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    No Palácio da Guanabara, em 1º de abril de 1964, Carlos Lacerda concede entrevistas sobre o golpe, ao qual aderiu, triunfante e temeroso; hiperativo, escrevia, falava, trabalhava, lia, viajava e comia com voracidade, com uma impaciência que combinava com sua geração FOTO: ACERVO DO ARQUIVO GERAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

vultos da república

O tribuno da imprensa

A trajetória de Carlos Lacerda, Lúcifer decaído da esquerda que se converteu no paladino da direita e preparou a ditadura militar que liquidaria suas ambições

Otavio Frias Filho | Edição 91, Abril 2014

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Antes de se tornar o símbolo máximo da direita ideológica no panorama político da segunda metade do século passado, Carlos Lacerda foi um promissor militante de esquerda no Rio de Janeiro. Não apenas simpatizante do comunismo, como tantos jovens na década de 30 e nas seguintes, mas um ativista precoce que se destacou nas manifestações de rua e logo estaria no centro dos acontecimentos.

Suas credenciais de contestatário vinham de família. O avô, Sebastião de Lacerda, ministro de tendências liberais no Supremo Tribunal Federal, havia sido abolicionista e republicano na juventude, adepto de Silva Jardim, o mais jacobino dos líderes que derrubaram o Império. Seu pai, Maurício de Lacerda (um “socialista romântico”, na definição do filho), deputado radical ligado ao florescente sindicalismo dos anos 10 e 20, teve atuação destacada nos comícios que forçaram a deposição de Washington Luís e o fim da República Velha em 30.

Carlos Frederico Werneck de Lacerda (1914–77) foi batizado em homenagem aos prenomes de Marx e Engels. Aos 12 anos, leu ABC do Comunismo, de Nikolai Bukharin, presente de seu tio Paulo, irmão caçula do pai. Paulo e Fernando, o irmão do meio, foram dirigentes do Partido Comunista Brasileiro que chegaram a secretário-geral, posto mais alto dentro da organização clandestina. Na faculdade de direito, Lacerda se aproximou de professores socialistas e escreveu seu primeiro livro, Quilombo de Manuel Congo, panfleto em que exaltava uma revolta de escravos no Vale do Paraíba do século XIX. Foi preso ao menos quatro vezes pela polícia entre 33 e 39.

Era uma época de tumulto. A Revolução de 30 levara Getúlio Vargas ao poder, no qual se equilibrava precariamente, num jogo de repressão e barganha com as forças que se digladiavam nas ruas e nos gabinetes, puxando o governo provisório para a esquerda e para a direita. Diante da irrupção mundial do fascismo e sua vertiginosa ascensão na Alemanha, a partir de 1933–34 a União Soviética ditou aos partidos comunistas a adoção de uma política de frente ampla com as tendências antifascistas, numa reviravolta em relação às sectárias diretrizes anteriores. Surgiu a Aliança Nacional Libertadora, organização de fachada do PCB.

Luís Carlos Prestes, que acabara de se converter ao comunismo, ascendia depressa ao comando do partido. Era o mais popular dentre os líderes das revoltas tenentistas que culminaram na Revolução de 30, sua figura banhada na aura ainda fresca do “Cavaleiro da Esperança” à frente da coluna revolucionária que vagara, por mais de dois anos, pelo interior do país em desafio ao governo central.

No começo de 35, num comício da ANL, Lacerda foi incumbido às pressas, como se a ideia surgisse no calor da hora, de lançar o nome de Prestes para presidente de honra da entidade. Alto, galante, já então um improvisador inspirado, ele discursaria em nome da ala estudantil. Quando propôs a indicação de Prestes, desfraldaram-se faixas em que o líder era saudado como presidente honorário. A crer em suas memórias, o sentimento de ter sido levemente usado na maquinação foi a primeira rachadura em sua adesão ao comunismo.

Meses depois, o comando do PC deflagrou uma desastrosa rebelião militar que deveria dar início à insurreição geral, mas redundou em pronto fiasco, estrangulada pelo governo – que, fortalecido, guinou em definitivo para a direita. Numa estimativa delirante, Prestes e seus camaradas haviam convencido Moscou de que a sublevação teria o apoio das massas, o que explica terem sido autorizados a aventura tão avessa à estratégia da frente ampla.

O estigma de golpistas traiçoeiros recairia sobre gerações de futuros comunistas; a mais brutal repressão tratou desde logo de dizimar o partido. Foi nesse ambiente de medo, paranoia e delação que se deu o controvertido episódio da excomunhão de Lacerda pelo PC, que o apontou em panfletos clandestinos como delator, agente fascista e provocador trotskista.

 

Lacerda, que começou cedo no jornalismo, levado pela poeta Cecília Meireles, trabalhava então numa revista mensal. O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) da ditadura faria uma exposição sobre as conquistas do Estado Novo no primeiro aniversário do golpe que Getúlio desfechara, em novembro de 37. Foi encomendada à revista uma série de artigos sobre a mostra, que abrigava uma seção dedicada ao comunismo e sua derrota. Como Lacerda conhecesse o tema, convidaram-no a escrever a respeito, sem assinatura.

Antes, porém, Lacerda consultou o partido, que o achou preferível a algum articulista hostil. Recomendaram que minimizasse a penetração do PC, para não açular a repressão. Publicado em janeiro de 39, o texto é uma longa e detalhada resenha da atuação comunista no Brasil. Nomes aparecem em profusão, embora o jornalista alegasse que nada revelara que a polícia já não soubesse. A influência do PC, ao menos aos olhos dos dirigentes, foi reduzida a zero.

Exigiram uma retratação interna, que ele recusou. E foi esmagado por uma condenação imediata, subterrânea, infamante. Os comunistas não eram muitos, sendo restritíssimo seu recrutamento, mas em torno do partido girava uma numerosa camada de simpatizantes obedientes ao comando central – intelectuais, jornalistas, artistas, boêmios, o mundo em que Lacerda sempre vivera. Da noite para o dia, amigos recusavam-se a lhe dirigir a palavra.

Passou a primeira noite como renegado na casa de Samuel Wainer, bêbado e repetindo que perdera a “mãe”. Wainer dirigia uma revista pró-comunista, Diretrizes, que contava entre seus colaboradores com o próprio Lacerda, Moacir Werneck de Castro (seu primo, depois desafeto), Rubem Braga e Jorge Amado. O escritor baiano reclamou para Wainer: “Veja no que deu você trazer esse crápula aqui para dentro.” Para evitar uma crise, Lacerda foi desligado da publicação. Mais tarde os dois criadores de jornais comandariam a guerra entre Última Hora e Tribuna da Imprensa.

Muito se especulou sobre a ruptura com o PC, à medida que o jovem dissidente revelava talento além de pedigree, e audácia além de ambição, até se converter no Lúcifer decaído da esquerda. Seu pai, Maurício, continuou socialista sem aderir ao partido (nem a Getúlio); seus tios eram do esquema suplantado por Prestes. Teria sido a exclusão uma maneira de debilitar a família recalcitrante? O partido pressentia em Lacerda, talvez, um desejo de projeção pessoal e um gosto pela dissensão que convinha coibir? Ou era o próprio Lacerda quem se achava tolhido numa organização tão fechada, na qual não via futuro para suas capacidades de polemista exuberante e eventual chefe de sua própria facção?

Do período comunista ele reteve dois legados importantes: um conhecimento íntimo sobre o adversário, franqueado apenas a quem pertenceu a suas fileiras, e o hábito mental de levar a consecução das ideias a suas últimas e paradoxais consequências. A partir de 43, numa virada que indignou muita gente, inclusive Lacerda, o pc passou a apoiar Getúlio. Sob forte pressão norte-americana, o Estado Novo rompera com o Eixo; da prisão onde mofava, Prestes enviou telegrama exaltando as “inclinações democráticas” do ditador. Seria o início da longa colaboração entre getulistas e comunistas, e Lacerda seria seu arqui-inimigo.

 

Duas tendências modernizantes se confrontaram na política brasileira ao longo do século. A primeira, de feitio autoritário e extração positivista, considerava o Estado como alavanca principal, se não única, para acelerar o desenvolvimento. Para a outra tendência, de inspiração liberal e composição mais elitista e tradicional, essa alavanca estava na economia de mercado, especialmente no investimento estrangeiro. Uma série de implicações, desde a tônica nacionalista e antiamericana (associada à primeira) até a religiosa (associada, via catolicismo, à segunda), decorria dessa dicotomia. Progressistas contra conservadores; autoritários contra liberais (pero no mucho).

Variantes das duas tendências (assim como a alternativa fascista, logo esmagada, mas “antropofagicamente” assimilada pelo Estado Novo) compunham o mosaico da Revolução de 30. Claro que na prática miúda elas se misturavam ao sabor das conveniências numa cultura sempre clientelística. Em 45, porém, um novo maniqueísmo desceu sobre o mundo e se acoplou ao local, tornando mais nítido e agudo o seu dilema. Estados Unidos e União Soviética passaram a dividir o globo em duas áreas de predomínio que correspondiam a dois modelos opostos de sociedade. Impedidos pela paridade nuclear de fazer guerra aberta, sua luta reaparecia em cada contexto local, em cada controvérsia específica. Posições intermediárias ou alternativas eram arrastadas para um dos lados.

Outro fator conferia ainda mais voltagem à tensão acumulada. Desde 30, os militares passaram a exercer papel predominante, ostensivo ou velado, na política brasileira (e de muitos países), da qual só foram expelidos na década de 80. A impermeabilidade da República Velha a quase toda mudança
forjou uma geração politicamente nervosa – a dos “tenentes” –, propensa a soluções de força, escolada numa respeitável carreira de golpes e rebeliões, quase sempre incruentos, conforme o tradicional e enigmático mecanismo brasileiro de baixa taxa de conversão da violência social em violência política. O exemplo prosperou. Foi somente depois de longa ditadura militar (1964–85) que o respeito às regras se estabeleceu de forma incontestável.

O Exército não pairava no ar, as mesmas vertentes fascista (quase sempre recôndita), liberal e progressista o impregnavam, ao menos até o expurgo de 64. Dentre outros malefícios mais óbvios da tutela militar sobre a política, porém, está o de reduzir o espaço público às dimensões paroquiais da caserna. O Estado fica pendente da politicagem dos quartéis, com suas camaradagens e ressentimentos. Não raro um mesmo oficial aparece num curto tempo em posições opostas do cenário, ao sabor de lealdades pessoais a chefes que chegavam a ficar duas décadas no comando (Castelo Branco encurtou os prazos do generalato em 65, o que contribuiu para o caráter impessoal da ditadura militar).

Foi nesse ambiente crispado, explosivo, que Lacerda começou a brilhar no jornalismo de oposição e se destacar na política partidária, atividades compatíveis pelos hábitos da época. Sua entrevista com José Américo de Almeida – um dos notáveis de 30 que Getúlio aliciou e depois alijou –, publicada em fevereiro de 45 pelo prestigioso Correio da Manhã, derrubou a censura à imprensa. Getúlio foi deposto pelos militares no fim do ano. Lacerda cobriu a Constituinte escrevendo naquele jornal a coluna “Na Tribuna da Imprensa”. Em 47, foi eleito o vereador mais votado do Rio para renunciar meses depois, quando o Senado esbulhou da Câmara Municipal o direito de derrubar os vetos do prefeito, nomeado pelo presidente da República.

Sua campanha contra o candidato presidencial comunista (o partido fora legalizado por breve período) definiu o que seria um padrão: o martelar diário de denúncias de corrupção expressas na mais injuriosa virulência. Devido a outra campanha agressiva, contra a construção do Estádio do Maracanã (propunha uma alternativa mais barata em Jacarepaguá), foi espancado duas vezes por capangas do prefeito, general Mendes de Morais. Essa atuação intrépida, que se estendia ao rádio e logo chegaria à tevê, depressa lhe rendeu a fama de campeão dos costumes públicos – um puritano na terra da malandragem, um intransigente no país do jeitinho.

Sempre invocando o combate à ditadura getulista, cuja cabeça fora decepada sem que o corpanzil fosse desalojado da máquina oficial, Lacerda deslizava, num percurso clássico em sucessivas gerações, de posições socialistas para liberais. Logo anunciaria sua conversão ao catolicismo, e foi mediante influentes amigos católicos, como Alceu Amoroso Lima, Gustavo Corção e Sobral Pinto, que levantou fundos para criar seu próprio e modesto jornal, a Tribuna da Imprensa, em 49.

No ano seguinte, o fantasma que Lacerda agitava se tornou de novo palpável com a volta de Getúlio Vargas ao poder pelo voto popular. Removido num movimento de cúpula como ultrapassado ditador semifascista, retomava o palco no figurino de presidente esquerdizante, sustentado na gratidão das massas pela legislação trabalhista que concedera enquanto autocrata. Lacerda lhe fazia a oposição aguerrida de sempre, que se tornou ainda mais estridente quando Getúlio, cercado por uma imprensa hostil, usou fartos recursos públicos para financiar o lançamento da Última Hora de Samuel Wainer, logo uma cadeia nacional de jornais.

Foi Wainer quem o apelidou de “O Corvo”, em maio de 54, ao vê-lo de terno e gravata pretos, os óculos espessos faiscando sobre o perfil agudo de ave, compungido no enterro de um repórter assassinado por policiais – o caso que Lacerda explorava contra o governo naquele momento. Na capa da edição seguinte, a Última Hora trazia uma charge do ilustrador Lan (Lanfranco Rossini, italiano radicado no Rio) que mostrava um corvo encarapitado na borda do caixão.

Menos de três meses depois, em agosto de 54, Lacerda escapou, com ferimento superficial num dos pés, de um atentado a tiros que matou um major da Aeronáutica, Rubens Vaz, que o escoltava. Logo veio à tona que o mandante do plano desastrado era o chefe da guarda presidencial, com a provável anuência de um irmão do presidente. Revoltados com o assassinato do colega, os militares entraram em pé de guerra.

Lacerda, alçado a herói, capitaneava a onda pela saída de Vargas via impeachment, renúncia ou golpe militar. O suicídio do presidente, semanas após o atentado, inverteu de repente a maré das ruas; a multidão queria agora linchar o “assassino de Getúlio”. O apelido inventado por Wainer se fixou de modo indelével. Às vezes, num curioso eufemismo que o agravava, em vez de aliviar, dizia-se simplesmente: “A Ave.” Toda polarização, porém, rende resultados, e em outubro de 54 ele foi eleito, novamente o mais votado, para o primeiro de seus dois mandatos como deputado federal.

“Não deve ser candidato; candidato, não deve ser eleito; eleito, não deve tomar posse.” Lacerda distribuiu variações dessa frase a respeito de Getúlio e seu legítimo sucessor, Juscelino Kubitschek. Ninguém é golpista sem apresentar uma justificativa qualquer; para Lacerda, caso raro de político dotado de aptidões intelectuais, ela se expandiu numa elaborada narrativa, como está na moda dizer, sobre o Brasil moderno.

 

Os ideais de democracia e progresso haviam sido traídos pelo formalismo esclerosado da República Velha. Foram traídos pela segunda vez quando o inescrupuloso caudilho gaúcho usurpou a Revolução de 30 e instalou a sua volta uma nova oligarquia. “O poder pessoal”, Lacerda disse, “é como um pêndulo que oscila indiferentemente entre a esquerda e a direita, contanto que nesse movimento trabalhe para a engrenagem que está por trás do relógio.”

Ao contrário da anterior, plantada no privilégio fundiário, essa nova oligarquia depende apenas das benesses do Estado. Sua “engrenagem” se compõe de duas partes, além do imprescindível sustentáculo militar. De um lado, “uma casta de incapazes e desonestos, profissionais da demagogia”, que articula o apoio político à camarilha governante e azeita relações com empresários favorecidos.

De outro, um braço trabalhista que comanda os fundos sindicais e manipula o movimento operário, mantendo-o sob rédea curta. Conta para isso com a disciplinada colaboração dos comunistas, bem ou mal enraizados no meio sindical, que por sua vez obtêm em troca espaço e empregos, enquanto fermenta a agitação que um dia poderá levá-los ao poder totalitário num lance de audácia, como na Rússia, como em Cuba.

Todo esse aparato se apoia na ignorância da massa popular, mantida na escuridão por falta de esclarecimento e escola, sempre crédula perante a autoridade patriarcal e grata às concessões demagógicas que esta lhe dispensa como migalhas caídas do banquete. Somente a educação abriria os olhos do povo e o tornaria cônscio de seus direitos.

Educar, entretanto, é um processo lento. Lacerda passou a preconizar o adiamento das eleições presidenciais de 55, pois o impacto emocional do suicídio atordoara o povo, turvando seu discernimento. Sugeria um “estado de exceção”, espécie de consulado militar de um ou dois anos, dedicado a desmantelar a estrutura getulista enquanto uma “Constituinte de especialistas” prepararia as reformas necessárias a assegurar eleições realmente livres.

Por mais que existam elementos de verdade nessa versão, não precisamos aceitá-la, nem muito menos o estapafúrdio remédio prescrito. Ao contrário, visto de outro ângulo, todo o drama político da época reflete uma disputa bem diversa. A saber, a reivindicação crescente da classe trabalhadora (ou de seu segmento organizado) por parcela maior da renda – e a tenaz resistência oposta pelo capital, decerto, mas também por certa classe média tradicional, muita vez lastreada no funcionalismo público graduado e nas profissões liberais, pilares do lacerdismo.

O desenlace de 64 sobreveio quando essa mobilização, até ali domesticada por Getúlio e seus herdeiros, começou a escapar do controle num clima insurrecional que solapava a hierarquia militar e ameaçava os direitos de propriedade. Na perspectiva dessa outra narrativa, inspirada pelo desejo de uma severa limitação social ao capitalismo ou de sua sumária substituição, fica reiterado em Lacerda o epíteto de reacionário que ele teimava em refutar.

Note-se ainda que a sutil reinvenção de Getúlio, de chefe semifascista a líder de um nacionalismo democrático-popular de vocação “socialisteira”, como dizia Lacerda, deslocava este último inexoravelmente para a faixa mais combativa da direita. Ali ele se instalou com gosto: não fosse a polarização daquela era, bastaria seu temperamento para levá-lo a posições exaltadas.

 

A propósito de temperamento, há uma dimensão psicológica que vale mencionar. Lacerda manteve sentimentos ambíguos, de admiração e hostilidade, em relação ao pai. Aos 12 anos matava aulas para ver “O Tribuno do Povo” discursar na Câmara. Mais tarde é o pai quem, ao escutar o filho falando num comício da ANL, exclama para um amigo ao lado: “Não é possível, ouça; fui mesmo eu que gerei este milagre?!” Mas Maurício de Lacerda era um cometa que aparecia e sumia, seu tempo consumido pela política e por outra mulher, com quem se uniu de vez em meados dos anos 40, oficializando sua separação de Olga, a mãe de Carlos, para mágoa da família.

Embora Maurício trabalhasse, naquele turbulento início dos anos 30, por um acordo entre “tenentes”, comunistas e Vargas, sua conduta era irascível como a do filho. Foi sondado para o ministério, logo passou a desancar o governo provisório e se apagou no turbilhão da década. Era dos tais tribunos que fazem, mas não conduzem as revoluções, que derrubam governos e não governam. Lacerda o comparou a Ícaro, “destino fulgurante cortado em pleno voo”. Como se a mística do pai se transferisse magicamente ao filho, quando caiu o Estado Novo e subia a estrela de Lacerda, Maurício se reduzira a um obscuro procurador no Rio, onde morreu em 59.

Do ponto de vista simbólico, portanto, Lacerda usurpou seu lugar, mas isso é normal e até inevitável entre pai e filho. Oculta-se nas sombras do imaginário um outro usurpador, pérfido, terrível, ninguém menos do que Getúlio Vargas. Justiça do Trabalho, jornada de oito horas, férias remuneradas, repouso semanal, indenização por dispensa sem justa causa – as bandeiras do pai foram arrebatadas por Getúlio e postas a serviço de sua ambição, enquanto descartava Maurício, que em nome delas quase morrera nas prisões do presidente Artur Bernardes (1922–26). Interessante pensar na fúria hamletiana de Lacerda contra Getúlio como agressão ao usurpador do pai que existia nele mesmo.

Para empreender a missão a que se consagrara, Lacerda vestiu o manto da instituição mais poderosa da época, a Igreja católica. Ligou-se estreitamente ao Mosteiro de São Bento, polo de atração da elite, onde tornou religioso, em 48, seu casamento civil com Letícia Abruzzini. O clero ainda ditava padrões a serem observados por todos e se imiscuía com desenvoltura na política. No início dos anos 20, um intelectual conservador, Jackson de Figueiredo, criou o Centro Dom Vital, instituto de doutrinação católica que seria influente na capital federal. O propósito era recuperar para o dogma a classe dirigente, cada vez mais suscetível a doutrinas agnósticas e materialistas.

Com o tempo, o perfil ultraconservador do Centro Dom Vital foi amenizado pela influência de pensadores católicos reformistas, como os franceses Jacques Maritain e Teilhard de Chardin. O primeiro procurou conciliar catolicismo e democracia, enfatizando que algum nível de concessão social é imprescindível à harmonia entre capital e trabalho. O segundo tornou a doutrina ainda mais metafórica e flexível, de modo a compatibilizá-la com as descobertas da ciência.

O fio condutor dessa evolução foi Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde), publicista e crítico literário que, como o influente bispo dom Hélder Câmara, começou integralista, transitou para a democracia-cristã nos anos 50 e na década seguinte abraçou a esquerdista Teologia da Libertação, percorrendo assim todo o espectro ideológico disponível. Porém, no período em questão, o esplendor da Guerra Fria, a Igreja estava em bloco na cruzada contra o comunismo ateu – e Lacerda foi incensado como seu paladino.

 

Seu instrumento, na arena parlamentar, sempre foi a União Democrática Nacional. Encetada desde 43 como aliança entre liberais e socialistas não alinhados ao PC, com alguma participação de ilustres trotskistas, a exemplo do crítico de arte Mário Pedrosa, não tardou a adquirir sua configuração definitiva, liberal-conservadora, quando a ala esquerda saiu para fundar o Partido Socialista. Era, a UDN, o partido da resistência aos abusos de Getúlio, mas também o que melhor representava os interesses dominantes, o establishment das camadas altas e médias, ou ao menos seus estratos mais ideológicos.

Entre seus líderes figuravam juristas e acadêmicos eminentes, tidos por inatacáveis sob o prisma da moral e da dedicação à causa pública, punhado de nomes hoje cobertos de pó que compunham uma galeria de varões de Plutarco: Octavio Mangabeira, Adaucto Lucio Cardoso, Prado Kelly, Afonso Arinos, Bilac Pinto, Milton Campos, Aliomar Baleeiro. Meu pai, Octavio Frias de Oliveira, com o habitual ceticismo dos empresários quanto à política, usava o substantivo “UDN” como adjetivo para qualificar qualquer atitude (ou pessoa) presunçosa, santarrona e doutoral, a exalar o perfume, para ele insuportável, da hipocrisia.

O lema do partido era uma divisa paranoide importada do macarthismo americano – “O preço da liberdade é a eterna vigilância” –, que no contexto local vinha bem a calhar em relação ao matreiro e imperecível Getúlio. Um dos símbolos da UDN eram os lenços brancos agitados como sinal de pureza nos comícios, o que tinha, mesmo naquela época em que se usava chapéu e paletó, certo laivo classista.

O partido também contava com seus próceres militares. Dois deles foram candidatos presidenciais, o brigadeiro Eduardo Gomes (45 e 50) e o general Juarez Távora (55), ambos “tenentes” da melhor estirpe, aquele um dos dois sobreviventes do alucinado levante dos 18 do Forte de Copacabana (22), este um dos comandantes da coluna Prestes (1924–27). Mas as candidaturas não empolgavam, a máquina adversária era poderosa e, antes de mais nada, a maioria da população queria votar em Getúlio e seus legatários.

Lacerda fustigava a UDN, que chamou de “maçaroca de tendências”, para que encampasse sua linha de oposição irredutível e escolhesse candidatos mais viáveis. Enquanto ele animava a “banda de música”, bancada de virtuoses da oratória que azucrinava o Executivo na Câmara dos Deputados, a indefectível ala “chapa-branca” entregava-se à “bolinação” (termo de Lacerda) com o governo de turno. Se os líderes da UDN lhe pareciam acomodados, ele lhes soava despótico. Temiam, como explicitou um deles, Daniel Krieger, que se tornasse ditador caso chegasse ao poder. Sobre Lacerda, aliás, o taciturno ditador português António Salazar teria dito: “Terá o poder, se souber calar.”

Quando se dispôs a restituir a democracia, em 45, pressentindo a deposição, Getúlio fomentou o surgimento de dois partidos, o PSD e o PTB. Aquele se juntou em redor dos interventores estaduais que nomeara enquanto ditador. Este era a face parlamentar do aparelho trabalhista, confiado ao afilhado político de Getúlio, João Goulart. Essa coalizão elegeu Juscelino Kubitschek para presidente e Jango como vice em 55. Foram empossados à custa de um golpe original, dito preventivo, em que o ministro da Guerra (Exército) destituiu o presidente interino a fim de garantir o resultado das urnas. Junto com o núcleo do governo deposto, Lacerda se refugiou num navio insubordinado da Marinha e logo partiria para merecido autoexílio de quase um ano em Cuba, Estados Unidos e Portugal.

 

Embora pertencesse à linhagem getulista (foi prefeito nomeado de Belo Horizonte no Estado Novo), Juscelino era um moderado que se converteu em presidente conciliatório e tolerante. Anistiou de imediato as duas revoltas de opereta que oficiais da Aeronáutica (sob desaprovação até de Lacerda) tentaram contra seu governo. Pretendia fugir pela tangente à dicotomia fatídica, rumo a um futuro miraculoso, do “progresso às caneladas” de que a gastança da construção de Brasília foi o emblema. Encontrou um expediente burocrático, entretanto, para vedar o acesso de Lacerda ao rádio e à tevê.

Este deblaterava no jornal e no Parlamento, onde agora era líder da UDN. Empenhava-se em demonstrar que Jango recebera recursos do ditador argentino Juan Domingo Perón, destinados a financiar campanhas eleitorais no Brasil. Antes publicara correspondência de um político peronista ao vice brasileiro – a Carta Brandi – que sugeria relações espúrias, mas o documento se revelou falso, a maior “barriga” (gíria para erro jornalístico) de sua carreira.

Já no governo JK, cai em suas mãos um telegrama secreto da embaixada em Buenos Aires dando conta de que um inquérito militar argentino (Perón havia sido deposto em 55) confirmara não a autenticidade da Carta Brandi, mas o conluio nela implícito. Sem trocadilho, brande o telegrama na tribuna e para atestá-lo revela o código sigiloso da diplomacia brasileira. O governo viu a chance de um xeque-mate e pediu à Câmara a suspensão de suas imunidades parlamentares, a fim de processá-lo por crime contra a segurança nacional.

Defendeu seu mandato num discurso de doze horas, no qual invocou o precedente de Rui Barbosa, que também alegara o interesse público para revelar, na campanha para a segunda eleição presidencial que perdeu, em 19, o código privativo do Itamaraty, por ele acusado de praticar uma diplomacia secreta germanófila. Causou sensação um trecho em que Lacerda se compara ora ao touro imolado para êxtase das multidões, ora ao toureiro que enfrenta sozinho a fera.

“Tudo”, discursou, “menos decepcionar a ilustre plateia que paga caro o lugar à sombra, o ladrão provecto, o contrabandista emérito, o agente de negócios escusos, o promissor emissário de novas cavações, o pioneiro infatigável das comissões copiosas, os promotores dos prazeres proibidos, os empresários dos gozos inefáveis, os letrados do insulto pago à linha, os pensionistas dos ócios indevidos, a turba que preliba a hora em que o enfurecimento do touro, espicaçado, há de levar pelos ares e fincar-lhe as guampas ao temerário que ousou mostrar-lhe, nos passes da capa e nas madalenas, o valor da destreza e da coragem lúcida sobre a brutalidade da besta que escarva e urra.”

Em maio de 57, embora o governo dispusesse de ampla maioria na Câmara, o plenário rejeitou, numa votação histórica (e secreta…), a suspensão das imunidades. Afirmava-se o direito de fazer oposição até a fronteira do irresponsável, traçando limites que a nenhum governo, mesmo emanado do voto popular, era dado transpor. Foi aquele o momento mais alto de sua brilhante carreira parlamentar, e dos mais altos na crônica da Câmara. Mas o melhor (ou pior) estava por vir.

Lacerda percebeu cedo que era irresistível a campanha do governador de São Paulo, Jânio Quadros, à sucessão de Juscelino. E Quadros era um achado. Surgia enfim um político dotado não só de tino administrativo e insuperável magnetismo popular, mas além disso estranho, até refratário, nas suas bizantinas ambivalências e excentricidades, à tradição getulista.

Muito do que pregava o “homem da vassoura” coincidia com o ideário udenista. Lacerda convenceu o partido a apoiar para presidente, em 60, o demagogo que seu colega Afonso Arinos resumiu como “a UDN de porre”. Jânio foi ungido por margem estrondosa, e Lacerda se elegeu de raspão o primeiro governador da Guanabara, o coração do país, cidade-estado criada com a transferência da capital para Goiás. Caberia agora ao jornalista incendiário, ao oposicionista contumaz para quem governo nenhum prestava, mostrar o que faria com o poder que tanto buscara.

Saiu-se bem, opinião comum até mesmo entre antigos adversários. Hiperativo (“Era um susto a cada dia”, diz um antigo auxiliar), montou uma equipe inovadora que deu impulso, entre dezembro de 61 e de 65, a realizações relevantes. Numa cidade em que faltavam escolas, quase dobrou o número de crianças estudando e aumentou em mais de 50% o número de professores, embora tenha generalizado o recurso a dois e às vezes a três turnos por estabelecimento.

Numa cidade em que a falta d’água era cantada em samba, construiu a adutora do rio Guandu, ligação de 43 quilômetros que resolveu um problema perene desde a época em que Tiradentes, morando no Rio em 1788, concebeu um plano para solucioná-lo. Ampliou a rede pública hospitalar em 30%. Fez erguer 12 mil casas populares para abrigar moradores deslocados pelo controvertido programa de remoção de favelas que implantou. Instalou 6 quilômetros de túneis, entre eles o Rebouças, que permitiu a conexão direta entre o norte e o sul da cidade. E deixou o esplêndido parque do Flamengo (o aterro em si era anterior; o projeto paisagístico é de Roberto Burle Marx), concebido e executado por sua amiga Lota de Macedo Soares, que o persuadiu da obra prevendo que ela o faria um governante para sempre lembrado.

Honestidade e competência ajudam, mas ninguém faz milagres. Lacerda era o governador anticomunista da cidade-símbolo do país, e as autoridades norte-americanas facilitaram seu acesso a recursos do programa Aliança para o Progresso e sobretudo do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), criado em Washington um ano antes de sua posse no Rio para financiar projetos na América Latina. Ainda assim, de acordo com o pesquisador Maurício Dominguez Perez, autor de Lacerda na Guanabara (livro de 2007, simpático ao protagonista, mas municiado de estatísticas), os empréstimos externos cobriram apenas 15% do montante de investimentos.

O incremento das receitas teria por origem a forte elevação de impostos (aumento real de 33% no período) e taxas (como a da água, até então mero valor simbólico), a melhoria na eficiência arrecadatória e o recurso à criação de empresas públicas, livres do emperramento legal que paralisava a administração direta e facultadas pela Constituição estadual, feita sob influência de Lacerda. O Banco do Estado da Guanabara também financiou as obras. Lacerda perdeu, porém, a eleição de 65, quando seu adversário Negrão de Lima foi eleito para sucedê-lo. Recebeu as finanças do Estado em condições “razoáveis”, segundo um especialista que conheceu os bastidores da transição.

A oposição procurava atacá-lo como ele fazia antes de ser governo. Quando, a fim de sanear as condições insalubres do morro, sua administração queimou os casebres do Pasmado, cujos moradores haviam sido transferidos para a remota Vila Kennedy, foi chamado de “Nero da Guanabara”. Reportagem da Última Hora revelou que o Serviço de Repressão à Mendicância vinha exterminando indigentes, cujos corpos eram atirados no rio da Guarda. Embora o governador tenha punido os responsáveis e os encaminhado à Justiça, ganhou outro apelido, “o Mata-Mendigos”. Ainda assim, sua candidatura deslanchava com ímpeto rumo à eleição presidencial de 65, quando ele desafiaria o favoritismo de Juscelino (apenas a reeleição consecutiva era vedada).

 

Essa foi a “maior eleição presidencial que não houve”, parafraseando o poema-piada de Murilo Mendes sobre a Batalha de Itararé, na Revolução de 30, que nunca foi travada. Sete meses depois de empossado, Jânio tentou articular uma espécie de golpe constitucional, encenação em que ele deixaria o cargo apenas para reassumi-lo em seguida, atendendo ao clamor popular, investido de poderes extraordinários. Sondado para tomar parte na manobra, sem saber exatamente do que se tratava, Lacerda foi à televisão e a denunciou ao país, o que parece ter precipitado a farsa, pois Jânio apresentou sua renúncia na manhã seguinte, em agosto de 61.

Ninguém moveu uma palha. Mas a esdrúxula legislação eleitoral permitia eleger presidente e vice de chapas diferentes, e o vice de Jânio era o mesmo de JK: João Goulart. A “Campanha da Legalidade”, dirigida pelo então governador gaúcho Leonel Brizola, líder do setor radicalizado do trabalhismo, dividiu o Exército quanto à posse. Esta se tornou viável graças a solução habilidosa, mas postiça: o Congresso aprovou às pressas o regime parlamentarista, e Jango ascendeu com poderes amputados. Sucederam-se três primeiros-ministros, mas o arranjo funcionava mal, até porque maquinava contra ele o próprio presidente, a quem um plebiscito devolveu, em janeiro de 63, as prerrogativas do cargo.

A partir daí, a polarização se precipita e a confrontação sempre adiada – em 55, em 61 – bate às portas com furor. Jango tentou conciliar os dois campos em que o país se apartava de maneira a cada dia mais drástica. Foi dragado pelo ativismo da facção esquerdista de seu bloco e se entregou, sempre relutante, à escalada da expropriação de terras para a reforma agrária, enquanto tolerava a insubordinação entre sargentos e fuzileiros das Forças Armadas, estimulada por revolucionários e provocadores. Caiu sem um tiro em março de 64.

Ao contrário do que às vezes se pensa, Lacerda não participou diretamente dessa conspiração, incubada por ele desde 55, salvo nos dias do paroxismo final, quando algum golpe – da direita ou do próprio presidente encurralado – parecia inevitável e iminente. Jango tentara um golpe constitucional, em outubro de 63, pela imposição do estado de sítio, mas a própria esquerda, desconfiada, não lhe deu apoio. Lacerda, claro, não se convertera ao legalismo, mas temia o que de fato veio a acontecer, ou seja, que uma ditadura militar compelisse ao adiamento da eleição de 65, frustrando seu acesso ao prêmio tão cobiçado quando este já parecia ao alcance da mão.

Aderiu, triunfante e ressabiado, ao governo do general Castelo Branco, que o enviou a um giro internacional para explicar a “revolução” (durante inamistosa coletiva de imprensa em Paris disse, numa piada hoje anacrônica, que no Brasil as revoluções eram como os casamentos na França, sem derramamento de sangue). Foram o adiamento e a conversão da eleição presidencial direta em indireta que o devolveram à oposição. Dedicou-se a combater a política recessiva de Castelo Branco, cujas repercussões o atingiam, embora o primeiro governo militar se parecesse muito com o “consulado” reformador que imaginara em meados dos anos 50. Travou violenta polêmica com Roberto Campos, então ministro do Planejamento, homem público cultivado, liberal-conservador, cosmopolita e acusado de servil aos interesses americanos – exatamente como ele.

Lacerda não se continha em posições moderadas. Chegou a flertar com a “linha-dura” do regime a fim de apressar a saída de Castelo Branco. Intimidado, em 66 o Congresso elegeu para presidente o ministro da Guerra, Costa e Silva, que impusera seu nome ao próprio Castelo Branco. Lacerda passara a organizar a “Frente Ampla” contra o regime, implausível entendimento com seus inimigos JK e Jango (aquele cassado, este exilado), sob a justificativa de que, se brigava pelo interesse público, podia fazer as pazes pelo mesmo motivo.

Em dezembro de 68, acossada por manifestações de protesto e pela incipiente guerrilha de esquerda, a ditadura cancela o que restava de direitos constitucionais e dá início a uma repressão indiscriminada. Preso, entre tantos outros, Lacerda fez greve de fome por uma semana e foi libertado, após sua filha Maria Cristina enviar carta de protesto ao general-presidente. Mas seus direitos políticos foram cassados por dez anos. Tinha 54 quando começou o ostracismo do qual nunca retornaria.

 

Dedicou-se a viajar, escrever crônicas, pintar quadros, cultivar rosas e criar faisões; publicou livros, próprios e alheios, pelas editoras que fundou (Nova Fronteira) e comprou (Nova Aguilar), ambas com bons serviços prestados à cultura. Tentou ser empresário, no ramo do financiamento imobiliário, o que não era nele uma vocação; sua libido, digamos, era sublimada no poder, não no dinheiro. Disse, em depoimento, que o exercício do poder como dever bem cumprido era nada menos que “a única sensação de imortalidade que uma pessoa pode ter”.

Passaram-se anos. Esgotado o ciclo de prosperidade do “milagre econômico”, premida pela repentina disparada do preço do petróleo, a ditadura ensaiava uma calculada liberalização a partir de 74. Quase todo dono de jornal tem seus momentos de repórter. No ano seguinte, um certo dia, meu pai chega à Folha de S.Paulo com informações quentes, mas imprecisas, que recebera de alguma fonte, sobre estranha movimentação entre os líderes proscritos.

Cláudio Abramo, antípoda ideológico de Lacerda, a quem conheceu bem, mas admirador de seu talento, sentou à máquina e redigiu uma reportagem imaginária com base nos dados esparsos, publicada sem assinatura no dia seguinte. “À mesa”, escreveu, “um perfil que outrora foi de ave, mas que os anos e a fartura benfazeja arredondaram, corta a sala em dois: óculos pesados, para ler e vislumbrar, no horizonte, os arautos da borrasca ou os portadores das boas-novas. Uma ambição frustrada pelo temperamento e uma inteligência reduzida pela paixão. […] É o velho leão – não tão velho que não lhe restem alguns anos de fulguração na paisagem, tornada pobre e sáfara, e da qual foi alijado pelo descontrole verbal. Inveterado semeador de ventos, colhido pela tempestade, arribou numa praia, náufrago, mas com boa saúde, fortalecido por um longo repouso.”

Mas sua vitalidade não era a mesma, sua mística já mergulhava no esquecimento, seu tempo havia passado. Morreu em 21 de maio de 77, de modo inesperado, vítima de infarto causado por uma infecção bacteriana aguda que se alojou no coração, num primeiro momento confundida com gripe pelos médicos. Teve três filhos, Sérgio, Sebastião e Maria Cristina. No próximo dia 30 de abril transcorre o centenário de seu nascimento.

Seu cânone biográfico é dominado por um livro exaustivo e irrefutável, ao menos quanto aos fatos, registrados com minúcia, quase mês a mês, ao longo de mais de 1 200 páginas. Carlos Lacerda: A Vida de Um Lutador (do inglês Brazilian Crusader) foi escrito pelo historiador norte-americano John Watson Foster Dulles (1913–2008), filho do secretário de Estado (1953–59) no governo Eisenhower, e editado em dois volumes na década de 90.

Embora o tom seja favorável ao biografado, o texto é descritivo e rigoroso, apoiado em vasto acervo de depoimentos e ainda mais vasta pesquisa em periódicos, discursos, cartas, memórias. Fazendo lembrar o dito de Voltaire de que o segredo de aborrecer está em dizer tudo, este livro circunspecto não se permite a menor lacuna e reporta até fugazes romances que Lacerda manteve – com duas atrizes: Maria Fernanda (filha de Cecília Meireles) nos anos 50 e a americana Shirley MacLaine no fim da década seguinte.

Suas qualidades se confundem com seus defeitos. Falta alma ao livro, que quase não respira, opresso pela massa de informações ali reunida. Da mesma forma que uma árvore frondosa, magnífica em seu isolamento, a biografia de Foster Dulles terá inibido outras tentativas nas imediações, por parte de autores que decerto se sentiram desencorajados a trabalhar em campo tão esgotado sob o aspecto documental.

Mais palpitante é o Depoimento, livro publicado logo após sua morte, em 77. Um ano antes, o jornalista Melchíades Cunha Júnior, do Jornal da Tarde, propôs ao diretor-proprietário Ruy Mesquita colher uma série de testemunhos, na forma de entrevistas a uma equipe de repórteres, de figuras históricas da política brasileira. A aristocrática família Mesquita, da qual Getúlio tomou O Estado de S. Paulo em 1940, após ter banido do país seus donos, mantinha ostensiva predileção pela UDN e por Lacerda, a quem era unida por vínculos de amizade.

O próprio Ruy atuou como ator amador numa peça de Lacerda encenada em 45 por seu tio, o teatrólogo Alfredo Mesquita. Quando jovem, o futuro político caçava morcegos com os anfitriões na fazenda da família em Louveira, perto de Campinas. Às vésperas da morte, Lacerda preparava uma biografia dos irmãos Júlio de Mesquita Filho e Francisco Mesquita, que estaria em estágio adiantado e cujos originais, ao que tudo indica, desapareceram.

O primeiro depoimento aos jornalistas foi o dele, tomado durante 34 horas em março e abril de 77, no Sítio do Alecrim, no Rocio, em Petrópolis, região onde tivera, nos anos 50, uma casa de campo vizinha àquela onde moravam Lota de Macedo Soares e sua amante, a poeta americana Elizabeth Bishop. Lacerda frequentava o círculo de amizades das duas, que eram lacerdistas, embora não se encaixassem no pesado eufemismo que o cronista Antônio Maria usou, “as mal-amadas”, para satirizar as mulheres de classe média, em geral casadas e católicas, que se voluntariavam às pencas para fazer campanha por Lacerda no Rio.

Os depoimentos seriam revisados pelo entrevistado e publicados somente após sua morte, o que estimulou Lacerda a falar com desembaraço, como se apresentasse contas ao tribunal da História. Mas o depoente morreu no mês seguinte, sem reexaminar o texto, que foi revisto e anotado por seu sobrinho, o jornalista Cláudio Lacerda. Em quase 500 páginas, é um relato colorido por comentários sardônicos e observações reveladoras. Seu tom de autojustificativa não compromete a leitura ágil, trepidante.

 

A essas obras veio se somar, no ano passado, um livro peculiaríssimo, desde logo pela autoria. A República das Abelhas foi escrito pelo romancista Rodrigo Lacerda, seu neto. Como na história de Brás Cubas, de Machado de Assis, trata-se de autobiografia redigida por autor defunto, o próprio Lacerda. Este, à semelhança do predecessor literário, divaga enquanto vai e volta de um ponto a outro de sua atribulada existência. Para compor seu discurso, o verdadeiro autor do livro parece ter lido tudo o que Lacerda escreveu e muito do que se escreveu sobre ele. Da infusão de todos esses textos, destilou determinados episódios, que encerram camadas interpretativas, para submetê-los a nova demão literária.

A intermitência de pontos de vista, facilitada pela onipresença do falso autor que paira sobre o mundo dos vivos, do qual acaba de desencarnar, abre uma visada como que cubista, fraturada em ângulos dissonantes, de sua biografia, da política e do Brasil. Criticou-se, com razão, certa falta de verismo, até vocabular, no monólogo. Mas sua dimensão literária estará menos no estilo do que na misteriosa articulação entre os episódios escolhidos e na vertigem do próprio empreendimento, que cobre seis gerações de netos a discorrer sobre pais e avôs. O relato se interrompe, porém, em 54, pois o livro “cresceu para trás”, na expressão do romancista. Um de seus atrativos é recuperar a figura do pai, chave psicológica da compreensão do filho.

Fragmentos de uma autobiografia, que ele deixou inconclusa, foram publicados em série na revista Manchete e depois, com trechos inéditos, no livro Rosas e Pedras de Meu Caminho (2001), editado por Túlio Vieira da Costa, espécie de curador dos arquivos Carlos Lacerda, confiados à Universidade de Brasília. Apesar de conter algumas das melhores passagens de sua prosa, o conjunto é redundante com o Depoimento.

Lacerda foi autor de cerca de vinte livros, na maioria coletâneas de artigos, discursos e crônicas. Em 37, sua primeira peça teatral, O Rio (é o Paraíba do Sul), foi encenada sob o pseudônimo de Júlio Tavares. Escreveria em 45 outras duas, montadas naquele ano, uma delas por encomenda do crítico Décio de Almeida Prado para o grupo de teatro amador que formara em São Paulo. São obras inexpressivas ou pouco afeitas ao palco; Graciliano Ramos escreveu que O Rio era uma “peça sem enredo”.

Sua incursão teatral mais notável foi a tradução de Júlio César, de Shakespeare, que esse insone teria vertido nas noites em claro quando governador. É uma das três tragédias do poeta baseadas em Plutarco (as outras são Coriolano e Antônio e Cleópatra). A versão de Lacerda, publicada em 66, não é má. Seu apego à peça decorre do paralelo entre a própria posição e a de Brutus, dito o mais virtuoso dos romanos, que aceita, em nome da salvação da república, liderar a conjura para assassinar César-Getúlio.

Se Lacerda é um democrata obrigado a se tornar golpista, Brutus é um homem justo obrigado a sujar as mãos no crime. Como estamos num mundo onde o poder se rege pela oratória, nas duas situações é um discurso arrebatador que inverte a paixão do populacho amotinado: em Roma, a oração fúnebre de Marco Antônio diante do cadáver de César; no Rio, a carta-testamento de Vargas, rascunhada pelo ghost-writer José Soares Maciel Filho, relida mil vezes nas rádios naquele funesto 24 de agosto.

Daí, talvez, o apelo do irmão médico, Maurício como o pai, quando ponderou, em dezembro de 68, na tentativa de demovê-lo da greve de fome na prisão, que ele queria “fazer Shakespeare na terra da Dercy Gonçalves”. Não passa despercebida, entretanto, uma acepção recalcada sob o paralelo edificante que os trópicos desfazem em anedota. Brutus não era apenas o campeão da liberdade, mas também do patriciado, a classe proprietária que se via diminuída pela ascensão de César, enquanto este devia sua popularidade, assim como Getúlio, à gratidão pelos direitos (ou migalhas) que aspergiu sobre o proletariado urbano.

Lacerda publicou dois livros de contos, não muito melhores do que as peças. Mário de Andrade lhe escreveu a certa altura: “Há brilhantismo demais em seu trabalho. Chega de ruibarbosismo.” Carlos Drummond de Andrade parece ter dito algo parecido quando considerou seu “talento literário talvez excessivo na riqueza de sons”. O primeiro dedicou um livro de poemas a Lacerda, o segundo elogiou seu romance A Casa do Meu Avô (na realidade, memórias da infância, considerado o seu melhor livro) e revelou ter votado nele para governador.

Quase não houve intelectual e artista de peso com quem ele não tenha se relacionado. Isso vale não só para os conservadores que o estimavam, como Manuel Bandeira, Gilberto Freyre, Cecília Meireles ou Érico Veríssimo, mas para os progressistas, a maioria, que o amaram, passaram a abominá-lo nel mezzo del cammin e voltaram a tolerá-lo quando rompeu com a ditadura militar. Tocou piano com o compositor Ary Barroso, vereador, seu colega de UDN. Compôs uma seresta com Jorge Amado e Dorival Caymmi, Beijos pela Noite. Foi amigo dos pintores Tarsila do Amaral, Candido Portinari e Di Cavalcanti. Adaptou a literatura infantil de Monteiro Lobato para o rádio.

 

Num sentido muito parecido ao de Lobato, Lacerda era possuído demais pela impaciência, atraído demais pelo ativismo, afoito demais no recurso a efeitos retóricos para se entregar seriamente ao trabalho ficcional. Quase todo escritor conta, porém, com uma província geográfico-sentimental que nutre sua literatura e onde ela acontece. Para esses dois reformadores irrequietos essa paisagem mental foi a mesma, a crassa pasmaceira deixada pela cultura predatória do café nos estertores do regime escravocrata, que consumiu o Vale do Paraíba no incêndio literal das queimadas, atrás das quais vinha o “ouro verde” na corrida rumo a terras frescas no oeste.

A família de Lacerda estava enraizada em Vassouras, na parte fluminense do Vale, um dos principais bastiões do escravagismo. A região alcançou o apogeu em meados do século XIX, foi servida por linha férrea já nos anos 1860 e entrou em repentina decadência, conforme o café fugia, no crepúsculo do Império. Avô e pai foram prefeitos da cidade. Herdaram do bisavô – imigrante açoriano que prosperou como dono de padaria – uma chácara de mangueiras cortada pelo rio e pela ferrovia. Era ali a “casa do meu avô”. Ainda que a trajetória da família não tenha sido exatamente essa, o próprio declínio local faz pensar numa paródia do ditado popular que rezasse “avô próspero, pai remediado, neto revolucionário”.

Mesmo o jornalismo, profissão que o celebrizou, era pouco mais que um instrumento a serviço da paixão política. Na passagem dos anos 50 para 60, numa conversa casual, ele perguntou a meu pai se não queria comprar a Tribuna da Imprensa, que vivia em dificuldades. “Você, Carlos, não consegue pôr ordem na Tribuna e quer pôr ordem no Brasil?” Ele respondeu: “É mais fácil pôr ordem no Brasil do que na Tribuna!” E meu pai: “E é esse jornal que você quer me vender?” O diário foi afinal vendido em 61 para os proprietários do Jornal do Brasil, mas logo repassado a um antigo colaborador de Lacerda, Hélio Fernandes, que o manteve um jornal nanico e desabrido, embora com outra orientação editorial.

Lacerda se distinguia de Wainer não apenas por ser um articulista melhor e com mais repertório, enquanto o rival era melhor editor ou ao menos criou um jornal que exerceu influência mais fecunda. Também diferiam no fato de Wainer ter sido financiado com recursos públicos, e Lacerda, favorecido pelo apoio de concorrentes estabelecidos como O Globo e Diários Associados, que lhe franquearam rádio e tevê por temor à expansão da cadeia Última Hora. Mas a diferença crucial talvez seja que Wainer usou a política para atingir seus propósitos jornalísticos, ao passo que Lacerda fez o contrário.

Assim, os dois ofícios em que Lacerda se elevou a patamares talvez nunca superados antes ou depois – o jornalismo panfletário e a oratória – foram consumidos pela política, à qual precisamos retornar. No Depoimento, ele diz que sempre acreditou em contraofensiva e surpresa. Essa estratégia comandava seu estilo de argumentação ao escrever e discursar. Joga-se com santa ira contra a jugular do adversário, acusa-o de roubo e incompetência, aponta suspeitas como provas cabais, vitupera, ameaça, ridiculariza, achincalha, apela aos militares e ao povo – aos militares em nome do povo.

Sua presença de espírito era fulminante, e seus insultos, impiedosos. Yedo Fiúza, o candidato comunista em 45, era o “rato Fiúza”. O caudilho Batista Luzardo era o “centauro dos pampas, metade cavalo, a outra também”. Castelo Branco, pouco favorecido no aspecto físico, era “mais feio por dentro que por fora”. Ao saber que Roberto de Abreu Sodré, correligionário e amigo com quem rompera, escreveria memórias: “Parabéns ao Mobral” (programa de alfabetização de adultos do regime militar).

 

Restaram dele poucos registros em vídeo, mas diversos em áudio, preservados por outro colaborador, Luiz Ernesto Kawall. É pena que tanto material tenha-se perdido, não apenas no sentido físico. Pois Lacerda era mestre numa arte que não pode mais ser apreciada na medida em que também desapareceu – a oratória pública, substituída pela padronização publicitária e pelos improvisos disparatados. Mas não se imagine que ele fosse um orador à antiga, com tremulações de voz e sentenças abstrusas. Ao contrário, contribuiu como poucos para introduzir a linguagem coloquial no jornalismo e na política.

E foi talvez o primeiro a adotar, no Brasil, em vez da peroração apoplética, o tom de conversa amena que se recomenda no rádio e mais ainda no veículo que se instalava na década de 50, a televisão. Embora somente 5% dos domicílios no país contassem, em 1960, com televisor (e não mais de um terço tivesse rádio), os poderes encantatórios do meio, que propiciava um laço aparentemente tão íntimo com o falante, eram evidentes. Segundo seu biógrafo, ele aprendeu com o popular programa de Fulton Sheen, arcebispo católico americano que recorria a um quadro-negro em cena (como Lacerda passou a fazer) para que os telespectadores fixassem melhor suas sorridentes mensagens anticomunistas.

A voz de Lacerda era grave, robusta e um pouco anasalada, mas percorria uma escala ampla de tons, chegando às vezes a um timbre algo andrógino pela blandícia. Sua entonação, no entanto, em geral era áspera, como quando, em certos momentos, ele parecia cuspir as palavras com desprezo ou asco, quase omitindo a sílaba final, conforme o costume carioca. Outras vezes, para obter um efeito comovente qualquer, sua voz se alongava e perdia volume até concluir a frase como a onda que alisa a praia. Teve aulas com a atriz Ester Leão, que se recusou, por motivo ideológico, a treinar a voz de Brizola.

Não tinha, aliás, o “s” português (como em festa, “feichta”) nem o “r” francês (como em porta, “pohta”) de seus conterrâneos, talvez por exigência dos primórdios do rádio, quando os fonemas deviam se distinguir nitidamente em meio à estática das transmissões precárias – talvez porque esse sotaque não fosse tão acentuado nas gerações mais antigas ou em sua família. A consagração do hábito fazia os cariocas pronunciarem seu nome, conforme ressaltou o poeta paulista Régis Bonvicino, como se fosse uma palavra só (“Cahlacehda”), pequena glória desfrutada por raras figuras públicas.

Seu melhor retrato pessoal foi traçado em menos de dez páginas pelo memorialista católico Antonio Carlos Villaça no capítulo “Júlio Tavares” de seu O Livro de Antonio (74). Villaça era um literato que viveu para descrever o que via. Seu olhar ávido e inquieto focaliza Lacerda com um interesse minucioso, quase erótico. Este era tomado por uma “sofreguidão alucinante”. Sabia “perfeitamente” inglês e francês. Tinha um “ar de rapaz, um tanto brejeiro, boêmio, leve, livre, sensual”. Gostava de cinema e viagens. Era um místico que se interessava por espiritismo, astrologia e tinha “tendência profunda à superstição”. Não sabia nadar, batia furiosamente à máquina com dois dedos, cozinhava um peixe “temperadíssimo” e gostava “muito de queijos”.

Não lhe escapa tampouco a ciclotimia de Lacerda, dado a trabalhar sem trégua durante dias e noites, para daí desabar, prostrado. Numa crônica sobre Winston Churchill, que chamava a própria depressão de “cão negro”, Lacerda admitiu ser vulnerável a suas investidas. Um de seus melhores contos (parodiado no livro do neto) explora essa metáfora e se chama “Aparição do Cão Negro”. Seu estado de espírito há de ter piorado no ostracismo, quando se esfalfava para preencher o ócio e suprir a vocação desperdiçada. A epígrafe de seu livro Crítica e Autocrítica são dois versos do escritor português Miguel Torga que costumava citar a próprio respeito: “Podia ser melhor o meu destino/Ter o sol mais aberto em cada mão.”

 

Revisadas a sua vida e a sombra que ela projetou nos livros, o que resta ou ressalta? Sua ambição, certamente. Como tantos estadistas, era escravizado pela necessidade narcísica de liderar a multidão a fim de realizar obras que lhe valessem a estima pública. Essa ambição talvez fosse, nele, apenas o mais poderoso aspecto volitivo de uma personalidade inteiramente consumida pela “sofreguidão” que Villaça identificou. “Sou dos que querem tudo”, Lacerda escreveu.

Escrevia, falava, trabalhava, lia, viajava, comia e comprava com voracidade (um parente refere a quantidade prodigiosa de presentes que ele trazia para familiares e amigos quando voltava de viagem). Essa índole se ambientava bem, por sua vez, numa geração impaciente como a sua – grosso modo, a dos “tenentes” e dos modernistas –, para a qual o Brasil já perdera tempo demais no Império e na República Velha, disposta a abrir seus próprios atalhos para apressar o advento de um futuro sempre adiado.

“Depois que se provou o poder, só o poder interessa”, disse certa vez. Os longos anos na oposição purificaram sua têmpera, fazendo dele o emissário de um ideal. Após experimentar o fruto tanto tempo proibido – depois de ser governador e ver sua viável candidatura a presidente esfarelar no maquinismo da ditadura de 64 –, sua ambição decai em oportunismo e se extravia no desespero.

Ele continua o voluntarista incorrigível e o adversário (e aliado) perigoso de sempre. Mas antes sua vontade de poder vinha embalada em princípios, bons ou maus, e sua escalada tinha uma galhardia romântica a que os anos de ostracismo deram um ar surrado, canastrão. É quando, por exemplo, ele se aproxima do ministro do Exército do presidente Ernesto Geisel (1974–79), um obtuso “linha-dura” candidato a suceder ou depor o chefe para reverter a abertura política, e se envolve com o general António de Spínola, ex-presidente português exilado no Rio, num plano amalucado para invadir Portugal (então em pleno desvario revolucionário) com apoio da ditadura brasileira.

Legou à linguagem corrente o termo “lacerdismo”, que resume um moralismo seletivo, praticado contra os adversários do momento, sobretudo na forma de campanhas jornalísticas devastadoras, baseadas em indícios frágeis e conclusões precipitadas. Não há como eximi-lo desse pecado, exceto recordando que quase todos o cometiam, embora com menos paixão e talento, além de outros pecados piores, dos quais Lacerda nunca foi acusado, como venalidade e até extorsão. Há quem considere o jornalismo dos nossos dias engajado, parcial, faccioso, mas a imprensa do século passado não somente incidia nesses atributos, como costumava ostentá-los com desenvoltura. As apurações eram mais levianas, as reportagens eram opinativas, os jornais tomavam partido acintosamente e admitiam pouca ou nenhuma divergência em suas páginas.

Jamais alguém levantou contra ele, a sério, alguma denúncia de corrupção. Nunca dependeu do governo, que atacava de maneira quase sistemática, mesmo quando correligionários seus o ocupavam. Foi provavelmente o primeiro político brasileiro a proclamar a educação pública como prioridade máxima. Foi um dos raríssimos a ter, mais que veleidade literária, um autêntico apetite intelectual. Seu nome se inscreveria, ainda que não sem controvérsia (como tudo nele), no panteão dos brasileiros que, sendo os mais capacitados de sua época, nunca chegaram a presidente: Rui Barbosa, Osvaldo Aranha, San Tiago Dantas.

A restauração do capitalismo na Rússia e na China e o ressurgimento da democracia liberal como fórmula adotada por toda parte reatualizaram a pregação de Carlos Lacerda, embora não exatamente seus métodos. O que melhor sobrevive dele foi haver encarnado, em tantos episódios de sua vida transbordante, um inconformismo essencial e uma altivez de espírito que percorrem também a crônica de seu avô e de seu pai, como a transmissão de um impulso intermitente, às vezes errôneo, às vezes inspirador, a empurrar as gerações e os países.