É manhã no Café Jaibaras, no centro de Sobral: as fotos dos irmãos Ciro, Cid e Ivo ("Nominhos pequenos para não ter apelido", segundo a mãe) estão por toda a cidade. Eles têm o voto certo da população FOTO: CHICO GADELHA_2007
Oligarquia irritada
Enquanto espera que o chefe, Ciro, seja o próximo presidente, o clã dos Gomes, de Sobral, ocupa postos no Ceará e em Brasília
Daniela Pinheiro | Edição 6, Março 2007
Pergunte aos Gomes se eles se consideram uma oligarquia e a reação, bem no estilo deles, será de irritação. “Isso é reducionismo, é uma burrice”, diz o chefe do clã, Ciro Gomes, o deputado federal mais votado do Brasil, proporcionalmente. “Não estamos no poder porque um impõe o outro, e sim porque temos vocação política e consciência pública”, afirma o seu irmão Cid Gomes, governador do Ceará. “É como um karma”, fala o irmão caçula Ivo, deputado estadual e chefe de gabinete de Cid. “É bobagem nos definir assim”, garante a senadora Patrícia Saboya, ex-mulher de Ciro, que abandonou há pouco o sobrenome Gomes. “Nossa família tem cem anos de vida pública, colhemos o espaço natural de quem trabalhou direito a vida toda”, finaliza o primo Tim Gomes, presidente da Câmara de Vereadores de Fortaleza.
Como oligarquia é o regime político em que o poder é exercido por um pequeno grupo de pessoas, pertencentes à mesma classe ou família, os Gomes não têm por que se irritar. Poderiam até se alegrar, já que, ao contrário de outras oligarquias nordestinas, como os Sarney, os Magalhães, os Alves e os Maia, que foram humilhados nas urnas na última eleição, eles estão por cima da carne-seca. Desbancaram o grupo capitaneado pelo senador tucano Tasso Jereissati, têm cinco da família em cargos eletivos e são os chefes políticos incontestes do Ceará.
Tendo como vitrine a cidade sertaneja de Sobral, a oligarquia dos Gomes acalenta um sonho: botar Ciro na Presidência da República. “Vamos trabalhar muito para isso”, diz a senadora Patrícia. “Não há ninguém com tanto potencial e honestidade como ele”, emenda o deputado Ivo. “Conversamos muito e Ciro está certo de que agora é o momento dele”, revela Tim. O desejo dos oligarcas é que o presidente Lula o lance como sucessor.
Ciro Gomes foi deputado estadual, prefeito de Fortaleza e governador do Ceará antes de ser chamado pelo presidente Itamar Franco para ser ministro da Fazenda, substituindo às pressas Rubens Ricupero, cuja frase imortal (“Eu não tenho escrúpulos”) foi captada por antenas parabólicas. Depois foi ministro da obscura pasta da Integração Nacional no primeiro governo Lula. Ele não é um político que se destaque pela coerência. Ou que esteja preocupado em construir um partido. Tanto que já passou por seis diferentes, tendo sido peemedebista, tucano, comunista e filopetista. Candidatou-se à Presidência por duas vezes, em 1998 e 2002, e é difícil lembrar alguma idéia sua, original ou não. É mais fácil lembrar que chamou um ouvinte, no rádio, de “burro”. Ou da vez que xingou um fotógrafo de “babaca”. Ou, ainda, quando disse que a função da sua namorada, a atriz Patrícia Pillar, na campanha, era “dormir com o candidato”.
“Olhando para trás, até agradeço não ter ganho aquelas eleições, eu não estava pronto”, avalia Ciro Gomes, 49 anos, com as entradas no cabelo se tornando calva indisfarçável. E agora está? “Amadureci”, disse, numa recente manhã de domingo, de leve ressaca, com um sorriso congelado nos lábios. Ele havia varado a madrugada no casamento do filho do ministro César Asfor, do Superior Tribunal de Justiça, uma festança que eletrizou a alta sociedade de Fortaleza.
Ele se levantou pouco antes do meio-dia e me recebeu descalço, com uma blusa azul, de mangas curtas, que deixava ver a tatuagem de dragão na parte interna do braço direito. Os pés de Ciro parecem desproporcionais à sua altura: são pequenos, muito brancos, têm os dedos curtos e delicados. O dragão, em tons de preto e laranja, está sempre escondido sob as mangas compridas. “Não é a jornalista que está vendo essa tatuagem, tá?”, diz. Ele sai da sala para fazer café na cozinha. Não toca nos pedaços de bolo, comprados numa padaria, em cima da mesa. De volta à sala, se deitou no chão e se apoiou no antebraço para se expressar melhor.
“Mudei, cresci”, informa, tirando longas baforadas. “A gente aprende assim mesmo, na marra. Achava que tinha que impor minha opinião, mas era algo que, no fundo, denotava agressividade e insegurança. Minha fase de vida é outra, estou muito legal, na boa. Se eu quiser parar, agora posso porque tenho um sucessor. Cid é melhor do que eu. É o novo líder do Ceará.” Fumou cinco cigarros Charm em duas horas. Sobre a eleição em 2010, é lacônico: “não estou preocupado com isso agora”.
Ciro Gomes conta que a sua relação com Lula, que se estreitou durante a crise do mensalão, é bem maior do que se imagina. “Durante meses, amanheci todos os dias às 7 da manhã no Planalto”, conta. “Eu, a Dilma Rousseff e o Marcio Thomaz Bastos. A gente passava a manhã inteira debatendo a crise, procurando saídas para o problema. Depois, despachávamos com Lula”, diz. Ele revela ter sido o autor de algumas das perguntas feitas por Lula ao candidato tucano, Geraldo Alckmin, nos debates na televisão durante a campanha.
Quando a conversa se fixa nas ações do governo, Ciro tem uma ligeira regressão à zanga característica dos Gomes. “Só intelectualóide aburguesado é que critica o bolsa-família”, ataca. “Falar que é esmola é de uma ignorância que irrita. Eu já vi gente faminta invadindo supermercado. Quem já viu isso não tem coragem de falar uma bobagem dessas.”
O apartamento de 250 metros quadrados fica de frente para a praia de Iracema e tem a decoração esquálida da casa de um jovem de 20 anos: um sofá de dois lugares que um dia foi creme, uma poltrona vinho desbotada (“A Patrícia ia jogar fora os móveis e pedi para ficar com eles”, conta), um bar bem abastecido (“A única garrafa aberta é a de uísque, o resto é tudo presente”), home theatre e um narguilé. Nenhum quadro na parede, nenhum enfeite, nenhuma planta. “Estava ainda pior”, reconhece. “A Patrícia esteve comigo aqui dois meses, arrumou bastante coisa, mas é casa de homem sozinho mesmo.”
Ciro Gomes se senta. Abraça os dois joelhos. Sua voz continua mansa. Até começar a falar sobre o governador de São Paulo, José Serra. Três dias antes, pela segunda vez, tivera sua conta bancária bloqueada por conta de um processo aberto por Serra. “É algo totalmente ilegal, fico sem poder tirar dinheiro no caixa eletrônico, é absurdo”, irrita-se. Foi processado porque, na campanha presidencial de 2002, atribuiu a Serra a batida policial que encontrou dólares vivos num comitê de Roseana Sarney.
Ele se levanta para pegar a terceira xícara de café. Fala do passado. Remói a suspeita de que foi o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso quem tornou público o seu namoro, até então secreto, com a atriz Patrícia Pillar. “Tenho certeza de que foi ele, só contei para ele”, diz. “Contei porque ele me sondava para um cargo e eu estava naquele momento de vida complicado. No outro dia, a história já estava no jornal.” Em 2002, durante a campanha de Patrícia Saboya à prefeitura de Fortaleza, surgiram boatos de que a proximidade com a ex criara ciúmes em Patrícia Pillar. Pergunto sobre o assunto. Ciro Gomes fica mudo, à espera da mudança de assunto. Ele está mesmo mais controlado.
“Trato todo mundo bem, acho legal, mas não vou sair para jantar eu, o Ciro e a Pillar, óbvio”, diz a senadora Patrícia Saboya, de 44 anos, que foi casada por catorze e tem três filhos com Ciro Gomes. Em seu gabinete em Brasília, ela puxa uma cadeira, ajeita a saia preta, pega um cinzeiro. Quando ri, os olhos se espremem até formar só um risco. Ela usa perfume caro e bom. Antes de expor um raciocínio sobre separação conjugal e política, ela pede café. “Eu era vista como uma coitadinha traída”, diz. Ela atribui à fossa da separação a derrota que sofreu nas urnas. “Estava muito fragilizada, e as pessoas percebem isso. Para piorar, o Ciro ficava do meu lado no palanque.” Ciro Gomes a chama de senadora.
Mesmo negando a existência da oligarquia dos Gomes, Patrícia Saboya diz que é o seu ex-marido “quem passa proteção para o grupo”. Às vezes, ela reconhece, a proteção é excessiva: “Ele ainda intimida a mim e aos irmãos. Eu falo melhor, discurso melhor se ele não está por perto”. À época da separação, a mãe de Ciro Gomes se solidarizou com a ex-nora. “Eu não aceitava essa história”, conta dona Maria José, que tem o apelido de Mazé. “A Pillar me chamava para ficar na casa dela, e eu não ia.” Os filhos do casal moram sozinhos, em São Paulo, e a senadora adotou por conta própria uma menina. Até há pouco tempo, ela namorava Sergio Alberto Monteiro de Carvalho, irmão de sua amiga Lilibeth, primeira mulher de Fernando Collor.
Na família Gomes, na regra, as mulheres se dedicam às prendas domésticas. Aos 77 anos, Mazé mora sozinha e toma aulas de canto lírico. Apesar de participar da campanha dos filhos, sua opinião é pouco solicitada. “São eles que decidem as coisas, eles que sabem”, diz a matriarca. Todos os filhos têm os olhos e o sorriso da mãe. “Eu não queria me casar, gostava muito de festa”, lembra ela. Sucumbiu aos 28 anos. Era professora primária, no interior de São Paulo, onde conheceu o marido, que insistiu em voltar para sua terra natal. Afastada da família, ela viajava para Pindamonhangaba, onde morava sua mãe, para dar à luz. Ela ainda fala os “rr” como se morasse no interior de São Paulo.
Ciro e o segundo irmão, Lúcio, 48 anos, ex-chefe de gabinete e tesoureiro de campanha do mais velho, nasceram lá. Cid está casado pela segunda vez. Sua mulher, que espera um bebê para junho, é vista apenas em solenidades. Ivo se casou, aos 33 anos, com uma ex-rodomoça. Tem dois filhos. Ele não se lembra como se conheceram. “Ela gosta de ficar em casa”, diz.
Em 10 de novembro de 1919, o berço político dos Gomes foi destaque no New York Times: “A teoria de Einstein triunfa!”, comemorou o jornal americano. Uma expedição de cientistas ingleses e americanos foi a Sobral para comprovar, por meio da observação de um eclipse, um efeito previsto na Teoria da Relatividade: o desvio da luz ao passar por um intenso campo de gravitação, como o do sol. Só havia dois lugares do mundo para se observar o fenômeno: Sobral e o arquipélago de São Tomé e Príncipe, na África, onde choveu. Em Sobral, o tempo foi perfeito.
A 230 quilômetros de Fortaleza, temperatura média de 34 graus à sombra, Sobral teve relevância regional no final do século XIX. Por décadas, foi governada por padres que fundaram jornais, a universidade, construíram museus e controlavam a leitura da população. Situada nas imediações do porto de Camocim, o único que havia no Ceará, a cidade era um entreposto comercial. Tudo e todos que rumavam à capital passavam antes por ali. Comerciantes locais trocavam charque e couro por jogos completos de porcelana da Companhia das Índias, trazidos pelos europeus. Usavam-se luvas na rua. Havia segregação explícita: morenos e negros andavam de um lado da calçada. Os brancos, do outro. Foi daí que nasceu o mito de que quem nasce em Sobral é “besta” – que no vocabulário local quer dizer “metido”.
Há duas Sobral. Numa, a “besta”, há uma réplica do Arco do Triunfo, um jóquei clube, ônibus escolares amarelos, onde se lê “School bus”, doados pelo governo americano, escola de línguas pública, um museu de arte moderna, um de arte sacra, um casario tombado pelo Patrimônio Histórico e locais onde é possível acessar a internet sem-fio. Um dos restaurantes mais chiques, o Pinos, fica no prédio de um supermercado no estacionamento de um posto de gasolina. Na outra Sobral, campeiam as favelas, a miséria, a sujeira. Nela, as promessas eleitorais dos Gomes não saíram do papel. Na sociedade, há três Sobral: a casta decadente, habituada a um glamour do passado; a emergente, formada por profissionais liberais atraídos pelos dois motores econômicos da cidade: a fábrica de cimento Poty e a Grendene, que juntas empregam mais de 16 mil funcionários; e os pobres.
As famílias ricas eram os Saboya, os Sanford, os Deodatos, os Mont’Alverne. Só recentemente os Gomes passaram a integrar a elite. Antes, eram pequenos comerciantes ou funcionários públicos, como o patriarca, o defensor público José Euclides Ferreira Gomes Júnior. Gordo, suado boa parte do tempo, sem alguns dentes molares, fama de galanteador, ele não se importava com a pecha, disseminada na cidade, de grosseiro e pão-duro. Apesar disso, José Euclides era tido como muito culto e inteligente. Não tinha militância política, apenas uma difusa simpatia pelo regime militar. Foi um espanto, pois, em 1975, quando seu nome foi cogitado para ser prefeito de Sobral.
“Papai entrou por acaso na política, mas ganhou a eleição em que era o azarão”, explica Cid. Até então, a política sobralense se alternava entre duas famílias: os Prado e os Barreto. Zé Prado estava em busca de um sucessor, e José Euclides lhe pareceu adequado por ter fama de austero. Sua inabilidade ficou visível na campanha, quando chamou parte do eleitorado de “bagaceiros”. Eleito por uma diferença mínima de votos, teve uma gestão morna: de relevante, construiu uma estrada para a serra, a sede da prefeitura, abriu uma avenida e fez um mercado municipal, desativado pelo sucessor. Ele morreu em 1997.
José Euclides não costumava beijar nem abraçar os filhos. Acreditava que criá-los com distância, e mão firme, os tornaria independentes. Ciro era seu preferido. “Ele apoiava tudo o que Ciro fazia, e com os outros filhos não era bem assim”, lembra Mazé. A família vivia modestamente. “Não era gastança, mas a gente viajava de avião numa época que isso era raro, sempre tivemos comida na mesa, e os filhos não tinham que herdar as roupas dos irmãos”, conta. Na adolescência, Ciro era conhecido como “Pescoção”, Cid era “Tatá”, Lúcio “O Pose” (porque era tido como arrogante) e Ivo é “Ivinho” até hoje.
Ivo Gomes é considerado o mais irritadiço e culto da família. Na adolescência, fez intercâmbio nos Estados Unidos. Foi o primeiro dos Gomes a falar inglês. Depois de ter se formado em Direito, prestou concurso para a Procuradoria Geral de Fortaleza e continuou morando na casa dos pais. Pouco ficou no cargo. Desde cedo, assumiu postos nas campanhas e nos governos dos irmãos.
Com a indicação de Mangabeira Unger, guru de Ciro, Ivo foi aceito para o mestrado em Harvard. A foto da formatura está na parede de seu gabinete. Harvard se tornou quase um sobrenome. “Ivo tem mestrado em Harvard”, repetem parentes, amigos, conhecidos e áulicos ao se referir ao caçula. “Menos títulos e mais grana talvez fosse melhor”, diz ele, gargalhando.
Era quase noite, quando Ivo abriu a porta de seu gabinete. Calça jeans, mocassim marrom e camisa ocre, ele aparenta mais do que seus 38 anos. Como os irmãos, Ivo adora citar números e estatísticas. Costuma elevar o tom de voz quando é interrompido por uma pergunta. “Meu pai tinha mesmo adoração pelo Ciro”, diz. “Fui criado no clima de ‘respeite seu irmão mais velho’, mas não tenho problemas com isso, sou resolvido.” Ele pede licença para comer. “Ainda não almocei”, explica. Toma água com biscoitos de polvilho.
Na volta dos Estados Unidos, Ivo resolveu se candidatar a deputado estadual. Está em seu segundo mandato. Ciro Gomes diz que chegou a brigar com o irmão para que não o fizesse: “O cara saiu de Harvard com proposta de 15 mil dólares de emprego e quis ser político no Ceará. Eu falei para ele não vir. Ficamos quatro anos brigados por isso”. Ivo se levanta, para buscar um livro com a radiografia da Educação no Ceará. “Passei quatro anos fazendo isso como deputado, pode levar”, oferece. Agradeço e digo que vou ler. “Não seja cínica”, me diz.
Os Gomes nunca tiveram bandeira política. “Afinamos de ouvido porque compartilhamos as mesmas idéias”, diz Cid. Governam cercados de amigos, mesmo que seja preciso mudar leis, ou passar por cima de algumas, para nomear correligionários. Cid Gomes nomeou Ivo para chefe de gabinete, o que lhe valeu acusações de nepotismo. No mês passado, alterou um decreto regional para acomodar um aliado.
Contam com uma tropa de choque regional e amigos fiéis como o ex-deputado Oman Carneiro, assessor parlamentar de Ciro, ou Leônidas Cristino, atual prefeito de Sobral, e o empresário Arialdo Pinho, chefe da Casa Civil. Foi ele quem empregou Ciro como diretor estratégico do Beach Park, então de sua propriedade, com um polpudo salário e um Audi A6, depois da sua primeira campanha para presidente. Há anos os Gomes vivem da política. Construíram o grosso do patrimônio graças ao eleitorado.
Cid Gomes, de 43 anos, é tido como o mais habilidoso. Além de conseguir compor seu governo agregando até adversários, ele promoveu várias melhorias na Sobral “besta”. Em dois mandatos como prefeito, ele tirou jumentos das ruas e botou esgoto, calçadas, asfalto, biblioteca, pontes e museu. Também incentivou a produção de um vinho tinto sobralense (de qualidade duvidosa). O outro lado do rio Acaraú ainda lembra uma favela abandonada.
Com 1,84 metro de altura, 80 quilos, Cid Gomes tem o cabelo tão escuro que parece pintado. Num fim de manhã, ele usava camisa Lacoste azul com as mangas arregaçadas, calça azul escura e sapatos bem lustrados. Cid responde às perguntas de maneira monossilábica. “Sou tímido”, informa. Desde que assumiu o governo, passa pelo menos catorze horas enfurnado em seu gabinete. Quando quer relaxar, brinca no computador com um joguinho chamado Luxor. É no gabinete que almoça, uma porção de camarão com molho branco e arroz com passas.
Ele conta que teve uma curta experiência na iniciativa privada: “Montei na faculdade uma revendedora de medicamentos com colegas, comprei uma Parati e logo descobri que meu negócio é política”, diz. Aos 19 anos, já trabalhava com Ciro. “Foi quando ganhei meu primeiro salário, que mal dava para pagar as contas”, lembra.
Cid termina de almoçar e passa para o sofá. Acende o segundo cigarro. Assim como Ivo e Ciro, que passaram temporadas nos Estados Unidos, Cid morou em Washington por seis meses. Mantinha-se com uma bolsa do Banco Interamericano de Desenvolvimento, no valor de 6 mil dólares mensais. Cid diz ter dois apartamentos, um de 200 e outro de 250 metros quadrados, na capital, e onze terrenos em Sobral. Cid faz longas pausas antes de responder. A resposta mais rápida foi por que a maioria das obras de Sobral era tocada pela empreiteira Tecnocom, de propriedade de um amigo dos irmãos Gomes, Irineu Júnior.
As sobralenses se cumprimentam com beijinhos no ar. Nunca na bochecha. Até há alguns anos, os clubes eram fechados e as senhoras se descabelavam para entrar na lista das dez mais bem vestidas. “Hoje tá tudo povão aqui, misturou demais”, lamenta a ex-socialite Lúcia Rocha, dona de uma butique. Ela diz que as famílias da elite só se encontram no Rotary ou no Lions Club, “e nas casas da Serra da Meruoca”. A quinze quilômetros da cidade, com temperaturas até quinze graus mais amenas, Meruoca é uma espécie de Campos do Jordão cearense. Os mais abonados mantêm as casas de campo, algumas com lareira. Há um restaurante especializado em fondue. Os Gomes também têm uma casa na serra. “Herança”, diz Ciro Gomes. É ali que ele se hospeda quando está na cidade com Patrícia Pillar. Além do sítio, ele e os irmãos herdaram do pai três fazendas.
Se houve bons tempos do society local, eles foram animados por Adonias Filho, o factotum da cidade. Decorador, colunista, estilista, cabeleireiro, promoter, ex-professor de patinação, dono de boate, seu investimento mais recente foi abrir um motel (7 reais a hora) de tijolos aparentes na porta ao lado de sua casa. Magro, cabelos tingidos de loiro, óculos escuros de lente azul, brinco na orelha, 63 anos, mesmo os machões da cidade o cumprimentam com beijos. No Carnaval, ele se vestia de She-Ra, a irmã de He-Man, pintava um jumento de tinta branca, para parecer o cavalo branco da personagem do desenho.
Por mais de uma década, Adonias Filho editou o jornal Um luxxo, no qual elegia as dez mais elegantes de Sobral. Quando Ciro Gomes foi eleito prefeito de Fortaleza, ele encabeçou uma manifestação contrária. Trazia uma faixa crítica. Cid Gomes partiu para cima para rasgá-la. Adonias se enrolou no pano. Ele conta: “Eu disse: ‘Se for rasgar, me rasgue também'”. Foram parar na delegacia. “Os Gomes são temidos”, diz. “São como sombra de mangueira: embaixo deles não nasce nada”, afirma.
Antonio Carlos Magalhães, do PFL, acha que os Gomes têm chances de chegar ao Planalto. Poucas chances, porque o senador não acredita que Lula vá apoiar Ciro. A vantagem de Ciro, avalia, está justamente na família. “O irmão, o governador, é mais hábil e moderado do que ele. E o Ciro controla a Patrícia. Não a Pillar, a senadora. Quer dizer: ele controla as duas. O que prejudicou o Ciro nas eleições para presidente foi a língua, aquele jeito de usar frases inconvenientíssimas e respostas violentas para coisas menores.” Foi derrotado pelo estilo Gomes.