Esponjas, algas e peixes coletados no fundo do mar pela equipe de Rodrigo Moura são indícios de que há um enorme recife na foz do Amazonas. Segundo os manuais, ele não devia estar ali FOTO: FERNANDO MORAES_JBRJ
O recife que ninguém viu
Um ecossistema insuspeito sob as águas turvas da foz do Amazonas
Bernardo Esteves | Edição 123, Dezembro 2016
É possível ver do espaço a grande mancha de água marrom que o Amazonas lança no oceano Atlântico. A pluma, nome que os cientistas dão à massa de água doce trazida pelo rio, pode ocupar uma área maior que a do Pará. A aparência barrenta se deve à quantidade de paus, pedras, restos de plantas e bichos, detritos e sedimentos de toda ordem acumulados em quase 7 mil quilômetros de percurso. O Amazonas nasce na cordilheira dos Andes, no Peru, a mais de 5 mil metros de altitude, e corta o continente de fora a fora até desembocar na altura da ilha de Marajó, dividindo os estados do Pará e do Amapá. Dependendo de como for medido, é o mais extenso dos rios; outros dirão que é o Nilo. Mas num ponto todos convergem: o Amazonas é o curso d’água com maior vazão do mundo. Nos períodos de cheia, num único segundo ele despeja no oceano um volume suficiente para encher 120 piscinas olímpicas.
Em maio de 1975, uma embarcação norte-americana – o Oregon II – navegou pelo litoral norte brasileiro num cruzeiro científico que pretendia avaliar os estoques de camarão naquelas águas. Nas proximidades do Amazonas, as redes lançadas pela tripulação voltaram carregadas de peixes que não deviam estar ali, espécies características de lugares onde há recifes no fundo do mar. Também apareceu uma profusão de esponjas, animais rudimentares que se alimentam de matéria orgânica filtrada da água. Eram tão abundantes que os pesquisadores disseram que naquela região havia um “fundo de esponjas”.
Aquelas eram formas de vida típicas dos recifes, mas não há recifes no estuário de grandes rios tropicais como o Amazonas, conforme ensinam os manuais de biologia marinha. E isso por um motivo bastante lógico: os raios do sol, supunham os cientistas, eram incapazes de transpor a capa espessa de sedimentos e matéria orgânica transportados pelo rio. Sem luz, no local não poderiam viver as algas e os corais que constroem os recifes – estruturas calcárias complexas no fundo do mar que atraem peixes e animais de vários outros grupos. Perto da foz do Amazonas, os corais mais próximos conhecidos estavam no Parcel de Manuel Luís, ao largo do Maranhão, a algumas centenas de quilômetros. Esse banco de corais – o maior da América do Sul – é uma armadilha hoje bem familiar a navegantes e já provocou o naufrágio de mais de 200 embarcações.
A descoberta de um fundo de esponjas nas imediações da foz do Amazonas foi relatada num simpósio em 1977. A dupla de pesquisadores do Museu Nacional de História Natural dos Estados Unidos que assina o trabalho não propôs explicação para a ocorrência daquela fauna improvável para a região. Mas a dúvida assombrava o biólogo marinho Rodrigo Leão de Moura. “Como é que, desde os anos 70, ninguém volta para caracterizar esse troço?”, perguntou numa tarde recente, com os olhos arregalados. Não era o único indício intrigante. A produção pesqueira do Amapá registrava uma quantidade expressiva de lagostas e pargos, uma espécie de peixe comum em recifes. “Lagosta não ocorre em fundo de lama, só em lugar onde tem complexidade estrutural”, ele protestou. Alguma coisa devia haver ali embaixo.
Professora da Universidade da Geórgia, Yager estuda como os oceanos absorvem o gás carbônico – ou CO2 – da atmosfera e estava interessada em investigar esse processo na pluma do Amazonas. Numa entrevista por Skype, a cientista explicou que a pluma tem um impacto enorme sobre a biologia do Atlântico tropical e sobre o ciclo de carbono. “Ela atua como um grande ralo de CO2”, afirmou. Yager preparava então um cruzeiro de pesquisa pela foz do rio para analisar amostras de água e entender o que estava acontecendo. “Eram medições que ninguém tinha feito antes.”
A pesquisadora já fora àquela área em 2010, mas sua expedição parou na fronteira com a Guiana Francesa. Para navegar em águas brasileiras, ela precisaria do aval da Marinha, que só autoriza cruzeiros científicos estrangeiros que contarem com pesquisadores brasileiros a bordo. Para voltar à região, ela articulou uma parceria com o oceanólogo Carlos Eduardo de Rezende, a quem foi apresentada por um colega. Junto com Fabiano Thompson, ele a ajudou a obter a permissão oficial e coordenou a participação brasileira no projeto. O próprio Rezende seria o vice-coordenador de pesquisa do cruzeiro, mas teve um impedimento familiar, e a vaga caiu no colo de Rodrigo Moura.
Como naquela área não havia recifes de coral, a especialidade de Moura, Patricia Yager ficou se perguntando que tipo de pesquisa ele poderia fazer durante a expedição. Quando o conheceu, durante os preparativos da viagem, ela quis saber o que ele gostaria de estudar. O professor brasileiro foi catar o artigo de 1977 que mencionava organismos típicos de recife na foz do Amazonas. Mostrou à americana o mapa com as áreas em que eles haviam sido coletados e disse que queria ir atrás do fundo de esponjas. “Você já foi lá antes?”, perguntou Yager, incrédula. “É bem lamacento.” Moura sabia. Mas insistiu: “Acho que tem coisa interessante lá embaixo.”
A maioria dos pesquisadores a bordo não estava interessada no que encontraria no fundo do mar. A prioridade era coletar amostras de água em diferentes pontos e profundidades da pluma do Amazonas para medir características como acidez, temperatura, salinidade e composição, além de tentar entender que tipo de microrganismos vive ali.
Os únicos pesquisadores envolvidos na busca de um recife na foz do Amazonas eram Rodrigo Moura e Nara Lina de Oliveira, sua aluna de mestrado. Teriam um dia e meio para fazer suas coletas no final da expedição, quando o navio já estivesse tomando o caminho de volta (o cruzeiro durou dezesseis dias). Mas não ficaram de braços cruzados enquanto os demais pesquisadores trabalhavam. Ao longo de todo o percurso, os brasileiros monitoraram a profundidade, o relevo e a textura do fundo para definir os pontos onde tentariam a sorte quando chegasse a hora.
Dispunham de um método simples para sondar as profundezas: lançariam uma draga, uma espécie de grande balde metálico com garras que raspam o solo e recolhem o que estiver pela frente. Ela seria arrastada por 5 a 10 metros, e os cientistas tentariam imaginar que tipo de ambiente havia ali embaixo a partir desse conteúdo.
Quando concluiu suas medições, onze dias após a partida, Yager perguntou a Moura para onde deveriam rumar. O brasileiro tinha coordenadas precisas para indicar, com base nas medições que havia feito durante a viagem. Mas a americana não tirava da cabeça o velho mapa feito à mão que o brasileiro lhe mostrara no início de tudo, no qual cada ponto assinalado equivalia a um círculo com 40 quilômetros de diâmetro. Moura parecia estar procurando uma agulha no imenso palheiro oceânico.
A draga submergiu pela primeira vez às 16 horas de 24 de julho, uma terça-feira. Yager contou que era um belo entardecer, e que muitos pesquisadores estavam no convés quando o conteúdo foi trazido à tona. Para muitos deles, buscar um recife na foz do Amazonas era apenas uma ideia quixotesca do brasileiro. “Ninguém acreditava que ele fosse achar alguma coisa”, disse a americana.
Moura não poderia ter sido mais feliz na escolha do ponto para lançar a draga. Junto com a lama, vieram também esponjas coloridas, corais, peixes. Pesquisadores e tripulantes interromperam o que estavam fazendo para admirar o butim. “Aquelas eram as coisas mais bonitas que eu já tinha visto no fundo do mar”, espantou-se Yager. Moura fez cara de quem riu por último quando relatou o episódio. “Acertamos o recife na cabeça.”
Os pesquisadores notaram que as formas de vida variavam em função da região navegada. O setor norte da foz do Amazonas, para onde a corrente predominante leva a água do rio, era o de menor biodiversidade. Ali predominavam as esponjas. Ao sul, onde as águas são mais claras, eles coletaram corais. Tanto ali quanto na faixa central havia uma profusão de nódulos calcários construídos por algas vermelhas. Parecia que aquelas estruturas de tamanho pequeno e formato irregular – que os pesquisadores chamam de rodolitos – eram a formação predominante no fundo do mar, como acontece em alguns recifes.
Se expedições anteriores haviam identificado organismos associados a esses ambientes, agora os pesquisadores tinham trazido à superfície os próprios organismos capazes de construí-los. Ninguém tinha dado muita bola à ideia do brasileiro, mas parecia que, de fato, havia um recife insuspeito sob aquela água marrom de aparência espessa.
Para Moura e Oliveira, o material recém-chegado ao convés significava apenas o início do trabalho. Revezando-se para dormir, eles passaram os dias seguintes conduzindo as coletas e classificando as amostras recolhidas entre uma dragagem e outra. “Chega todo tipo de organismo junto com sedimento, é uma bagunça danada”, resumiu Moura. Depois de uma primeira lavagem, o material era separado em bandejas para acondicionar cada tipo de organismo. “Esponja põe em álcool, alga calcária seca vai em sílica”, explicou Oliveira. “Tinha que numerar e fotografar tudo.”
Por limitação de bagagem, os brasileiros não poderiam trazer tudo o que coletaram. Oliveira contou que guardaram os espécimes mais significativos dos principais grupos e descartaram o resto, com pesar. Ainda assim, embarcaram carregados para o Brasil – por muito tempo Moura conservou o cartão de embarque com o canhoto dos trinta volumes que despachou para o Galeão.
A expedição foi realizada no fim de setembro de 2014, época que reúne as condições de marés e correntes mais favoráveis para a navegação na foz do Amazonas. O Cruzeiro do Sul zarpou de Belém e seguiu até o Atlântico pelo delta do rio, numa viagem de uma semana com onze pesquisadores a bordo. Agora eles dispunham de redes de pesca feitas por encomenda para enfrentar a irregularidade do recife, com uma trama resistente que permitiria multiplicar a quantidade de organismos coletados. O material chegava em arrastos que pesavam perto de 1 tonelada. Uma foto que Moura mandou enquadrar mostra-o maravilhado diante de uma rede carregada de um arco-íris de esponjas e formações calcárias recém-içadas de seu hábitat, em volume suficiente para encher uma caçamba.
Sensores embarcados nos navios permitiram mapear a extensão e o relevo do recife. Os pesquisadores puderam identificar grandes estruturas calcárias em erosão dispersas, algumas com 30 metros de altura e 300 de extensão. Estimam que o recife ocupe uma superfície de 9 500 quilômetros quadrados, pouco menos de metade do território de Sergipe, em profundidades que variam de 30 a 120 metros. Está a uma distância média de 150 quilômetros do litoral e se estende por cerca de mil quilômetros entre a fronteira do Brasil com a Guiana Francesa e o estado do Maranhão.
Mas ninguém foi lá ver como de fato o recife é. As amostras trazidas são sua evidência mais palpável. Na expedição de 2014, os pesquisadores levaram um pequeno submersível não tripulado que poderia filmar o recife, mas preferiram não soltá-lo nas águas turvas e agitadas da foz do Amazonas. “A variação diária da maré ali pode chegar a 8 metros”, contou Moura. “Não dá para arriscar perder um equipamento de 1 milhão de reais.” Depois do robô, o passo seguinte seria enviar um mergulhador. “A última coisa que você coloca dentro d’água é um ser humano.”
O biólogo Gilberto Amado Filho apontou em seu computador para a foto de um rodolito coletado na foz do Amazonas a 120 metros de profundidade. Via-se uma estrutura achatada com manchas em vários tons de verde e rosa. “O que tem cor avermelhada está vivo”, explicou o cientista. “Isso está fazendo fotossíntese, então em algum momento com certeza tem luz lá.” As algas vermelhas são capazes de aproveitar o último resto dos raios de sol que atravessam a pluma. Elas captam a luz azul, no final do espectro visível. “Ela é especializada em viver num ambiente de pouquíssima luz”, disse o biólogo.
Amado Filho é o especialista do grupo brasileiro no estudo das algas que construíram aquela grande estrutura calcária. Pesquisador do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, costuma dizer que trabalha com plantas que fazem pedra. As algas vermelhas, explicou, crescem em camadas, umas sobre as outras, e secretam carbonato de cálcio que vai se acumulando de forma irregular em nódulos que podem atingir o tamanho de uma manga. Eles às vezes se deslocam de acordo com as correntezas, mas também podem se fundir e formar estruturas maiores. As algas que os constituem pertencem ao grupo das rodofíceas, daí o nome rodolitos.
“Essa pedra forma um pequeno condomínio de calcário”, explicou Amado Filho, mostrando um nódulo. “O edifício é todo poroso, e as cavidades servem de abrigo para toda uma biodiversidade associada.” Instalam-se por ali moluscos, crustáceos e invertebrados variados, além dos peixes e das esponjas, que encontram na estrutura calcária um substrato para se fixar. Os rodolitos são a formação predominante na foz do Amazonas, e as algas vermelhas são seus principais engenheiros. Amado Filho disse que é errado chamá-lo de recife de coral, ainda que ele tenha corais. “É um recife coralíneo do tipo banco de rodolitos”, definiu.
As algas calcárias não são os únicos habitantes daquele ecossistema que conseguem se virar num ambiente de extrema escuridão. Ali há também micróbios capazes de, prescindindo da luz, produzir energia a partir de moléculas como a amônia, por um processo chamado de quimiossíntese. Entender o tipo de microrganismos que ocorrem nas águas marinhas é o objetivo do oceanólogo gaúcho Fabiano Thompson, que chefia um laboratório dedicado ao tema na UFRJ. Após analisar o DNA de microrganismos presentes em amostras de água colhidas abaixo da pluma do Amazonas, sua equipe identificou os genes usados por eles para fazer quimiossíntese. “O mecanismo sustenta os micróbios, que por sua vez servem de alimento para as esponjas”, disse Thompson.
Uma expedição à área revelou um banco de rodolitos do tamanho do estado de Sergipe. A descoberta foi relatada num artigo publicado em 2012 na revista PLOS One, assinado por Amado Filho, Moura, Thompson e outros colegas. Moura notou que, com a descoberta, o grupo aumentou em vinte vezes a área conhecida de recifes em Abrolhos, mas a maior parte dela está fora de unidades de conservação. O biólogo se espantou com a ignorância sobre uma região que era estudada desde o século XIX. “Os bancos de rodolitos são o principal componente do fundo marinho da plataforma tropical brasileira, e a gente não tem a menor familiaridade com eles”, lamentou.
Gilberto Amado Filho ressalta uma função importante exercida pelos rodolitos. A origem do carbono no carbonato de cálcio secretado pelas algas vermelhas está nas moléculas de gás carbônico dissolvidas no mar. O CO2, como se sabe, é o principal gás responsável pelo efeito estufa que está causando a mudança climática, e boa parte do gás lançado na atmosfera vai parar nos oceanos. “As algas estão estocando o gás carbônico que veio da atmosfera numa estrutura recifal”, explicou.
Amado Filho calculou a quantidade de carbonato de cálcio armazenada nos rodolitos de Abrolhos e chegou a um número da mesma ordem de grandeza do verificado nos maiores depósitos calcários submarinos do mundo, incluindo a Grande Barreira de Corais, na Austrália.
Mas o carbono está estocado de forma frágil nos bancos de rodolitos e nos demais tipos de recife. À medida que os oceanos absorvem mais CO2, vão se tornando mais ácidos, num fenômeno intimamente ligado ao aquecimento global. As perspectivas não são auspiciosas: se forem confirmadas as projeções de aumento da acidez dos mares até o fim do século, os bancos de rodolitos correm o risco de dissolver como comprimidos efervescentes.
Enquanto isso não acontece, a formação amazônica pode ajudar a entender como os recifes vão reagir ao aquecimento global. Rodrigo Moura notou que o recife amazônico está num ambiente mais ácido que o normal, devido ao pH mais baixo da água do rio. Os níveis de oxigênio também são menores, e a água, mais turva. “E essas são condições que a gente prevê que serão intensificadas a partir das mudanças climáticas”, notou o biólogo. “O recife amazônico é uma janela para entendermos como esses ecossistemas vão se comportar no futuro.”
O recife recém-descoberto está localizado no cerne da nova fronteira de expansão da indústria petroleira em águas brasileiras. A região da margem equatorial do país concentra a maior parte dos quase 300 blocos exploratórios de óleo e gás oferecidos num leilão em 2013 pela ANP, a agência federal que regula o setor. Uma dúzia deles foi licitada na Bacia Marítima da Foz do Amazonas – uma área oceânica quase do tamanho do Rio Grande do Sul que se estende do litoral norte do Amapá à ilha de Marajó. Foram arrematados por empresas variadas, mas ainda não houve exploração comercial de petróleo naquela bacia.
Nos anos 70 e 80, a Petrobras perfurou ali dezenas de poços, mas não achou grande coisa. O interesse pela região diminuiu, mas reavivou no começo desta década, quando foram encontrados grandes reservatórios de óleo e gás tanto nas águas contíguas da Guiana Francesa quanto na costa de Gana, na África Ocidental, que no passado era colada ao litoral brasileiro. Diante de estudos que apontaram semelhanças geológicas entre essas duas regiões e a Bacia da Foz do Amazonas, as petroleiras passaram a vê-la como promissora.
Um levantamento feito em 2012 pelo USGS, o serviço geológico norte-americano, calculou que ali haveria quase 700 milhões de barris de petróleo, um número modesto. Por ocasião da licitação de 2013, um geólogo da ANP estimou para a região um potencial bem maior, de 14 bilhões de barris. O economista Adriano Pires assinalou que esse é um número comparável ao do Campo de Libra, na costa fluminense, onde se descobriu recentemente uma quantidade “inimaginável” do recurso, nas palavras da então diretora da ANP.
A diferença é que explorar petróleo na foz do Amazonas é muito mais caro e complexo do que no litoral fluminense, continuou Pires, que é sócio de uma empresa de consultoria que atua no ramo da energia, o Centro Brasileiro de Infraestrutura. “Os custos de exploração são muito mais altos, pois os reservatórios são distantes de portos e de infraestrutura”, escreveu o consultor num e-mail. Pires notou ainda que se trata de uma área ambientalmente sensível e que não conta com a base logística necessária para responder a eventuais acidentes.
Um vazamento de petróleo ali poderia ter impactos ambientais severos. São águas que banham a franja da maior floresta equatorial do planeta e a maior área de manguezais do litoral brasileiro, no litoral do Amapá. Transitam por ali peixes-bois, tartarugas, aves migratórias e incontáveis espécies ameaçadas. A confirmação de que a área tem um recife no fundo do mar torna o quadro ainda mais delicado.
Estudos estrangeiros já concluíram que os bancos de rodolitos podem ser soterrados pelo material de descarte gerado pela perfuração dos poços. No Brasil, o estágio de conhecimento dessas formações é pequeno demais para se avaliar o quanto seriam afetados pela exploração de petróleo, segundo concluiu um relatório lançado em 2014 pelo Ibama, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, e pelo IBP, Instituto Brasileiro de Petróleo, Gás e Biocombustíveis, que representa as indústrias do setor. Na Bacia da Foz do Amazonas, não há superposição entre o recife e os blocos licitados em 2013. Na Bacia de Barreirinhas, porém, no litoral do Nordeste, foram licitados blocos situados em parte sobre os bancos de rodolitos.
Descrever os ecossistemas que existem nas áreas que pretendem explorar é uma das obrigações que as petroleiras têm para conseguir do Ibama a licença necessária para operar na foz do Amazonas. Mas os pesquisadores consideram insuficiente o esforço que essas empresas têm feito até aqui. “Como é possível haver ali dezenas de blocos em fases distintas do processo de licenciamento e você não detectar que tem um recife?”, indagou Moura.
Na realidade, empresas que atuam na região detectaram, sim, indícios do recife, segundo reconheceu o IBP numa nota enviada à piauí. “Estudos da década de 80 identificaram estas formações, que foram incluídas no Estudo de Impacto Ambiental elaborado em atendimento ao processo de licenciamento ambiental das atividades de perfuração marítima exploratória”, afirma o instituto. Mas a descoberta foi feita sem alarde, tanto que só em 2016 o recife foi descrito na literatura científica.
Os pedidos de licença ambiental para a exploração de petróleo em águas amazônicas tramitam num prédio na Praça XV, no Centro do Rio de Janeiro, na sede da Coordenação-Geral de Petróleo e Gás do Ibama. O analista ambiental Alexandre Santos de Souza, um dos responsáveis pela avaliação dos pedidos, disse numa entrevista em outubro que o Ibama não autoriza a perfuração em ambientes com rodolitos. “Estamos solicitando às empresas que façam um mapeamento do fundo do mar com equipamentos capazes de identificar alterações na textura que indiquem uma formação de recifes.”
A proibição de perfurar nos bancos de rodolitos não livra o ecossistema do risco de um derramamento de óleo de alguma plataforma próxima. Itagyba Alvarenga Neto, outro analista do Ibama que avalia os processos de licenciamento ambiental, lembrou que a ameaça maior nesse caso não está na região da foz do Amazonas, mas nas bacias petrolíferas vizinhas de Pará–Maranhão e de Barreirinhas. Se houvesse algum vazamento por lá, continuou, as correntes predominantes poderiam levar o óleo até a região do recife. Alvarenga Neto disse que o Ibama exigiria das empresas que operam ali medidas que reduzam o risco de atingir a região, mas admitiu que a análise dos licenciamentos daquelas áreas não deve acontecer de imediato.
Três das empresas que venceram o leilão de 2013 – Total, BP e Queiroz Galvão – solicitaram ao Ibama licença para a perfuração de poços exploratórios na Bacia da Foz do Amazonas, a fim de conhecer o potencial dos reservatórios. Os blocos em questão estão em águas ultraprofundas, a mais de 2 mil metros, distantes da área ocupada pelo recife amazônico. As três empresas entregaram seus estudos do impacto que a atividade provocaria na região. O Ibama já avaliou o da Total. “Existiam lacunas que precisavam ser esclarecidas e fizemos uma série de pedidos adicionais”, disse Alvarenga Neto.
O mesmo ocorreu com o documento que apresentava a caracterização ambiental da região, feito em consórcio pelas três petroleiras. Num parecer de 38 páginas que avaliou o estudo entregue pelas empresas, uma equipe do Ibama enumerou todas as lacunas que enxergou e criticou os postulantes como uma professora que dá um pito num aluno pouco caprichoso. “Surpreende a entrega de um estudo incompleto, quando as empresas ainda coletavam informações em campo, sendo apresentada uma complementação cinco meses depois, período em que o primeiro documento ainda estava em fase de análise pela equipe”, concluiu o parecer, assinado por Souza, Alvarenga Neto e outros cinco funcionários do Ibama.
Em nota, o IBP afirmou que o pedido de esclarecimentos do Ibama é rotineiro no processo de licenciamento para a exploração de óleo e gás, e destacou o pioneirismo da caracterização ambiental da região, conduzida por empresas brasileiras de ponta em estudos ambientais, em convênio com universidades e centros de pesquisa. Alegou, por fim, que o estudo “foi feito com o propósito específico de subsidiar a avaliação dos impactos das perfurações planejadas, e não de esgotar todas as lacunas de conhecimento acerca da região”.
O recife encontrado na foz do Amazonas não está em praias de água transparente e areia branca nas quais nos acostumamos a ver esse tipo de formação nos documentários sobre a natureza. David Obura, ecologista de corais que dirige um instituto de biologia marinha no Quênia, chamou a atenção para o viés histórico dos pesquisadores. “Nosso interesse pelos recifes de corais começa quando Charles Darwin estuda esses organismos nas águas cristalinas do Pacífico, e talvez por isso só esperamos ver esse tipo de formação em ambientes de águas límpidas”, disse ele durante uma entrevista em setembro. “Mas descobertas recentes têm mostrado cada vez mais recifes em ambientes com muitos sedimentos.”
No Amazonas, as evidências nesse sentido vinham se acumulando, a despeito da discrição da indústria petroleira. Num trabalho publicado em 2015, o biólogo Ralf Cordeiro e outros três colegas decidiram investigar os registros de organismos coletados em expedições feitas à região no século passado. Visitaram coleções científicas, leram relatos das viagens e se depararam com corais e outros organismos típicos de recifes. Sem precisar sair da terra firme, concluíram que devia haver recifes profundos nas adjacências da foz. Cordeiro, doutorando em biologia animal pela Universidade Federal de Pernambuco, se entusiasmou ao ver a conclusão endossada pela descoberta do recife. O pesquisador chamou a atenção para o caráter multidisciplinar do estudo brasileiro, do qual não tomou parte. “Eles fizeram a caracterização completa do ambiente, explicaram como a pluma do Amazonas se comporta e qual sua influência sobre o recife”, disse. “O trabalho responde uma pergunta que estava no ar há quarenta anos.”
Ao mesmo tempo, a pesquisa também levanta uma série de questões para entender melhor o funcionamento do novo recife. Para começo de conversa, os cientistas terão de fazer levantamentos mais detalhados da topografia do fundo do mar – nas duas expedições, foram explorados menos de 10% de toda a área do recife. Eles também querem saber se os bancos de rodolitos estão se conectando com os recifes de corais no Caribe, ao norte, e no litoral do Nordeste brasileiro, ao sul, e precisam confirmar se essas formações de fato estão servindo de corredor para algumas espécies, conforme supõem. E falta averiguar melhor quanto carbono os rodolitos estão estocando e como eles têm respondido ao aumento da temperatura e da acidez dos oceanos.
Essas questões devem ser abordadas nas próximas expedições. Carlos Eduardo de Rezende, biólogo marinho da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), que esteve à frente do projeto de pesquisa dedicado ao recife amazônico, planejou para o mês de dezembro um cruzeiro científico com o objetivo de entender como a pluma do Amazonas se mistura com a massa d’água oceânica. “Queremos discriminar esse processo, que foi pouco detalhado nas primeiras missões”, disse Rezende. “Mas não vamos acessar o recife nesse cruzeiro.”
Rodrigo Moura, por sua vez, planeja para setembro de 2017 uma nova expedição de vinte dias com doze pesquisadores para estudar o novo ecossistema. Pretende alugar uma traineira particular e zarpar do litoral maranhense, na altura do Parcel de Manuel Luís. Desta vez, ele espera sondar o ecossistema com um robô – um veículo submersível de operação remota de carenagem amarela, que fica guardado sob uma bancada de seu laboratório. Equipado com uma câmera capaz de filmar em condições de baixa luminosidade, ele pode obter os primeiros registros dos rodolitos em seu hábitat. Moura acredita que será possível enviar mergulhadores – ele próprio se candidata à missão.
O caso do recife amazônico espanta ainda mais por se tratar não de uma espécie, mas de todo um ecossistema em águas próximas ao litoral brasileiro. Para Rodrigo Moura, o achado ilustra a ignorância em relação à nossa plataforma continental. “É como uma Mata Atlântica desconhecida no fundo do mar”, comparou. “Como é possível haver um mega-hábitat desse tamanho que a gente simplesmente não sabia onde estava?”
Entre os cientistas brasileiros ouvidos para esta reportagem, não faltou quem creditasse parte dessa ignorância à falta de incentivo para a pesquisa, agravada no cenário atual de cortes do orçamento federal para a ciência e com a perspectiva de congelamento dos gastos com o setor por duas décadas. Para Fabiano Thompson, da UFRJ, um país com o litoral da dimensão do brasileiro deveria eleger seu estudo como uma prioridade. “Mas o estado atual das ciências do mar no Brasil é uma vergonha”, disparou. Carlos Eduardo de Rezende, da UENF, notou que o contingente de pesquisadores está longe de ser suficiente para estudar os 4,5 milhões de quilômetros quadrados da plataforma continental brasileira, mais de metade da área que o país ocupa em terra firme. “Tem pouca embarcação e pouca gente formada para abranger todo esse patrimônio oceanográfico”, queixou-se.
Rodrigo Moura também atribuiu nosso desconhecimento de grandes ecossistemas submarinos à dificuldade de sondá-los. As imagens de satélite permitem mapear com precisão a cobertura vegetal e os padrões de uso da terra, mas não enxergam bem as profundezas do mar. “A água atua como um filtro”, explicou. “Para reconhecer a cobertura e a topografia do fundo do oceano é preciso ir lá e fazer medições com o equipamento submerso.”
O biólogo assinalou que conhecemos melhor o espaço do que o fundo do mar. “Temos um mapa topográfico de Marte mais preciso que o da parte submersa do planeta Terra”, disse Moura. “Mais de 500 pessoas já foram para a órbita do planeta, e só três mergulharam na fossa das Marianas”, completou, referindo-se ao ponto mais profundo dos oceanos, 11 mil metros abaixo da superfície do Pacífico (o último humano a explorar a área foi o cineasta James Cameron, em 2012).
Para Moura, o desinteresse pelos oceanos também reflete um condicionamento cultural. O biólogo notou que, quando nos questionamos de onde viemos e para onde vamos, geralmente voltamos os olhos para o céu. Só que a vida surgiu nos mares: todos os animais terrestres descendem do peixe que primeiro se aventurou em terra firme (possivelmente um parente do Tiktaalik, um bicho de quase 3 metros que viveu há coisa de 375 milhões de anos). “A gente não olha para o fundo do mar quando pensa no desconhecido”, disse o cientista. “Deus está mais na água que no céu.”