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    "Comprei Ulisses quando meus filhos saíram de casa porque precisava amar outra vez uma criatura viva", dizia a escritora FOTO: MANCHETE_FOTÓGRAFO NÃO IDENTIFICADO_ACERVO CLARICE LISPECTOR_INSTITUTO MOREIRA SALLES

chegada

O último amigo

Uma homenagem em bronze ao vira-lata de Clarice Lispector

Armando Antenore | Edição 118, Julho 2016

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Pra que tanto céu? Pra que tanto mar? Pra quê? Sob o olhar de Ulisses, toda paisagem – por mais deslumbrante que seja – parece inútil. Ele está deitado de bruços em frente à Pedra do Leme, na Zona Sul carioca. Tem diante de si o Atlântico, ora azul, ora esverdeado, a praia branquíssima que se alonga por uns 4 quilômetros, o Forte de Copacabana avançando sobre o oceano, a imponência do morro Dois Irmãos e, ainda mais longe, outra pedra magnífica, a da Gávea. Um cartão-postal que, no entanto, em nada seduz o inerte e silencioso Ulisses. Nitidamente, só lhe importa a mulher de meia-idade, cabelos curtos e pernas cruzadas, que segura um livro perto dele. Sentada num pequeno muro, usa trajes discretos – o vestido lhe deixa os joelhos à mostra e o par de scarpins se equilibra em saltos muito baixos. Ulisses a observa com um híbrido de fascínio, devoção e ingenuidade. A elegante senhora, porém, prefere olhar para o lado, meio distraída.

A dupla chegou àquele canto tranquilo do Rio de Janeiro há pouco tempo, no dia 14 de maio, e dali não cogita sair. Por força de um destino generoso, nem a mulher, nem o parceiro são de carne e osso. Coube-lhes o privilégio de um material bem mais durável. São, ambos, estátuas de bronze – ou monumentos, como a prefeitura os classifica, à semelhança de outros 1 250 que se espalham pela capital fluminense. A mulher exibe as feições de Clarice Lispector, a escritora de origem ucraniana, morta em dezembro de 1977, na véspera de completar 57 anos. O companheiro extasiado representa o vira-lata Ulisses, o último dos cachorros que a romancista criou.

Não é incomum que o Rio transforme literatos em esculturas públicas. Carlos Drummond de Andrade, Otto Lara Resende, Manuel Bandeira, Joaquim Nabuco, Machado de Assis, Lima Barreto e padre Antônio Vieira já receberam tal distinção. Bichos, entretanto, dificilmente ascendem à perenidade do metal ou da pedra. Existem pela cidade, claro, monumentos que ostentam cavalos, a exemplo do que reverencia dom João VI na Praça XV. Mas, em casos assim, os equinos não passam de coadjuvantes, sem nome ou história.

Conforme os registros municipais, antes de Ulisses, apenas um animal mereceu a glória de protagonizar uma estátua. Foi o cão Brutus, que se tornou mascote do Corpo Policial da Corte, durante o Império, depois de resgatar soldados feridos na Guerra do Paraguai. Há 62 anos, o cachorro e o coronel Joaquim Antônio Fernandes D’Assunção, que também retornou com honras da peleja contra os paraguaios, renasceram em bronze. Juntos, permaneceram mais de cinco décadas numa praça da Gamboa. Em 2007, contudo, retiraram o herói canino de lá e condenaram o militar à solidão. Hoje já não se sabe quem os afastou e por quê. Tampouco o paradeiro de Brutus é conhecido.

 

Clarice Lispector contava que comprara Ulisses para exercitar de novo o amor cotidiano. À época, dividia um apartamento no bairro do Leme com a assistente Siléa Marchi. O imóvel de três quartos abrigou a escritora de 1966 até sua morte. Separada do diplomata Maury Gurgel Valente, Clarice sentia falta de Pedro e Paulo, os filhos do casal. Adultos, os dois não moravam mais com a mãe. “Eu precisava amar outra vez uma criatura viva, que me fizesse companhia”, explicou a autora numa entrevista.

Tudo indica que Ulisses atendeu perfeitamente às expectativas da dona. Era um cachorro inteligente e afetuoso, mas também “um pouco neurótico”, nas palavras da própria romancista. Por neurótico, entenda-se bagunceiro – provavelmente em razão da imensa liberdade que Clarice lhe dava – e adepto de hábitos nada frugais. Bebia Coca-Cola e uísque, além de apreciar cigarros. Bastava ver uma bituca no cinzeiro que, vapt!, engolia. Em 1974, os integrantes de O Pasquim entrevistaram a escritora na presença de Ulisses, que não apenas se engraçou com o cartunista Jaguar como degustou um bocado de nicotina. O tabloide, mordaz, aproveitou a deixa magistralmente. Publicou um pequeno texto de catorze linhas em que denunciava o tabagismo do vira-lata e o qualificava de “muito louco”.

Pela manhã, Clarice lhe servia café com leite num pires. À tardinha, gostava de levá-lo até a praça Almirante Júlio de Noronha, bem próxima do lugar em que instalaram as esculturas da dupla. Ali, sob as amendoeiras, costumava se ensimesmar, embora atenta “às conversas de mães e babás, às crianças brincando e à felicidade de Ulisses”, como descreveu na década de 80 a secretária e grande amiga da autora, Olga Borelli.

Quando viveu fora do Brasil, acompanhando o então marido em missões diplomáticas, a romancista teve dois cães. Adquiriu Dilermando na cidade italiana de Nápoles e o considerava “a pessoa mais pura” das redondezas. Em Washington, cuidou de Jack, um pet sem nenhum pedigree, mas “tão metido a importante” que cismou de vigiar a rua inteira onde morava. Se qualquer desconhecido apontasse nas imediações, o cachorrão aprontava um alarido tremendo e irritava profundamente a vizinhança.

Ainda que espertos, nenhum logrou alcançar a façanha de Ulisses: latir uma história. Ele é o narrador do livro infantil Quase de Verdade, lançado em 1978, logo após a morte da escritora. O cãozinho se apresenta com extremo desembaraço já nas primeiras páginas da publicação. Afirma que possui olhos dourados e pelagem cor de guaraná, adora cócegas, urina onde não deve e dispõe de poderes mágicos – adivinha tudo pelo cheiro. Diz, igualmente, que Clarice compreendia o idioma dos bichos. Por isso, o escutou atenta e conseguiu transcrever aquela trama “bem latida”. O enredo, um tanto político, gira em torno de uma figueira que resolve explorar as galinhas de um quintal, fazendo-as botar ovos sem cessar.

No inacabado livro Um Sopro de Vida (Pulsações), pela boca de uma personagem, a romancista admite que, de fato, dominava a língua do cachorro. E jura que sabia, inclusive, se expressar em ulissês. “É assim: dacoleba, tutiban, ziticoba, letuban. Joju leba, leba jan? Tutiban leba, lebajan. Atotoquina, zefiram. Jetobabe? Jetoban.” Não revela, porém, o sentido das enigmáticas frases, que “nem o imperador da China entenderia”.

 

Pornósio, Pitulcha, Vicissitude. Às vezes, Clarice arranjava estranhos apelidos para o vira-lata, mas rapidamente os abandonava. O biógrafo dela, Benjamin Moser, nota que o cão tinha o mesmo nome de Ulysses Girsoler, o psicoterapeuta que atendia a autora na Suíça, outro país onde Clarissa, Claríssima (o moço a chamava dessa maneira) morou. Ele se apaixonou tão intensamente pela analisanda que precisou mudar de cidade para esquecê-la. A escritora, ainda segundo Moser, também se impressionou pelo rapaz e nunca o tirou da cabeça. Não à toa, Ulisses é o filósofo que se relaciona com a angustiada professora Lóri em Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, romance de 1969.

Estudiosos e admiradores de Clarice lançaram a ideia de homenageá-la no Leme. Foi, entretanto, o escultor e músico Edgar Duvivier quem sugeriu acrescentar o cachorro ao monumento, que custou 80 mil reais, pagos pelos fãs da autora (a prefeitura somente avalizou o projeto). Na hora de esculpi-lo, o artista usou como modelo sua própria vira-lata, a bonachona Alva. “Cães não deixam de ser alter egos dos donos, né? Sem contar que os veneram em quaisquer circunstâncias. Para um cachorro, estar com o dono significa estar com Deus”, respondeu Duvivier quando lhe indaguei o motivo de querer retratar o animal. A romancista, cuja literatura sempre se debruçou sobre os bichos, talvez pensasse o contrário: que o divino se encontra menos nos homens e mais nos cães, seres engenhosamente simples, capazes de evitar “o naufrágio da introspecção”. “Quanta inveja tenho de você, Ulisses”, reconheceu Clarice certa ocasião, “porque você só fica sendo.”