primeira Igreja Batista Brasileira de Orlando. Presidirá cultos vestido de palhaço e dará aulas de arte dramática, comunicação em público e treinamento para os seminaristas da igreja. De mágica, ainda não.

No domingo, 14 de outubro, às nove da manhã, Arlindo foi acordado pelo telefone. Era o chamado de alguém que estava à sua espera na rodoviária. Pulou da cama e, sem tirar o pijama azul de malha, pegou o carro e foi apanhar a visita. A porta direita de seu Fiat Uno antigo só abre por fora e a janela esquerda não desce. Como o tanque do carro estava na reserva, ele parou num posto e colocou combustível. De pijama, saiu do carro para passar o cartão de débito e, mais adiante, entrou numa padaria para comprar pão, presunto e queijo. Só botou uma roupa mais apresentável às quatro da tarde, para ir até Tremembé, em São Paulo, para dar seu show circense-evangélico. Como era perto, foi de carro. Quando o compromisso é mais longe, viaja de ônibus e, raramente, de avião. No mês de outubro, quando se comemora o Dia da Criança, a agenda de shows do pastor foi de uma gincana frenética. Em 28 dias, fez vinte apresentações em dezenove cidades de cinco estados. No Estádio Pinheirão, em Curitiba, sua platéia chegou a 10 mil pessoas.

 

O encerramento dos shows do Palhaço de Deus é feito com música solene. Em gestos ensaiados, ele saca a cartola lentamente, solta a peruca e tira o nariz de palhaço. “Seus papais e mamães me conheceram como o maior palhaço do mundo. E eu troquei essa coroa pelo reino de Deus”, ele diz. Com um paninho na mão direita, ele lambuza o rosto com óleo Johnson e remove a maquiagem enquanto diz: “Eu tinha sucesso, dinheiro e fama. Eu representava uma alegria que eu mesmo não sentia, que não passava de um sorriso pintado”. O que se vê então é um homem calvo e de cara limpa. A música sobe, ele tira o paletó, abaixa os suspensórios e encara o público com ar circunspecto. “Minha mãe morreu, me afoguei na bebida, sofri um acidente e fui desenganado pelos médicos”, conta. “Um pastor expulsou de mim uma legião de demônios e eu me curvei ao Senhor. Eu me tornei um homem de Deus.”

Ainda em outubro, o pastor Arlindo decidiu gravar uma mensagem póstuma, para ser ouvida no dia do seu funeral. “Quando eu morrer, será uma grande comoção popular, um estrondo emocional”, justificou. “Preciso gravar meu último pronunciamento ao público. Tenho certeza de que ninguém vai ter coragem de falar no meu enterro. Então, falo eu mesmo.”

Ele telefonou para o amigo Glaucio Mello, que tem um estúdio de som em casa. Foi nele que gravaram o CD de Stacy. Arlindo reservou um horário de gravação no fim da tarde e não preparou o discurso por escrito. Queria falar de improviso. Ele pretendia dizer: “Venham, meus amiguinhos, não tenham medo. Peguem em mim, toquem em mim”.

Quer ser enterrado com a fantasia de palhaço e um grande sorriso pintado no rosto, ao som de uma marcha fúnebre. Só falta colocar a voz. “Adoro pregar em funeral, é muito divertido”, ele disse. “Minha última frase será: ‘Fui!'”

Ao chegar ao estúdio, o equipamento de gravação enguiçou e o pronunciamento póstumo foi cancelado.