minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    É preciso dizer: o discurso político de Marilena Chaui tem representado uma verdadeira catástrofe para a esquerda. Infelizmente, ela se mostra seduzida demais pelo aplauso dos auditórios ILUSTRAÇÃO: ROBERTO NEGREIROS_2016

tribuna livre da luta de classes

Reconstruir a esquerda

Um balanço crítico da experiência histórica e algumas ideias para o futuro

Ruy Fausto | Edição 121, Outubro 2016

A+ A- A

Reconstruir a esquerda? Ainda recentemente, um bom autor francês de esquerda – Jacques Rancière – se referia de maneira levemente irônica ao eterno trabalho dos “reconstrutores”. E, no entanto, é o que cabe fazer. Há uma situação de crise no nosso campo político. Vale dizer, para usar uma metáfora, que a condição atual da esquerda é a de um homem perdido na floresta: é preciso encontrar uma saída. Mas não partimos de um marco zero.

Para começo de conversa, é preciso privilegiar a crítica dos nossos erros e das nossas ilusões. Mais do que por alguma indefinição quanto aos seus objetivos, a esquerda paga um preço muito alto pelas figuras aberrantes que se apresentaram e continuam a se apresentar como encarnações dela. Desde há mais ou menos um século, o campo político que privilegia a defesa de maior justiça social foi acometido de um certo número de doenças que, se não chegaram a matá-lo, tampouco foram plenamente curadas. Apesar de tudo o que já se escreveu sobre essas formas aberrantes, há que voltar a elas de maneira sistemática. Sem esse trabalho, não escaparemos dos impasses atuais, por mais que se possa encontrar uma saída provisória – e sempre instável – para esta ou aquela situação.

A primeira e mais importante forma aberrante que a esquerda assumiu no último século foi a do totalitarismo. Por isso mesmo muitas vezes se afirmou que a esquerda levou um enorme baque, se não o baque definitivo, com o fim do chamado socialismo de caserna – cuja história terminou, pelo menos em termos simbólicos, com a queda do Muro de Berlim em 1989. Ou, de forma mais radical, se disse e afirmou que foi justamente a experiência terrível do totalitarismo – no caso, do totalitarismo de esquerda – a responsável por desferir um golpe mortal no projeto da esquerda. Na realidade, o golpe foi imenso, mas a trajetória da esquerda não termina aí. O colapso do totalitarismo igualitarista é, na realidade, um ponto de partida e dele nasce uma porção de perguntas. Que representou o socialismo de caserna, o socialismo de estilo quase militar, cuja encarnação primeira se deu na União Soviética? Por que razões ele caiu? Em que medida ele representava efetivamente um ideal que se poderia chamar de socialista? E mais: houve outras deformações além daquela que ele implicou? Se houve, que significam e como se explica a emergência delas? Essas múltiplas perguntas põem na ordem do dia a interrogação mais geral: será que não haveria mais futuro para a esquerda depois da queda do Muro, como pretendem os ideólogos mais radicais do sistema dominante?

Estou convencido de que é falsa a tese de que a esquerda foi mortalmente ferida com a queda do Muro. Fico mesmo tentado a afirmar a tese contrária: a de que ela nasce – ou melhor, renasce – justamente com a crise do “comunismo”. Mas é também verdade que, desde essa crise, a esquerda vive uma situação difícil. Há uma ofensiva ideológica e político-prática da direita, no Brasil e no mundo, para a qual a esquerda tem tido dificuldade de encontrar a resposta adequada.

Acresce que o totalitarismo igualitarista não foi a única patologia da esquerda no último século. Houve múltiplos “desvios” em relação ao que se poderia considerar como o encaminhamento original da esquerda. Pode parecer uma banalidade – para alguns, a ideia parecerá, ao contrário, uma heresia –, mas a primeira coisa a fazer é dissociar o projeto da esquerda da maioria dos projetos e políticas que se apresentaram como representativos dela, nos últimos 100 anos, na forma de práticas de Estado ou de partido, ou mesmo enquanto corpo de ideias. Minha hipótese é a de que o ponto de partida de um eventual trabalho de reconstrução tem de ser a consciência de que vivemos no último século, por diferentes razões e sob diferentes formas, em algo assim como um período de alienação radical do projeto de esquerda em relação ao que ela representou na sua origem.

Ouço já a objeção que se fará a essa proposta: para salvar a esquerda, você põe entre parênteses a esquerda realmente existente e se refugia numa outra, que só existe no seu espírito. Entendo o argumento, mas ele falseia a natureza do problema. Aliás, a respeito do argumento, leio um texto em que um articulista – muito embalado com os ares do tempo, como aliás todo direitista-novo – resolve dar uma lição de realismo a uma moça que, embora não acredite em Stálin nem em Fidel Castro, acha entretanto que o socialismo verdadeiro é outra coisa. Aspirando fundo no senso comum conservador do pós-impeachment, o articulista tripudia sobre o irrealismo da moça: ela teria introduzido sub-repticiamente um pretenso socialismo verdadeiro sob a miséria do socialismo real, o único que existiu efetivamente, algo que de resto ela é incapaz de enxergar. E, no entanto, é preciso lembrar: houve a Inquisição, houve o papa Bórgia, a Noite de São Bartolomeu, o reacionarismo de uma fieira de pontífices mais ou menos renomados, a atitude covarde, para dizer o mínimo, do papa Pio XII durante a Segunda Guerra Mundial, houve e há a homofobia, a oposição ao divórcio – enfim, uma longa história de erros e horrores do cristianismo realmente existente – e, no entanto, seria mesmo tão irrealista dizer que apesar de tudo o cristianismo verdadeiro é outra coisa? No caso da esquerda, bem entendido, não se trata de religião, mas, enquanto ilustração e “epígrafe”, a comparação é útil.

 

Não estou propondo, como já indiquei, uma volta a um marco zero. Já me opus explicitamente a essa atitude. O que é preciso erradicar de forma eficaz são representações ilusórias que se propagaram na esquerda. Erradicar práticas também, é claro. Mas não se trata de pôr entre parênteses tudo o que a esquerda fez e faz, mesmo quando o faz no interior de uma perspectiva que pode ter muito de ilusória. Em 1968, para dar um exemplo, muita gente se exprimia na linguagem do maoismo ou do trotskismo. Nem por isso o movimento de 1968 deixou de ser um movimento libertário, ainda que as ideologias de viés autoritário que impregnaram parte dele limitassem o seu alcance.

A esquerda lutou e luta, mesmo se sob bandeiras que muitas vezes são ambíguas ou duvidosas. As grandes greves operárias na Europa e na América Latina não deixaram de ser grandes movimentos porque se fizeram, muitas vezes, sob direções social-democratas, populistas ou stalinistas. A campanha contra o impeachment no Brasil foi um importante movimento, a ser sempre saudado e comemorado, embora tenha sido feito sob a hegemonia de um partido que não é propriamente um modelo. Enfim, não pretendo substituir isto que aí está por um movimento novo. Não se trata de trocar o movimento real por um movimento ideal. Trata-se de combater infecções de ideias que prejudicam o movimento.

Dito de outra forma: as doenças da esquerda são graves porque elas limitam o alcance da sua atividade e dão armas aos adversários. Mas não são doenças que façam com que esses movimentos deixem de ser, na sua imensa maioria, movimentos de libertação.

É preciso partir, contudo, de uma realidade horrível e brutal. Uma das tendências da esquerda, nascida na Rússia no início do século XX e que mais tarde se tornou mais ou menos hegemônica na esquerda mundial, conduziu a um resultado catastrófico. Ela nasceu de um partido autoritário que, depois de algumas peripécias, deu origem a um Estado totalitário e até mesmo, a partir dele, a um sistema de Estados totalitários. Isso quer dizer: Estados em que se negavam todas as liberdades civis e políticas aos seus supostos cidadãos, e que tinham como projeto uma dominação total do indivíduo. O balanço da experiência totalitária de esquerda é o de muitas dezenas de milhões de mortos, sendo os pontos altos desse massacre a fome stalinista dos anos 30 – que atingiu os camponeses da Ucrânia e do sul da Rússia – e o Grande Salto para a Frente, projeto delirante de crescimento econômico e industrialização hiperbólicos de Mao Tsé-tung, na China, entre 1958 e 1961. Pode-se acrescentar a essa lista, sem hesitação, o “grande terror” na URSS, nos anos 30, e a Revolução Cultural Chinesa, que começa em 1966, com prolongamentos que vão até a morte de Mao, dez anos depois. Not least, a façanha sangrenta de Pol Pot e companhia, com seus cerca de 2 milhões de mortos, mais ou menos um quarto da população do Camboja.

O que há de enorme em tudo isso, circunstância sobre a qual é preciso continuar refletindo, é que a “folha de serviços” prestados pelos partidos e Estados totalitários representa o oposto exato do que se pode considerar como o ideário da esquerda, no seu projeto original. Isto é: o destino de uma parte da esquerda foi o de negar, de maneira brutal, tudo aquilo que ela propunha na origem: igualdade, liberdade, solidariedade, respeito mútuo entre cidadãos e governantes, justiça social. Claro que sempre se pode falar das famosas “conquistas” do “comunismo” no plano da seguridade social e em parte da educação, mas elas foram na realidade mais “avanços” do que conquistas, porque foram precárias e não compensaram a enormidade da violência criminosa dos Estados totalitários.

Assim, a partir do leninismo, assistiu-se ao nascimento de um leque de formas no interior do universo totalitário. E se considerarmos que o trotskismo reivindicou e reivindica uma herança leninista bastante ortodoxa, apesar de tudo, vemos que há uma pluralidade de modelos políticos – leninismo, trotskismo, maoismo, stalinismo, castrismo – que ou encarnaram propriamente um projeto totalitário ou, pelo menos, não criticaram efetivamente o modelo totalitário e, de um modo ou de outro, continuaram presos a ele e lhe pagaram tributo.

 

Mas qual a situação atual do modelo totalitário no Brasil e no mundo?

Pode-se dizer que, na Europa, a crítica do totalitarismo dentro da esquerda avançou muito. Há muito pouca gente de esquerda que continue a acreditar em Stálin; e mesmo correntes leninistas, trotskistas ou castristas são claramente minoritárias. Entretanto, é preciso observar que há ainda teóricos neototalitários bem conhecidos do grande público que defendem, de uma forma ou de outra, a herança totalitária, ou pelo menos uma parte dela. É principalmente o caso de dois filósofos: o francês Alain Badiou e o esloveno Slavoj Žižek. O primeiro pratica uma espécie de neomaoismo, reivindicando em particular as práticas dominantes em pelo menos um dos períodos da Revolução Cultural; o segundo é mais ambíguo, mas a sua atitude em relação ao passado, inclusive no que se refere a Stálin, é pelo menos duvidosa. Esses dois personagens tiveram e têm certo sucesso perante o público europeu. Inclusive bons jornais de esquerda, como o Libération, lhes deram, até há pouco tempo, bastante atenção.

No Brasil, a situação é muito diferente – e muito mais séria. Há na extrema esquerda vários pequenos partidos – PSTU, PCdoB, PCO, entre outros – que reivindicam o leninismo, o trotskismo, o castrismo – às vezes, mais de uma dessas figuras – e, em pelo menos um caso, o stalinismo. Essas tendências existem igualmente na Europa, onde são também minoritárias. Só que, aqui, elas têm certo peso – de maneira mais evidente no plano das organizações estudantis. Infelizmente, não ficamos nisso: se passarmos desses movimentos radicais e minoritários ao PT, nosso principal partido de esquerda, veremos que, se o prestígio das ideologias neototalitárias muda, não muda tanto quanto seria de esperar. É notório que uma parcela considerável de simpatizantes e militantes petistas tem certas ilusões com relação a partidos e movimentos totalitários. Pelo menos parte do núcleo pró-castrista mais duro, no Brasil, pertence ao PT, e não a partidos que em princípio se situam mais à esquerda. E muita gente do PSOL, partido de semiextrema esquerda, também compartilha dessas ilusões.

Deve-se considerar também, nesse contexto, o papel dos ativistas que militam principalmente nas universidades, e que promovem certo tipo de ocupações, ou ocupações em série, “cadeiraços” e outros abusos. O caso mais grave é provavelmente o da Universidade de São Paulo. Trata-se em parte de militantes de grupos de extrema esquerda, mas há também os que pertencem a partidos de esquerda supostamente mais moderada, além de neoanarquistas e similares. A observar que os ativistas são muito minoritários entre os estudantes, e também que eles muitas vezes agem contra as decisões das assembleias, onde se decide democraticamente. O modelo totalitário está muito presente nessas práticas. Bem entendido, o problema da universidade não começa aí. Durante anos houve movimentos perfeitamente justificáveis por parte dos estudantes – apoiados por muitos professores – contra a burocracia universitária, a falta de verbas, as difíceis condições de trabalho. Mas um grande número de professores foi perfeitamente indiferente a essas reivindicações; isso se não as denunciou como demagogia irresponsável. As burocracias universitárias e uma massa considerável de docentes de direita contribuíram, e muito, não esqueçamos, para a deterioração da situação. A Polícia Militar não entrou de mão leve, ao fazer as desocupações, o que é absolutamente intolerável. Tudo considerado, contudo, o tipo de violência de esquerda a que se tem assistido há alguns anos na USP é propriamente lamentável. Que a esquerda não se engane: seus efeitos são negativos. Pode levar à destruição da universidade. E tal tipo de movimento só pode beneficiar a direita, como aliás já vem acontecendo.

Se passarmos da prática política ao campo do pensamento, verifica-se que também o peso das ideias neototalitárias continua sendo importante na esquerda brasileira. Observo que Žižek e Badiou são mais ou menos bem recebidos nos meios de esquerda, embora a sua fama seja relativa. De qualquer maneira, não faltam resenhas elogiosas aos seus trabalhos, inclusive na pena de gente que pertence a organizações de esquerda não muito radicais – ao PT, por exemplo.

 

Assim, não nos livramos inteiramente da peste totalitária. Bem entendido, o mundo também não se livrou. Além dos limites da crítica europeia, a que fiz referência, a situação é confusa, porque agora temos poderes de Estado ao mesmo tempo totalitários – totalitários de esquerda – e capitalistas. É o caso da China. Ora, uma cura total em relação à doença totalitária é não só indispensável em termos teóricos – não há como eliminar a democracia dos fundamentos teóricos da esquerda –, mas ela se impõe do ponto de vista prático, e com urgência. Quem hoje no “grande público” acredita no totalitarismo? Que “opinião pública” nacional ou internacional se dispõe a aceitar o totalitarismo? Quando fazem o elogio do castrismo, os militantes de certos partidos de esquerda e de extrema esquerda querem dizer com isso que esse seria o regime ideal para o Brasil? Não sei se pensam assim, mas tudo fica pelo menos numa região cinzenta, num claro-escuro. Certas declarações dessa ou daquela figura daqueles partidos sugerem que sim.

Ora, um projeto desses é um suicídio político, a curto, médio e longo prazo. Quem desejaria um governo de tipo castrista no Brasil? De minha parte, se por acaso isso viesse a acontecer, tomaria o caminho do refúgio em alguma embaixada. De onde vem esse temor de cortar o fio que nos prenderia aos regimes totalitários? Provavelmente de um medo de se “isolar da história”, de perder suas bases reais, de se desligar da “experiência concreta” da esquerda no mundo. Mas isso é uma ilusão. A esquerda sempre representou uma ideia de ruptura. Ruptura com o capitalismo, é claro. Mas também ruptura com todas as formas de opressão, mesmo aquelas que se pretendem progressistas – incluindo aí as que eventualmente o foram, no passado. Partidos, movimentos e regimes apodrecem. Eles mudam muito e podem se transformar no seu contrário, às vezes conservando antigas denominações. Se a esquerda não for capaz de distinguir bem os nomes das coisas, estamos perdidos, porque a história é em grande parte um jogo de esconde-esconde que mobiliza e embaralha esses dois elementos: os nomes, de um lado, e os processos históricos efetivos, no sentido do progresso ou da regressão – porque há regressões históricas, é bom não esquecer –, de outro. Enfim, impõe-se uma plena e absoluta superação crítica – tanto no plano da prática como no da teoria – do interregno totalitário. Só nessas condições a esquerda tem futuro. Sem isso, não sairemos da floresta.

 

 

ADESISMO E POPULISMO

 

Embora grave, o totalitarismo não foi o único grande “desvio” tomado pela esquerda em relação aos seus verdadeiros ideais nos últimos 100 anos. Pelo menos duas outras importantes patologias caracterizaram o período. Elas podem ser chamadas, simplificando bastante as coisas, de “adesismo” e de “populismo”.

Essa não é, de toda forma, uma constatação nova. Aqueles que fizeram a crítica dos totalitarismos de esquerda frequentemente os consideravam como sendo apenas um dos polos de um processo – em geral bipolar – de degenerescência da esquerda. Fazendo pendant à crítica à esquerda totalitária vinha um segundo bloco crítico, cujo objeto era uma outra degenerescência, considerada como mais ou menos simétrica à primeira, e em geral chamada de “reformismo”. Hoje seria melhor falar em adesismo do que em reformismo – afinal, se a diferença entre “reforma” e “revolução” não desapareceu, pelo menos se tornou muito complexa; além disso, ocorre que o antigo reformismo tomou nas últimas décadas formas extremas, de pura e simples capitulação diante do sistema.

Esse outro polo de degenerescência teria existido no Brasil? Parece-me que sim, e a melhor encarnação dele é o que eu chamaria de “cardosismo”, a tendência política que se articulou em torno do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. O grupo de FHC aos poucos se deslocou do que era uma posição de centro-esquerda, à época da fundação do PSDB, para uma de centro-direita (outros políticos tucanos, como Geraldo Alckmin, por exemplo, podem ser simplesmente situados na direita, sem maiores qualificações).

Há alguma coisa em comum entre Fernando Henrique Cardoso e Tony Blair, primeiro-ministro da Grã-Bretanha entre 1997 e 2007, que, como líder do Partido Trabalhista, pôs em prática uma política econômica neoliberal. Num dos livros de memórias que escreveu – The Accidental President of Brazil –, Fernando Henrique o afirma explicitamente. Trata-se, nos dois casos, de políticos que originalmente se posicionavam à esquerda, mas que acabaram aderindo ao sistema político-econômico dominante. No caso de Blair, à política econômica de Margaret Thatcher.

Como isso ocorreu, no caso de FHC e dos seus amigos? A reconstituição desse processo é sempre difícil. De toda forma, houve uma espécie de aceitação da ideia de que “não haveria alternativa” ao liberalismo econômico. A julgar pelo que Fernando Henrique Cardoso escreve no texto autobiográfico a que me referi, essa convicção vem fundada na percepção que ele teve – e tem – do significado do fim do “comunismo”. A queda do Muro implicaria uma espécie de julgamento definitivo quanto à vitória do capitalismo. O destino do “socialismo de caserna” mostraria que não há outra saída. Conclusão apressada, evidentemente.

Dá o que pensar o destino que acabou tendo o antigo sociólogo crítico, importante intelectual da esquerda. E também o de gente como o atual ministro das Relações Exteriores, José Serra, ex-líder estudantil exilado pela ditadura. O destino deles me parece um pouco melancólico. É verdade que em alguns membros daquele grupo, como também em Blair, sobrou algum verniz de esquerda – mas nunca muito mais do que um verniz.

 

A terceira figura patológica da esquerda é a que se designa pelo termo genérico de “populismo”. Mas a que ela corresponde, precisamente? Como definir o populismo? E como definir a situação do partido de esquerda até aqui hegemônico no Brasil – o PT – em relação ao populismo? O PT é um partido populista?

Muito se discutiu a respeito do populismo de esquerda. Seus traços principais parecem ser a existência de uma liderança carismática autoritária; uma política que une, pelo menos na aparência, interesses de classes mais ou menos antagônicas; e certo laxismo na administração da riqueza pública. A meu ver, mesmo quando falta algum desses traços, ainda assim é possível falar em populismo, desde que os outros sejam suficientemente marcados. Por exemplo: no caso de Getúlio Vargas, há os dois primeiros fatores, mas não exatamente o último (Getúlio não enriqueceu no poder, embora tenha havido corrupção no seu governo). No caso de Adhemar de Barros, duas vezes governador de São Paulo entre os anos 40 e 60, os dois últimos aspectos – aparente conciliação de interesses de classe e tolerância com desvios na administração da coisa pública – são visíveis; já o primeiro, só imperfeitamente. Adhemar tinha certo carisma, mas não de tipo autoritário. Creio, entretanto, que Adhemar e Getúlio, cada um a seu modo, podem ambos ser considerados como líderes populistas.

No caso do PT, também falta, à sua maneira, o elemento autoritário. O carisma está lá, ainda que menos pronunciado do que no caso de um Juan Domingo Perón, de um Hugo Chávez ou de um Getúlio Vargas. Mas, sobretudo, houve certamente laxismo – é o mínimo que se poderia dizer – nas suas práticas administrativas. Entretanto, saber se o PT pode ou não ser chamado de populista não é o mais importante. Pelo menos do ponto de vista prático, o essencial é insistir sobre o fato, indiscutível a meu ver, de que o partido não “errou” simplesmente, como pretendem alguns. O partido não se limitou a “cometer certos erros”. Erros, aliás, se reconhecem até da mãe… Houve, na verdade, um sistema deliberado de poder e de administração pública que era errado.

A prática petista foi e é uma prática patológica e, nesse sentido, comparável mutatis mutandis à política dos neototalitários e à dos reformistas-adesistas. Isso não quer dizer que os governos do PT não tenham feito nada de positivo, que o balanço global da sua trajetória seja puramente negativo. Na realidade, o PT pôs em prática uma política de redistribuição de renda cujos instrumentos principais foram o Programa Bolsa Família, a valorização do salário mínimo e certas facilidades de crédito para setores não privilegiados. Além de ter garantido, pelo menos na cidade, uma atmosfera democrática – ainda que, durante os dois grandes eventos esportivos internacionais, o governo petista tenha sido brutal com certos núcleos da população urbana – e de ter assegurado, o que governos anteriores não fizeram, a independência da Polícia Federal e do Ministério Público.

O programa redistributivo, ou parte dele, obteve êxito considerável, o que é reconhecido mesmo pelos adversários. Só que esse programa não só veio ligado a uma política de “aliança de classes” – algo que, em si mesmo, conforme as condições, poderia ser tolerado – como também associado a um uso abusivo da máquina do Estado em benefício do partido e de particulares ligados a ele. É esse o lado intolerável.

Mas já que se admite que houve um lado positivo na trajetória petista, impõe-se a pergunta que, implícita ou explicitamente, recebe uma resposta positiva por parte de muitos dirigentes, teóricos e simpatizantes do PT: valeu a pena a “operação”? Isto é, foi correto corromper deputados, desviar dinheiro público, vender cargos públicos, entre outras ilegalidades, para se sustentar no poder e com isso implementar medidas redistributivas? É isso que está por trás do raciocínio de muita gente ligada de algum modo ao PT. “Fizemos o que tinha de ser feito”, dizem ou pensam eles, e o resultado aí está. Pelo menos o Bolsa Família ninguém considera liquidar inteiramente.

Na realidade, esse raciocínio é falso. O impasse a que o PT conduziu a esquerda brasileira não paga o preço do que resta, isto é, os resultados obtidos por sua política redistributiva. Não só o partido perdeu o poder, mas, queiramos ou não – e apesar de a esquerda independente não ter sido em nada responsável por aqueles desvios –, a esquerda em geral saiu desmoralizada ao final dos anos de Lula e Dilma na Presidência. A direita, por sua vez, incluindo aí a extrema direita, levantou a cabeça.

Não se diga que a corrupção é endêmica na política brasileira. Isso é verdade, mas não justifica. O PT nasceu como um partido que precisamente visava romper com esse tipo de prática, ao mesmo tempo que a legenda também se manifestava como estranha ao modelo leninista ou stalinista, de um lado, e ao modelo social-democrata, de outro. Que o sistema político brasileiro seja visceralmente corrupto não absolve o PT. Poderíamos mesmo dizer: é normal que a direita nade na corrupção, mas toda esquerda séria é hostil a esse tipo de coisas. O que não significa que o fato de a corrupção ser generalizada não desmascare a política da direita. Por outras palavras, é necessário criticar a fundo o modelo petista, mas ao mesmo tempo desmascarar a jogada da direita, segundo a qual só o PT rouba.

Mas, insistem alguns – e isso não é simples hipótese, o argumento está na boca de muita gente –, “sem as práticas corruptas não teríamos chegado ao poder”. E, nesse caso, nada de medidas de redistribuição. Nesse plano, o país estaria onde estava no início do século, mesmo que contasse com um partido de esquerda hegemônico irreprochável. Na realidade, esse caminho, o que não foi seguido pelo partido e que parece irrealista, porque ligado a algo como uma “ética da convicção”, teria sido o único aceitável.

O que teria acontecido nessa hipótese? Talvez o PT tivesse tido maior dificuldade para chegar ao poder. Talvez tivesse obtido, nos anos seguintes, apenas poderes executivos estaduais ou municipais. Ainda assim – mesmo nessa hipótese pessimista quanto ao sucesso eleitoral do partido –, o ganho teria sido considerável. O PT apareceria como um grande partido de esquerda independente, que sem dúvida a direita tentaria derrubar, de qualquer jeito, mas sem dispor dos mesmos meios para levar a cabo esse projeto. O seu prestígio nacional e internacional seria imenso. Mesmo não dispondo de todo poder governamental, projetos como o Bolsa Família poderiam provavelmente ser implementados nos estados ou nos municípios. Não tenho dúvida de que, apesar de tudo, essa opção seria de longe preferível àquela pela qual enveredou o petismo. Uma opção cujo resultado catastrófico estamos vivendo no presente: uma direita em plena ofensiva, uma esquerda golpeada e de certo modo desmoralizada, um país em pleno retrocesso político.

 

O petismo e os populismos em geral, sui generis ou não, representam a terceira patologia da esquerda. Certamente a que mais nos atinge. A mais grave, no momento presente. Caberia portanto saber o que dizem alguns dos mais importantes intelectuais petistas a esse respeito, e examinar os seus argumentos. Que me seja permitido dizer alguma coisa sobre as intervenções recentes e menos recentes de minha colega Marilena Chaui, professora de filosofia da USP, certamente a figura intelectual mais conhecida da família petista.

Para além dos velhos laços de amizade e de lealdades acadêmicas, é preciso afirmar com todas as letras: o discurso político de Marilena Chaui tem representado uma verdadeira catástrofe para a esquerda. Senão, vejamos. Por ocasião do mensalão, Chaui tomou a defesa do PT – e praticamente não fez nenhuma crítica ao partido ou a sua direção. Agora, com a Operação Lava Jato e escândalos sucessivos envolvendo, certo, não só o PT, mas também o PT, a sua atitude não foi diferente. Tivemos uma defesa intransigente do partido – não se ouviu da professora de filosofia praticamente nenhuma crítica à legenda – e, o que é pior, a defesa se fez na base de uma enxurrada verbal arbitrária. Assim, contra todas as evidências, Chaui continua insistindo no caráter “fascista” da pequena burguesia. Na realidade uma parte da pequena burguesia é, digamos, fascistizante, outra parte hesita, e uma terceira, constituída sobretudo por gente com formação secundária ou universitária, está na verdade afinada com a esquerda e, frequentemente, com o melhor da esquerda. Quanto à Operação Lava Jato – fenômeno complexo, ao qual não se pode deixar de atribuir, em princípio, efeitos positivos, apesar dos erros e desmandos de alguns dos seus “operadores” –, Chaui a desmistifica: afirma, sem se dar ao trabalho de provar o que diz, que o juiz Sergio Moro teria sido treinado pela Agência de Inteligência Americana, a CIA, para levar adiante um projeto de entrega do pré-sal aos norte-americanos.

Uma intervenção recente de Marilena Chaui me interessou particularmente. Por ocasião de um debate com outros intelectuais, e porque se falasse da necessidade de reconhecer os erros do PT, Chaui fez questão de deslegitimar todo projeto de “autocrítica”. Explicou aos participantes do debate e à plateia que “autocrítica” era coisa da política totalitária, política terrível como se sabe, e que seria preciso recusá-la a todo custo. Pôs-se então a falar longamente da autocrítica em regime totalitário, ou dentro de um partido totalitário. Com esse tipo de discurso, Marilena Chaui não apenas “saiu do tema” – discutia-se o PT, e não o regime e os partidos totalitários –, mas fez mais do que isso. Com seu discurso contra a autocrítica em regime totalitário, ela lançou uma cortina de fumaça sobre o que se passava e se passa no seu partido. A autocrítica forçada em regime totalitário se tornou a mesma coisa que qualquer autocrítica, a mesma coisa que a autocrítica em geral. Ou, preferindo, o mal-estar que se pode sentir, efetivamente, diante da palavra “autocrítica” – pelo que evoca, a palavra se tornou de fato horrível – tornou-se, no discurso de Chaui, uma arma para impedir qualquer explicação autocrítica por parte do PT. Acontece que, se a palavra é ruim, a “coisa” pode ser boa (embora não na versão stalinista, como é óbvio).

Mas o que quer dizer Marilena Chaui quando exorciza a autocrítica no presente contexto? Será que ela quer dizer, por acaso, que mutatis mutandis a situação dos acusados do mensalão e investigados pela Lava Jato seria análoga à dos acusados nos processos stalinistas? José Dirceu seria, assim, uma espécie de Bukharin, o líder bolchevique falsamente acusado, perseguido por Stálin e condenado à morte? Antonio Palocci, por sua vez, seria um Lev Kamenev, outro líder soviético descartado por Stálin? Os juízes que atuaram no mensalão ou que atuam na Lava Jato seriam os herdeiros de Andrey Vyshinsky, encarregado pelo ditador soviético de levar a cabo o julgamento de seus inimigos? Isso significaria que as acusações que se lhes fazem, de maneira análoga ao que aconteceu nos processos de Moscou, remeteriam ao mais puro delírio? E que os protestos de inocência dos acusados exprimiriam as razões verdadeiras de gente inocente, injustamente acusada?

Na realidade, quaisquer que sejam as críticas que se possam fazer ao encaminhamento dos atuais processos por corrupção no Brasil – não me refiro à questão do impeachment, que é de outra ordem –, a situação real, guardadas as proporções, é mais ou menos inversa à dos processos stalinistas. Apesar das reservas que se podem fazer a tal ou qual iniciativa dos procuradores e juízes operando nos processos do mensalão e na Lava Jato, em linhas gerais – pelo menos até o show lamentável do promotor Deltan Dallagnol – a acusação não foi delirante. Já insustentáveis, se não delirantes, foram os protestos de inocência dos acusados e os protestos de inocência total do PT. É aí que está a ficção. Assim, Marilena Chaui toma alhos por bugalhos. Ou, pior ainda, mistura tudo e nos oferece um mundo de cabeça para baixo.

Essa intervenção de Chaui – que não é um caso isolado – se revela uma peça de pura retórica. O problema com Marilena – não se trata de fazer carga gratuitamente contra Chaui, mas ela dá o tom para os seus pares – é que, infelizmente, ela se mostra seduzida demais pelo aplauso dos auditórios. Ora, não há nada mais funesto, para a esquerda, do que esse tipo de sedução. Porque, infelizmente, digamos as coisas brutalmente, beócios não há somente no campo da direita. No nosso, é preciso reconhecer, os há também – em número considerável e, o que é pior, muitos deles costumam frequentar os anfiteatros. Para eles, quanto mais retórico, no mau sentido, for um discurso, e quanto mais afetado for o modo como ele é pronunciado, mais aplausos merecerá. Ilusão funesta da oradora. Sim, o discurso é aplaudido por algumas centenas de pessoas no momento em que é pronunciado no auditório, e talvez venha mesmo a ser aplaudido por alguns milhares que poderão assisti-lo em vídeo. Em compensação, milhões de pessoas que terão ciência do seu conteúdo o repudiarão, como de fato o repudiaram.

É preciso distinguir com clareza a defesa de uma posição de esquerda da defesa de um partido. As duas coisas não vão sempre juntas. A esse respeito – e também quanto à retórica –, a posição dos populistas é infelizmente muito parecida com a dos totalitários. Se um daqueles velhos líderes stalinistas, que, sem dúvida, defendiam bem mais o seu partido do que a causa da esquerda, voltasse ao Brasil de hoje, que diria ele sobre os investigadores? Provavelmente o mesmo que disse Chaui: que eles são agentes do imperialismo ianque interessados em entregar as nossas riquezas.

O exemplo de Marilena Chaui serve para que se diga o seguinte: se o discurso dominante na esquerda não mudar, perdemos hoje e perderemos sempre. A fala populista irresponsável diante da verdade nos condena à derrota. Os aplausos dos ingênuos ou dos fanáticos não são, certamente, uma compensação suficiente.

 

O ATAQUE DA DIREITA

 

Pois bem, as patologias de esquerda, cada uma a seu modo, entraram em crise. O império “comunista” se desintegrou com a queda do Muro de Berlim, a União Soviética se desfez, os regimes comunistas foram derrubados, em geral por movimentos pacíficos, nos países da Europa Oriental. Restaram “ilhas” comunistas, algumas com regime ortodoxo, senão hiperortodoxo, como a Coreia do Norte, outras articulando um neototalitarismo leninista-stalinista com uma economia de tipo capitalista, caso da China.

Além do totalitarismo de esquerda, a social-democracia europeia também entrou num processo “crítico”, embora de um tipo diferente: ela se tornou cada vez menos reconhecível enquanto força de contestação do capitalismo. Tony Blair, na Grã-Bretanha, e Gerhard Schröder, primeiro-ministro alemão de 1998 a 2005, lideraram esse processo ao colocarem em prática programas econômicos de cunho neoliberal em seus países. A social-democracia não se decompôs com essa mudança, mas perdeu, isso sim, o seu caráter de força política da esquerda, algo que é reconhecido mais ou menos universalmente. Porém, houve mais: pelo menos em alguns países da Europa – Espanha e França, principalmente – os partidos social-democratas e socialistas também se enfraqueceram.

O populismo entrou em crise e perdeu poder: Chávez encontrou dificuldades crescentes e, depois da sua morte, o regime bolivariano não se estabilizou; o processo descendente do peronismo, na Argentina, se intensificou com a derrota dos Kirchner; o lulismo – se for válido caracterizá-lo como um “populismo atípico” – entrou em parafuso.

É o caso de perguntar se as dificuldades que encontraram as patologias da esquerda são positivas ou negativas para uma esquerda autêntica. O fim do totalitarismo foi certamente uma boa coisa; já a decadência de um partido como o PT é um fenômeno cujo significado é bem mais ambíguo. É preciso considerar quem se beneficiou ou tomou o lugar dos partidos, movimentos e líderes totalitários. O mesmo vale para os grupos adesistas quando estes foram derrotados eleitoralmente, ou as agremiações populistas e semipopulistas. Infelizmente não foi, em geral, uma esquerda autêntica que se beneficiou desse processo. O lugar que ocupava a esquerda “deformada” acabou sendo preenchido pela direita, e não por uma expressão qualquer de uma nova esquerda. Foi o que aconteceu, de forma geral, nos países do Leste Europeu. Para os populismos e semipopulismos, deu-se algo da mesma ordem – basta ver o caso da Argentina e também o do Brasil –, mas as implicações políticas, aqui, são diferentes, precisamente porque não se tratava de totalitarismos.

Assim, a derrota de uma certa esquerda – quase fictícia, no caso do totalitarismo – significou uma vitória da direita mais ou menos radical – o que não é uma tautologia, pois poderia sobrevir uma esquerda autêntica. Menos tautológica ainda, menos inevitável, foi a ofensiva ideológica da direita que se seguiu àquelas derrotas. Apesar das crises que assolaram o sistema capitalista mundial nas últimas décadas do século XX e nas primeiras do século XXI, a direita, após períodos breves de pânico e de defensiva, conseguiu impor o seu programa econômico e político. Privatizações, liberdade para o capital, compressão salarial. Estado intervencionista só quando se trata de proteger a “livre-iniciativa”. Da crise das patologias de esquerda emergiu também uma espécie de filosofia construída a partir da tradição liberal ou, antes, surgiram quase-filosofias, todas dependentes do liberalismo econômico, algumas de tipo mais moderno, aceitando certos avanços no plano dos problemas de “sociedade”, outras marcadas por ideologias francamente reacionárias em todos os planos. Isso tudo produziu e continua produzindo um imenso barulho midiático. Com todo esse ruído, parte dessas ideias de direita acabou sendo incorporada ao “senso comum”.

Seja como for, fica claro quais são as armas da direita. Ela explora a fundo o totalitarismo de esquerda e o populismo. Ela se alimenta dessas duas patologias, que na sua forma geral – totalitarismo e populismo – não são, é bom insistir, patologias exclusivas da esquerda. Mas parte da esquerda enveredou por aí e, com isso, ofereceu espaço de manobra para a direita e a extrema direita.

 

Um dos espaços em que opera essa nova direita, ao explorar as contradições das patologias da esquerda, é a imprensa, algo que se viu crescer em anos recentes no Brasil. Ainda sob a ditadura, num texto clássico publicado em livro em 1978, mas redigido anos antes – Cultura e Política, 1964–1969 –, o crítico literário Roberto Schwarz fazia o balanço do que lhe parecia ser a hegemonia do pensamento de esquerda nos anos que se seguiram ao golpe militar. Embora fora do poder, a esquerda era então hegemônica no plano das ideias. De lá para cá, muita água passou sob a ponte. Se, já nos anos da ditadura, a direita tinha evidentemente os seus representantes intelectuais, hoje ela tem todo um grupo de porta-vozes que atua na mídia escrita ou falada empenhado numa verdadeira ofensiva contra a esquerda.

Em conjunto, eles se caracterizam, apesar de algumas exceções, pela extrema violência no tom do que dizem ou escrevem; e, não à toa, pelo fato de a maioria de seus representantes ter vindo da esquerda ou da extrema esquerda. Quanto à filosofia que hoje professam, ela varia de um conservadorismo cristão e espiritualista a um quase ceticismo, com vertentes pessimistas ou mais otimistas. O mais velho é o filósofo Olavo de Carvalho. Em certos círculos, ele tem fama de teórico respeitável. Não vou me ocupar mais em detalhe da sua filosofia espiritualista e cristã. Seria longo demais, e isso me obrigaria a lê-lo mais do que o li – e já foi o bastante. A propósito de Olavo de Carvalho, eu me limitaria a algumas observações sobre as suas posições políticas, mas falarei também sobre o conteúdo e a forma da sua crítica.

No plano político, Olavo de Carvalho se revela, em alguns de seus textos, um ferrenho adversário do atual presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. Chega mesmo, num tipo de exagero que não lhe é incomum, a supor – e a dizer – que o governo americano trabalha em favor da conspiração islâmica mundial. O velho pensador da direita brasileira se insurge contra as principais medidas e tomadas de posição do governo Obama. É adversário da tentativa de se ampliar uma das formas da seguridade social americana, o Medicare, que provê assistência médica a idosos – isso entraria na conta dos pecados do “governo socialista de Barack Hussein Obama”. Carvalho também se opõe a uma eventual legislação que controle a venda de armas a particulares. Pelo que pude ler, aprova a invasão do Iraque, decidida por George W. Bush, à qual Obama se opôs. Difícil dizer, sobre alguém que assuma tais posições, que é um amigo da humanidade. No plano nacional, Olavo de Carvalho se situa à direita da direita clássica. Não hesita em tecer elogios ao deputado Jair Bolsonaro ou ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (é curioso ver a mistura de pensadores cristãos e espiritualistas, que Carvalho admira, com o deputado “atirador” Bolsonaro e o torturador Ustra).

Seu discurso não exclui um trabalho de ordem mais analítica, mas, mesmo quando a intenção é crítica, não só o estilo é muito violento como muitas vezes vem acompanhado, nas intervenções orais ao menos, por insultos e palavrões. Para se ter uma ideia de até onde vai o discurso de Olavo de Carvalho, ofereço ao leitor essa pérola de ódio, extraída de uma de suas obras recentes: “Quem quer que estude a vida de cada um deles descobrirá que Voltaire, Diderot, Jean-Jacques Rousseau, Sade, Karl Marx, Tolstói, Bertold Brecht, Lênin, Stálin, Fidel Castro, Che Guevara, Mao Tsé-tung, Bertrand Russell, Jean-Paul Sartre, Max Horkheimer, Theodor Adorno, Georg Lukács, Antonio Gramsci, Lillian Hellman, Michel Foucault, Louis Althusser, Norman Mailer, Noam Chomsky e tutti quanti foram indivíduos sádicos, obsessivamente mentirosos, aproveitadores cínicos, vaidosos até a demência, desprovidos de qualquer sentimento moral superior e de qualquer boa intenção por mais mínima que fosse, exceto talvez no sentido de usar as palavras mais nobres para nomear os atos mais torpes. Outros foram estupradores ou exploradores de mulheres, opressores vis de seus empregados, agressores de suas esposas e filhos. Outros, orgulhosamente pedófilos. Em suma, o panteão dos ídolos do esquerdismo universal era uma galeria de deformidades morais de fazer inveja à lista de vilões da literatura universal. De fato, não se encontrará entre os personagens de Shakespeare, Balzac, Dostoiévski e demais clássicos nenhum que se compare, em malícia e crueldade, a um Stálin, a um Hitler ou a um Mao Tsé-tung.”

Creio que o texto dispensa um comentário maior. Marx, Adorno, Horkheimer, Russell – este, coitado, além de grande lógico, autor de uma obra pioneira de crítica do bolchevismo –, mais Diderot, Foucault e Norman Mailer, juntos a Stálin, Mao Tsé-tung e… Hitler! Hitler, também de esquerda? Todos, juntos, recebem a pecha coletiva de “sádicos, mentirosos, cínicos, estupradores, exploradores de mulheres ou pedófilos”. É mais ou menos como se alguém tomasse alguns pensadores de direita – digamos, os filósofos franceses Raymond Aron e Alain Finkielkraut –, pusesse-os lado a lado com os dirigentes nazistas – Goebbels, Himmler, Goering – e afirmasse que é tudo vinho da mesma pipa. O simples alinhamento desses nomes já seria evidentemente uma barbaridade.

Por fim, quanto à forma de seu discurso: Olavo de Carvalho usa de uma série de figuras sofísticas muito rodadas, que ele deve extrair de livros de retórica, de manuais de marketing político da extrema direita americana ou mesmo de textos filosóficos sobre a retórica.

Vou dar apenas dois exemplos dessas figuras. Uma consiste em ir até o extremo da acusação, até os limites do absurdo e da caricatura. Assim, como vimos, ele não acusa Obama de tais ou tais erros políticos, dessa ou daquela ação ilegal ou desonesta: ele o acusa de estar a serviço da conspiração islamista mundial. A acusação é tão absurda que ela desarma o interlocutor. Seria fácil defender o acusado se a referência fosse a tal ou tal malfeito particular, um malfeito possível, ainda que inexistente. Porém, quando estamos diante de uma impossibilidade total, é como se aquele que acusa mexesse nas próprias bases racionais de toda crítica e de todo julgamento. O contraditor eventual, e com ele o público em geral, termina como que paralisado pela enormidade do que está sendo dito.

Uma segunda figura – essa um pouco mais sutil – é o sofisma da hiperanálise ou do desdobramento infinito das razões. Assim, para defender uma intervenção militar, Olavo de Carvalho faz uma série de perguntas: Estão contra uma intervenção militar? Mas sabem o que é isso? Sabem que a decisão partiria do Estado Maior do Exército? E, a propósito, sabem o que é o Estado Maior? Sabem quais as mediações que teria a decisão de intervir? Em resumo, ele diria, não sabem nada sobre o que é uma intervenção militar, e ainda pretendem tomar posição contra ela. O argumento de Carvalho se completa da seguinte maneira, num pseudoeco de Aristóteles: querem falar de um objeto – nesse caso, a intervenção militar – e tomar posição diante dele, mas dele ignoram quase tudo e só conhecem possíveis qualidades (se é bom ou se é mau, por exemplo). Mas, dirá Carvalho, é impossível conhecer a qualidade sem conhecer a substância. Ora, são todos ignorantes, não conhecem a substância, como de resto ele pretende poder provar com todas as perguntas que faz e que ninguém seria capaz de responder.

O sofisma é evidente. A passagem que o seu raciocínio efetua não é da qualidade para a substância, mas do essencial para o inessencial. De fato, sabemos por experiência direta ou indireta o que significa uma “intervenção militar”. Conhecemos a essência dela – repressão, desrespeito à ordem constitucional vigente, suspensão das liberdades fundamentais. O conhecimento dessa essência – que ele considera como simples “qualidade” – vem mistificado por elementos que ele apresenta como substanciais, mas que, na realidade, são inessenciais: a estrutura de comando do Exército, as mediações por que deveria passar a decisão de intervir, e por aí vai. Isto é, a obliteração do essencial pelo inessencial é apresentada pomposa e enganadoramente como movimento, teoricamente enriquecedor, conduzindo da simples “qualidade” à substância do fenômeno. Eis como funciona a máquina linguística perversa, pseudo-savant – para não dizer mais – do senhor Olavo de Carvalho.

 

Uma figura de estilo diferente, porque mais jornalístico do que teórico, é Reinaldo Azevedo. Mas nele encontramos uma violência verbal comparável à de Olavo de Carvalho. Quando ainda não era colunista da Folha de S.Paulo, Azevedo costumava agredir os seus desafetos atacando menos o que diziam – seus textos – do que eles próprios, os autores-desafetos, pessoalmente. Isso quando não atacava a família – mesmo o pai e a mãe – do autor do texto. Apontava, com frequência, as fragilidades físicas dos seus adversários: a condição de velho, por exemplo, podia ser mencionada, como se demérito fosse. Embora não se trate em absoluto de afirmar que Azevedo seja nazista, não há como negar que esse tipo de estratégia retórica lembra o estilo do discurso nazista. Por exemplo, a propósito de alguém com ideias de esquerda e já em idade meio avançada, ele não hesitava em dizer mais ou menos assim: “É velho e de esquerda, portanto, burro.” O que significa e o que vale tal tipo de afirmação? Imaginemos que alguém escrevesse: “É jovem e de direita, portanto burro.” Seria uma tolice e uma grosseria. É claro que existem velhos de esquerda que são inteligentes, e jovens de direita que não são burros. E não me parece muito justificável sair por aí passando atestados de burrice a Fulano e a Beltrano. Tal tipo de agressão não vale nada, nem em teoria nem na prática, e visa essencialmente obter aplausos de um público de muito baixo nível.

Desde que passou a escrever na Folha, contudo, o tom de Reinaldo Azevedo mudou, tornou-se um pouco menos violento. Mas não melhorou muito. Como é frequente nos ideólogos da direita, costuma pôr no mesmo plano as figuras mais diversas da esquerda. Quanto ao seu estilo de pensamento, digamos, valeria a pena examinar parte de um artigo que escreveu sobre a guerra americana no Iraque. Ali, se Azevedo não chega a defender a invasão, se acomoda com ela, porque – ele explica – “os impérios têm uma essência amoral”. E daí passa a defender, tanto quanto a impotência da moral, também o caráter supostamente benéfico das guerras e de outros horrores, pois com eles viria o progresso da civilização. “Quantos de nós, os humanistas de pé quebrado, temos claro que a tecnologia de guerra serviu – e ainda serve, a exemplo da internet – para prolongar e tornar mais venturosa a trajetória humana na Terra?”, ele pergunta.

Há, nesse texto, algumas coisas a observar. Em primeiro lugar algo que se poderia chamar de generalismo. Da Guerra do Iraque, ele pula para o amoralismo dos impérios em geral. Mas, pelo menos do ponto de vista de uma esquerda independente, se era preciso condenar a invasão do Iraque, que acabou tendo consequências as mais desastrosas, isso não quer dizer que toda intervenção, e mesmo toda intervenção americana, seja necessariamente condenável. É discutível se não teria sido melhor, para os norte-americanos e para o mundo, ter ousado atacar o ditador sírio Bashar al-Assad, por exemplo, em vez de recuar e se omitir. Porém, há mais do que isso. O nosso autor propõe uma filosofia da “civilização” cujas dificuldades são visíveis – e na qual se reconhece, aliás, o esquematismo de um antigo esquerdista: no lugar da revolução, ele põe o progresso. Que as guerras tenham impulsionado muitas vezes o progresso técnico, ninguém duvida. Que, para além disso, o capitalismo, em meio aos seus horrores ou por meio deles, tenha sido em certas circunstâncias um fator de progresso é também inegável – este, aliás, é um tema marxista arquiconhecido. Só que: 1) O horror de uma guerra compensaria sempre o progresso técnico advindo dela? Pensemos em cada caso singular. Quando o custo de um conflito é enorme, não seria melhor se contentar com um progresso mais lento, sem pagar o preço do massacre? O mundo também anda nos períodos de paz; 2) O autor fala de progresso técnico. E o progresso social? “Progresso social” seria um conceito vazio? Se não, pergunta-se: As guerras sempre serviram ao progresso social? A Primeira Guerra Mundial, por exemplo, teria servido a esse progresso?

No que se refere ao progresso social – por exemplo, à redução da jornada de trabalho de doze a catorze horas diárias para oito, ou à emergência da democracia –, seria preciso considerar não apenas, e não principalmente, as guerras, mas as lutas. Porque esses progressos foram em geral resultado de grandes lutas, nas quais, simplificando, havia um lado a favor e um lado contra. Entre os que eram a favor, estavam, aliás, muitos inimigos das guerras, gente que acreditava no progresso pacífico da humanidade. Na prosa da extrema direita, costuma-se zombar dos que acreditavam e acreditam na possibilidade de um futuro pacífico para a humanidade, e ela se esmera, mesmo, em denunciar os resultados nefastos daquela crença. Ora, se no caso do comunismo uma inversão brutal de fato ocorreu, se o sonho virou pesadelo, também é verdade que durante anos e anos – antes, durante e depois do fastígio do bolchevismo e também do stalinismo – homens e mulheres que acreditavam num futuro pacífico para a humanidade contribuíram, e muito, apesar de tudo, para o progresso social do mundo. E não só para eles próprios ou para os seus aliados. Pois, como já disse, dessas lutas não resultaram apenas melhores condições de trabalho para os proletários. Resultaram também grandes avanços democráticos.

Not least: As guerras suscitam progresso tecnológico? E o progresso tecnológico nos levou para onde? Sem dúvida, a muitas coisas boas. Mas, sem progresso social e sem crítica do mundo, crítica que não cabe nas filosofias de extrema direita, ele também está nos levando a catástrofes ecológicas que comprometem o futuro, próximo e longínquo, da espécie. Aliás, a direita, que se pretende tão moderna, parece não se preocupar muito com o tema. Não é do seu feitio perder o sono por causa do destino da humanidade.

Além de um pouco menos de niilismo, precisamos justamente de uma filosofia complexa da história, em que, longe dos simplismos, se reconheçam linhas de progresso coexistindo com regressões – a saber, desigualdade social crescente, crises econômicas, agressões ao meio ambiente e ameaças à sobrevivência da espécie.

 

Outro ideólogo da direita, este professor universitário e jornalista, é Luiz Felipe Pondé. Eu o conheci um pouco, já faz bastante tempo; participei da banca de seu concurso de qualificação de tese, no doutorado. Até onde me lembro, seu trabalho em história da filosofia era sério. Na sua atividade jornalística, Pondé se caracteriza por fazer, em relação ao grande público, aquilo que os franceses chamam de “acariciar no sentido do pelo”, tranquilizando-o em muitas de suas crenças. Assim, em uma de suas crônicas, ele sugeria que os críticos de esquerda, de modo geral ateus e infensos ao casamento, não tinham o sentimento de segurança que têm os que creem em Deus. Como se não bastasse, acabariam se privando também, por instabilidade afetiva, das delícias do amor monogâmico e da vida de casal. Poderia responder, no que me concerne, que prefiro enfrentar a ideia do nada que se segue à vida do que apelar para um mito consolador. Parece-me uma atitude mais corajosa. Quanto ao amor e ao casamento, talvez valesse lembrar que algumas das grandes figuras da história da esquerda foram gente muito apaixonada e “romântica” no sentido usual, e que é tolice supor que a esquerda não acredita no amor. Ocorre que a função do discurso do ideólogo é menos a de tentar caracterizar corretamente a esquerda, ou a experiência da religião e do casamento, do que a de tranquilizar o bom cidadão conservador. Assim, a crença do cidadão em Deus não teria nada de supersticiosa, e seu casamento representaria, apesar dos problemas, a melhor solução possível. Mas será mesmo assim?

A prosa de Pondé tem uma outra vertente, que completa essa primeira e talvez esteja mais ligada a ela do que parece. O colunista tem por hábito assustar e escandalizar o leitor. Nesse sentido, é uma espécie de Žižek da direita, em versão brasileira. Isso é visível na sua relação com a violência. Não que ele a justifique. Mas ele joga com a violência, abusando das fórmulas provocadoras. Faz o elogio das réplicas de Lady Macbeth legitimando a violência do marido; assim, desenvolve um estranho discurso “pró-mulheres” em que convida os jovens a defender as meninas contra ameaças e violências na base da porrada. De maneira dúbia, diz ao leitor que é preciso respeitar os terroristas – para melhor combatê-los, sem dúvida. Depois se descobre que o que quer dizer é apenas que a violência está por toda parte et cetera. Compare-se com Žižek e suas afirmações do tipo “Hitler não foi suficientemente longe”. De forma análoga, o leitor de Žižek, assustado num primeiro momento pelas fórmulas proferidas pour épater le lecteur, é tranquilizado em seguida, quando o autor nos explica que ele queria dizer “apenas” que Hitler foi um falso radical, que ele foi incapaz de chegar até a liquidação do capitalismo…

Nos últimos tempos o discurso de Pondé, que no passado misturava um certo elogio do conservadorismo com temas ambíguos, tem se apresentado, de forma menos impura, como uma fala de simples defesa da tradição teórica liberal. Só que a esquerda, a melhor pelo menos, nunca desprezou essa tradição.

A maioria dos ideólogos da nova/velha direita – trânsfugas da esquerda, em geral – opera, em seus ataques, uma espécie de homogeneização de todo o campo ideológico a que se opõe. Reinaldo Azevedo não para de afirmar que não há diferença entre um esquerdista de tipo stalinista e um homem de esquerda de espírito democrático. Isso é evidentemente absurdo. De nossa parte, não confundimos extrema direita com direita. A igualização não tem rigor. É como se Azevedo dissesse, por exemplo, que entre Andrei Jdanov, teórico stalinista do realismo socialista, e o pensador francês de origem grega Cornelius Castoriadis, integrante da esquerda libertária e democrática, não há diferença essencial. Qual o erro de tal afirmação? O erro está em que entre esses dois existe um abismo. Este abismo é o totalitarismo. Um é totalitário; o outro não. Essa diferença é essencial.

Também no tratamento de tendências ou de partidos, o impulso homogeneizador é uma característica daqueles ideólogos. Assim, o PT é lido como um partido cujos militantes têm um perfil mais ou menos idêntico. Isso é falso: há certamente gente de tendência totalitária no PT, mas há também democratas, populistas e um contingente considerável de personagens pura e simplesmente oportunistas. Transformar o PT em instrumento de um complô totalitário é teoricamente falso e, na prática, mistificador.

Mas, se os ideólogos da direita gostam de homogeneizar coisas que são heterogêneas, eles também incorrem na violência oposta: estabelecem assimetrias lá onde não existem assimetrias essenciais. Reinaldo Azevedo costuma bater na tecla de que, se há corrupção por todo lado, a do PT é sistemática e visa a fins bem precisos – fins que, para ele, são evidentemente totalitários. Ora, se é verdade que as práticas de corrupção implementadas por gente daquele partido não representam simples “erros”, mas são, de fato, sistemáticas, é também falso dizer que no outro lado do espectro ideológico não existe sistema de corrupção, mas simples erro e desvio ocasional. Na realidade, a roubalheira praticada pelo “outro lado” – refiro-me às estripulias do conjunto dos partidos de centro-direita, de direita ou de extrema direita no Brasil – também é, a sua maneira, sistemática. Além de encher os bolsos de muitos, ela alimenta máquinas partidárias que asseguram o funcionamento de uma das sociedades de maior desigualdade no mundo. Eis aí algo que é completamente escamoteado pelos porta-vozes da direita. Tudo se passa, segundo eles, como se o único problema fosse a corrupção de certa esquerda, ou mesmo a corrupção em geral.

 

Há sempre certa dificuldade em explicar por que alguém se desloca de uma posição política para outra – em particular para uma posição oposta, da esquerda para a direita ou, mais precisamente, da extrema esquerda para a extrema direita. A passagem em alguns casos foi muito rápida, aliás. A explicação do mecanismo desses deslocamentos não é muito simples, mas há pistas que nos aproximam dela. Sabe-se por experiência histórica, desde os anos 20 e 30, pelo menos, que há um caminho relativamente curto que conduz da extrema esquerda à extrema direita. Alguém que militava em algum grupo dogmático e violento de extrema esquerda não tem muita dificuldade em passar à extrema direita. Ele conserva o dogmatismo, o gosto pela violência. Só elimina o que resta de melhor no grupo que abandonou: os objetivos, pelo menos em tese, igualitários.

Quando vejo manifestações da esquerda mais dogmática – por exemplo, as manifestações visando impedir que a dissidente cubana Yoani Sánchez falasse durante sua visita ao Brasil há alguns anos –, fico pensando que daqui a uns dez ou quinze anos alguns daqueles manifestantes estarão na extrema direita. Na figura de alguns dos mais fanáticos, vejo os Reinaldinhos dos anos 2030. Talvez a passagem da extrema esquerda à extrema direita merecesse uma análise mais detalhada. A violência dos discursos da nova (velha) direita tem, certamente, alguma coisa a ver com aquela passagem. Creio que essa violência seja resultado de um acúmulo de ódio. Ódio que vem de várias fontes, em geral ligadas àquele deslocamento.

Uma das fontes da violência e do dogmatismo está, justamente, na esquerda, ou em uma de suas patologias – quero dizer, está no próprio conteúdo das crenças que esses ideólogos professavam anteriormente. Sem dúvida, nem todos vêm do stalinismo, mas de qualquer modo há dogmatismo e violência suficientes no leninismo, por exemplo, para que eles possam carrear aquelas antigas energias para o moinho da extrema direita. A isso se soma o ódio que vem do mundo burguês. Cada burguês ordinário é não só muito cioso dos seus privilégios, mas despreza os escravos – e tem um ódio particularmente violento em relação a qualquer tentativa de rebelião. Liberado de certos pudores esquerdistas, pode mostrar que não há nada mais intolerável, para ele, do que as revoltas de escravos. Sobretudo, ele não gostaria de ser confundido com um escravo, e tem um ódio que se volta contra si próprio por no passado ter pertencido à esquerda. Para alguém que usufrui das vantagens advindas do fato de ser membro da classe média no Brasil, ou de algo melhor do que a classe média, é sempre um salto se engajar numa posição de esquerda. Faz-se aí uma espécie de pacto de solidariedade com os explorados e oprimidos. Aquela gente, cuja trajetória agora leva à direita, aceitou um dia esse pacto, e depois rompeu com ele. Creio que parte do seu ódio atual vem do fato de terem dado esse passo. É que, em geral, o passo exige generosidade, e muitos descobrem que nunca a tiveram. Como foi possível, então, o engajamento? Em muitas circunstâncias, e principalmente no tempo em que a esquerda era realmente hegemônica, o engajamento se fazia por uma espécie de hábito ou de imitação da maioria. Seja como for, os novos direitistas têm dificuldade de se perdoar por um dia terem efetuado a passagem.

O ódio que destilam os escritos e as falas dos nossos heróis do pensamento de extrema direita é, portanto, um condensado disso tudo: ódio de classe, ódio herdado de uma extrema esquerda mais ou menos delirante convertido em “ódio de direita”, e ódio de si mesmo, por terem cedido a alguma coisa que, em condições normais, exige generosidade.

Sejam quais forem as razões do ódio e das peripécias retóricas da direita midiática, é preciso reconhecer que ela passou a dispor de margem de manobra por explorar as contradições e as patologias da esquerda. Essa constatação basta para demonstrar o quanto o combate às deformações do totalitarismo e do populismo é essencial para a esquerda. Não quero dizer com isso que, diante de uma esquerda democrática hegemônica, a direita ficaria boazinha. Na realidade, ela continuaria a conspirar e é até possível que viesse a se tornar ainda mais violenta, porque naquelas condições a ameaça à sua dominação seria maior. Porém, se ela conspirar, pelo menos não conspirará mais nas condições relativamente favoráveis em que o faz atualmente. Livre das suas piores patologias, a esquerda teria condições muito mais favoráveis para ganhar a batalha.

 

O IMPEACHMENT

 

Ora, também o impeachment de Dilma Rousseff é fruto de uma aliança e de um avanço das direitas no Brasil, além de ser, pelo menos em parte, resultado da crise do populismo sui generis petista e de mudanças no cenário econômico mundial.

Dilma se reelegeu em 2014, quando a política populista particular do PT parecia seguir o seu curso sem maiores entraves. Ocorre que a situação econômica mundial já havia se alterado, e não sob a forma de uma crise financeira mais ou menos passageira. O mercado de commodities, que de certa forma dera sustentação à capacidade dos governos Lula de conciliar interesses de classe distintos, foi atingido pela redução de atividade na economia chinesa. E Dilma não é Lula. Não tem, politicamente, a mesma habilidade para conciliar contrários, negociando com uns e outros. A presidente, assim, se tornou vítima da crise. Diante do arrefecimento da economia, ela hesitou entre três modelos – que poderíamos chamar o “social”, o “desenvolvimentista” e o “liberal”. Passou de um a outro. Chegou mesmo a tentar combinar todos eles, o que em si não é condenável, só que trabalhando mal no plano da cúpula governamental, do Legislativo e das direções partidárias. Tampouco se mostrou capaz de explicar às suas bases e à opinião pública o sentido das mudanças de rota.

Enquanto Dilma parecia não saber o que fazer, a direita se articulava, reunindo a centro-direita – representada pelos cardosistas –, a direita – que congrega o DEM, o PSDB não cardosista e outros grupos e partidos – e a extrema direita – na qual aparecem várias figuras mais ou menos sinistras, como Bolsonaro. Conforme disseram os próprios participantes, durante um longo período – um ano ou mais, ao que parece –, organizaram-se reuniões em que se preparava a derrubada de Dilma. A direita militar esteve pelo menos ciente do que se preparava, e provavelmente bem mais do que isso. Não se pode esquecer também do papel muito importante que tiveram nesse processo as chamadas “classes produtoras”, por meio dos seus órgãos representativos, como a Fiesp.

Tudo isso se passava enquanto jovens procuradores e representantes do Judiciário começavam a fazer uma ofensiva contra a promiscuidade entre o poder econômico e o poder político. Em que medida a direita estava articulada com esse movimento? Duas coisas me parecem certas. Por um lado, as operações do tipo Lava Jato tiveram e têm certa autonomia, e não são simples criaturas da direita. Mas é também evidente que sua atuação – em si mesma positiva, pois se impunha uma ofensiva contra a corrupção endêmica da política brasileira – não foi simétrica. Isso ficou claro no episódio da condução coercitiva de Lula, levado a depor “debaixo de vara”. E novamente durante o processo contra o ex-presidente, contra Dilma, os ex-ministros Aloizio Mercadante e José Eduardo Cardozo, por suposto “entrave à Justiça”, ao pretenderem a nomeação de Lula como ministro. A assimetria está também – e aqui não se trata de assimetria no comportamento de um único juiz, mas de diferentes juízes e instâncias judiciárias – na lentidão com que a Justiça se ocupa dos processos em que estão envolvidos políticos da direita, inclusive do PSDB. Apoiada por um movimento de massas com base nos setores mais reacionários da classe média, um pouco no estilo da famosa “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” de 1964, a direita obteve a denúncia de Dilma por parte da Câmara dos Deputados, denúncia em que o seu muito corrupto presidente, Eduardo Cunha, teve um papel relevante.

Durante algum tempo, Cunha negociou a aceitação do documento pela Câmara: tratava-se de obter, em troca, a garantia da sua própria impunidade. Feitos os cálculos – e tudo isso de forma visível, sem que o protagonista se mascarasse –, ele acabou aceitando o pedido como retaliação a uma decisão da bancada do PT, de não apoiá-lo na Comissão de Ética. O documento foi submetido à Câmara e depois aprovado, numa reunião ruidosa e folclórica. O processo, já duvidoso no seu conteúdo, foi visivelmente viciado em termos morais e políticos, senão jurídicos, pela forma em que foi encaminhado.

 

O impeachment é decisão excepcional, excepcionalíssima mesmo, que exige nada menos do que atos que “atentem” contra a Constituição. Os atos que praticou Dilma, regulares ou irregulares, têm muito mais cara de “manobras contábeis” – praticadas, ademais, por muitos outros titulares de cargos no Executivo – do que de “atentados” à Constituição. E o resultado do processo tem algo de escandaloso. Em nome da lisura administrativa, substitui-se Dilma por Michel Temer, assim como, no plano partidário, sai o PT e entra o PMDB. Afinal, quem é mais suspeito em tudo isso?

Parece não haver dúvida de que o processo foi mais uma manobra política do que o cumprimento de uma exigência de ordem jurídica. Foi, aliás, o que percebeu a imprensa do mundo inteiro, pelo menos toda imprensa suficientemente crítica. Manobra política para derrubar um presidente da República sem base jurídica suficiente deve ser chamada de golpe – ainda que golpe brando, jurídico ou o que for. Essa parece ser, cada vez mais, a forma moderna dos golpes. A caneta em vez do tanque. Em lugar da mobilização do Exército, a instrumentalização do Poder Judiciário, que vem a ser sacralizado. Processos desse tipo se constroem em três “momentos”: enquadramentos jurídicos duvidosos e arbitrários; formalismo, em que se abstraem as circunstâncias; e sacralização da “Justiça”. Talvez se possa acrescentar, no caso, uma circunstância não decisiva, mas que também pesa. Se uma maioria esmagadora da população fosse favorável a esse desfecho, a decisão ainda assim não se justificaria, mas a gravidade do caso estaria, certamente, atenuada. Ora, o que se fez foi algo muito sério: votar um impeachment juridicamente arquiduvidoso diante de uma opinião pública dividida. Como disseram alguns, produziu-se uma ferida que não fechará tão cedo.

 

UM PROGRAMA

Diante de tudo isso, diante da crise da esquerda, inclusive das ilusões alimentadas por muitos dentro dela, e do avanço prático e ideológico da direita, impõe-se a pergunta clássica. Pergunta que foi formulada não apenas por um líder bolchevique bem conhecido e que aprecio pouco, Lênin, mas muitas outras vezes, antes e depois dele, por gente politicamente muito diversa. Que fazer?

A esquerda brasileira precisaria, antes de mais nada, de um outro tipo de discurso. Algo que se poderia definir como um discurso de verdade. Até aqui, essa esquerda vem marcada por um estilo profundamente religioso. Temos um sistema de crenças que nada pode abalar – nem a realidade. Há gente de esquerda que duvida do mais óbvio, com o que revela um medo/pânico de enfrentar o real. No mesmo sentido, há textos sagrados e santos. A retórica faz pendant à religião. De fato, como que se impôs a ideia nefasta de que o discurso político é de ordem retórica, e de que, portanto, não é necessário ter maiores preocupações com a verdade ao falar de política. O importante seria combater o adversário, como se fosse possível levar adiante esse combate sem respeito pela verdade.

Apesar de todas as reservas que sempre tive diante da inflação do valor atribuído ao pensador italiano Antonio Gramsci nos meios de esquerda do Brasil – creio que ele não nos ajuda a compreender o que foi o totalitarismo de esquerda, nem a criticá-lo –, há que reconhecer que, apesar de tudo, a ideia de hegemonia é muito atual – e útil. Eu a tomo despojada das implicações políticas e filosóficas que tinha em Gramsci: tomo-a simplesmente como significando a exigência de ganhar para a nossa perspectiva, por meios que seriam essencialmente racionais, o apoio de amplas camadas da população. Dir-se-á que a política não se resolve pela razão, mas pelas paixões. Claro que sem os afetos não pode haver ação política nem mobilização. Entretanto, é essencial que o afeto surja sobre o pano de fundo de um discurso tão objetivo e comprometido com a verdade quanto possível. É evidente que a fala política não pode ser 100% racional. Mas que se tivesse 80% ou 90% de racionalidade, e 10% de retórica, já seria muito bom. Hoje eu diria que, em muitos casos, tem-se a relação inversa.

No plano propriamente substantivo, ou programático, a esquerda deve, em primeiro lugar, ter um projeto clara e explicitamente antitotalitário e também antiautoritário – isto é, propor um programa intransigentemente democrático. Frequentemente nos meios de esquerda, e mais ainda de extrema esquerda, fala-se mal da “democracia representativa”. Quando se procede assim, a democracia é quase sempre associada ao capitalismo. Em forma bastante clássica, vê-se nela uma “expressão política” possível do capitalismo. Capitalismo e “democracia representativa” andariam juntos. Na realidade, quaisquer que sejam as insuficiências das formas democráticas vigentes, não há por que abandonar o projeto democrático e mesmo “democrático-representativo”. Formas de democracia direta ou participativa podem ser introduzidas – quando bem planejadas, elas podem significar um progresso. Ainda assim, e por várias razões – inclusive práticas –, é difícil supor que essas formas de participação direta possam substituir satisfatoriamente toda representação.

A democracia, como ideologia e como prática, pode, é bem verdade, servir ao capitalismo. Mas ela é sempre, ao mesmo tempo, uma arma muito perigosa para os poderes dominantes. Pela simples razão de que, no fundo, menos do que exprimir o sistema econômico ou possibilitar a dominação de classes ou grupos de privilegiados, a democracia tem um impulso próprio e, nesse sentido, representa um vetor de oposição virtual a uma forma social em que predomina a desigualdade. Mesmo se deformada, a democracia tem como princípio a igualdade, e nesse sentido ela é virtualmente – e, sob certas condições, efetivamente – uma força de oposição ao capitalismo, já que o princípio deste é a desigualdade.

A rigor, as formas sociais ditas “capitalistas” são, de fato, “democrático-capitalistas”, denominação que deve ser lida como uma expressão contraditória. Essa designação rejeita tanto a caracterização liberal, que prefere dizer “democracia” simplesmente, como a alternativa marxista ou marxista ortodoxa, que prefere falar apenas em “capitalismo”. Ao contrário do que se poderia supor, desde que não se perca de vista a oposição que ele exprime, o nome que proponho não faz nenhuma concessão ao sistema. Ele diz melhor o objeto, precisamente porque enuncia a contradição que este encerra.

 

O projeto da esquerda deve ser, em segundo lugar, estranho a todo adesismo em relação ao sistema, a saber, deve se empenhar efetivamente numa política de caráter anticapitalista.

Que significa ser “anticapitalista”? Aqui o peso da tradição é grande, e cumpre ir além da versão hegemônica do marxismo no pensamento de esquerda no último século. Em primeiro lugar, ser anticapitalista não deve querer dizer ser contra o Estado, ainda que todo projeto legítimo de esquerda passe por uma crítica do Estado em sua forma atual. Também não se trata de visar à liquidação de toda propriedade privada. Pode-se dizer, inclusive, que não se pretende eliminar toda propriedade privada dos meios de produção, o que implica validar a existência de alguma forma de capital. No meu entender, o objetivo da esquerda deve ser a neutralização do capital. Nesse sentido, é o grande capital que se tem em mira. Mas não se pense que esse projeto é simplesmente “reformista”.

Por que é necessário insistir na ideia de “neutralizar o grande capital”? Por que insistir em submetê-lo ao controle de regras estritas, em limitar o poder dos grandes acionistas e mesmo a propriedade privada das grandes empresas? Simplesmente porque o acúmulo de capital em poucas mãos não tem justificativa. É injusto. E aqui enveredamos pelo caminho dos fundamentos, inevitável. Todo mundo ouviu falar na teoria da mais-valia de Marx, a ideia de que há uma diferença entre o que é pago ao trabalhador e aquilo que ele produz em termos de valor. Os economistas de direita caem em cima dessa teoria, denunciando-a como sendo pouco científica, quando não pura metafísica. Há muita confusão nessa crítica. Mas a verdade é que essa teoria encerra problemas reais. Marx a apresentou há mais ou menos 150 anos, e praticamente não se avançou nisso. A esquerda deveria jogar fora a teoria da mais-valia? Não digo isso. Mas precisaríamos modificá-la radicalmente, o que significaria, no limite, produzir uma nova crítica da economia política. Crítica que aproveitaria muita coisa do Capital de Marx, mas que também mudaria outras, mesmo no plano do núcleo da teoria. Não quero encher a cabeça do leitor com esse ponto, decerto muito técnico. Mas acho importante indicar pelo menos o caminho das pesquisas que venho fazendo. Há em Marx, junto com a teoria da mais-valia, um outro tema crítico, conexo, mas a meu ver separável, que é a ideia da impossibilidade de legitimar a posse do capital pelo trabalho do capitalista. Isto é, trata-se de mostrar que a posse do capital, e também da riqueza que vem do capital, não provém do trabalho do capitalista. E isso por uma dupla razão. Em primeiro lugar, porque o capital inicial de que dispõe o capitalista pode vir de muitas fontes: da herança, por exemplo; de resto, como se sabe, o mercado é um verdadeiro cassino, e a partir dele se pode adquirir muita coisa sem trabalho. Em segundo lugar, porque, mesmo supondo que o capital inicial do capitalista tenha vindo do seu trabalho, a riqueza que advém desse capital inicial como que se autonomiza do seu trabalho, e de certo modo de todo trabalho. Em última análise, essa riqueza nasce, na realidade, do próprio capital. Ou seja, a aquisição da riqueza por meio do capital não tem nenhum tipo de justificação ou legitimação (pelo trabalho do capitalista ou por outra via): o capitalista adquire mais capital porque já tem capital, ponto. Se a formulação precisa dos fundamentos dessa crítica está por ser feita, a desigualdade brutal que produz o capitalismo salta aos olhos, e não oferece dúvidas. Essa desigualdade é razão mais do que suficiente para que a crítica de seus fundamentos seja retomada em termos rigorosos.

Ao mesmo tempo, admita-se desde logo que não seria razoável esperar atingir esse objetivo a curto prazo. De imediato, o que devemos buscar é a sobrevivência ou a reimplantação de um Estado de bem-estar social – modelo de ação estatal que está ameaçado em toda parte, quando já não foi desmontado –, luta que já se faz no quadro de um enfrentamento com o capital. Que medidas poderiam nos levar na direção dos nossos objetivos? Em primeiro lugar, uma reforma tributária. A mídia repete de modo quase uníssono que o Brasil é recordista em termos de arrecadação de impostos. Diz-se que “se” paga demais ao governo. O problema é saber o que há por trás desse “se”. A boa pergunta não é a que pretende descobrir se no Brasil os impostos são altos ou não. A pergunta correta é a que diz: quem paga impostos demais no Brasil? Os ricos ou os “menos ricos”? Na realidade, as nossas alíquotas de imposto de renda são um verdadeiro escândalo. Uma modesta funcionária paga a mesma porcentagem que um banqueiro, isso quando o banqueiro paga. Do mesmo modo, o imposto sobre herança e transmissão de bens é também muito baixo. A acrescentar o grande problema da sonegação fiscal. No Brasil, embora tenha havido algum progresso, a sonegação continua sendo enorme. No plano internacional, deram-se alguns passos, mas os paraísos fiscais seguem funcionando.

A verdade é que o atual sistema tributário é uma máquina de transferência de renda para as classes favorecidas. A imprensa que se queixa dos laxismos no uso de dinheiro público não fala nada sobre esse mecanismo de desvio de recursos e acumulação de riqueza nas mãos dos mais ricos. É verdade que essa transferência se dá em observância da lei – tanto quanto é óbvio que há leis muito injustas e mesmo abusivas.

Um dos efeitos mais notáveis do avanço ideológico recente da direita foi a imposição da ideia, amplamente aceita, de que a privatização é sempre a melhor solução – de que, enfim, o demônio é o chamado “estatismo”, obstáculo ao desenvolvimento do chamado mercado “livre e sem entraves”, que se supõe sempre profícuo. Já não se trata nem de um dogma, mas de um verdadeiro mito. Mas quem disse que empresas cujo capital majoritário é estatal simplesmente não podem funcionar bem? Houve e há muitos exemplos disso, no Brasil e fora dele. Se não se trata de liquidar o setor privado, no programa que aqui se propõe, é de todo modo preferível que as grandes empresas tenham como acionista majoritário o Estado. A alternativa não é “monopólio versus empresa privada livre”, mas sim, quase sempre, “monopólio público versus monopólio ou oligopólio privado”. Critica-se a intervenção do Estado e a corrupção dos seus agentes. Mas a corrupção pode estar de um lado como do outro. E sobre o dinheiro e as decisões do Estado ao menos se pode ter algum poder: os agentes do Estado dependem direta ou indiretamente do voto popular. Quanto aos acionistas das empresas privadas, quem pode com eles?

 

Em terceiro lugar, no seu programa e na sua prática, a esquerda deve ser infensa a toda facilidade na administração dos bens públicos e na vida pública em geral. Em nome de que princípio se propõe essa recusa? Tal exigência vem do próprio caráter democrático do projeto. Sem dúvida, os melhores defensores da linhagem comunista, também eles, condenavam qualquer abuso dessa ordem. Isso porque supunham, com razão, que o uso de tais meios acabava comprometendo os fins visados. No contexto de um projeto democrático, o raciocínio vale a fortiori. O uso daqueles meios – a apropriação de renda e riquezas públicas – não apenas compromete a realização dos fins a que a esquerda se propõe, mas aqueles meios são imediatamente incompatíveis com os fins. Não pode haver democracia efetiva se o governo for corrupto. Uma coisa é incompatível com a outra. Um ideal republicano e democrático invalida imediatamente toda justificativa de práticas políticas lenientes ou desonestas.

Há pelo menos mais um princípio que ainda se deve acrescentar à exigência democrática, ao anticapitalismo e ao princípio de uma “governança sem corrupção”. Trata-se, evidentemente, de um programa ecológico. A ecologia não foi, durante muito tempo, propriamente uma bandeira da esquerda. A ideia difundida em certos meios de que Marx era um ecologista avant la lettre é, pelo menos, muito exagerada. Os temas ecológicos foram se impondo na segunda metade do século passado, à medida que as condições ambientais se deterioravam como resultado da atividade humana. Hoje, só uma minoria de fanáticos duvida da gravidade do problema ecológico. Bem entendido, não foi apenas o capitalismo que levou o mundo a essa situação – o chamado “comunismo” não ficou atrás em matéria de progressismo suicida. Porém, hoje, mesmo se o totalitarismo de esquerda não desapareceu – mas lá onde as suas marcas são mais visíveis, ele, precisamente, coexiste com um capitalismo selvagem –, é o capitalismo que comanda a corrida.

Assim, os fatos vão mostrando o quanto é difícil lutar pela preservação do meio ambiente enquanto não abandonarmos o universo da economia capitalista. E não se trata apenas de uma constatação. É muito difícil impor uma limitação da corrida produtivista no interior de um sistema cujo princípio é a busca ilimitada do lucro. Assim, se a democracia se revela incompatível com o capitalismo, também a ecologia não vai muito bem com ele. Nesse sentido, a incorporação dos problemas ambientais às lutas tradicionais da esquerda não deveria representar um problema.

Ocorre que as coisas não são tão simples. Mesmo se as energias renováveis parecem oferecer grandes possibilidades em termos de emprego e de “desenvolvimento sustentável”, há resistências contra a adoção de novas fontes energéticas. Sem dúvida, isso não se deve apenas à incompreensão do problema por parte das direções sindicais e partidárias. Se não se assegurar a reconversão dos postos de trabalho ligados às fontes de energia tradicionais – algo que deve ser feito –, a adoção de novas fontes energéticas pode de fato representar uma ameaça ao emprego. Mas tomadas essas precauções, que aliás não oferecem dificuldades intransponíveis, a médio e longo prazo o efeito dessa “conversão energética” deve ser precisamente o oposto. Cada vez mais fica evidente que a mudança da matriz energética é uma importante alavanca na luta contra o desemprego, e uma saída para a crise.

No Brasil, como em geral no Terceiro Mundo, a indiferença em relação às ameaças ao meio ambiente, assim como a desconfiança para com as lutas ecológicas, é muito forte em muitos meios de esquerda. Na realidade, os problemas são principalmente dois: o acúmulo de CO2 na atmosfera, que cria perturbações no clima, na fauna, nos oceanos etc. E o nuclear, que significa acúmulo de lixo atômico por milhares de anos, e a certeza de novas catástrofes. Esse último problema é também brasileiro, no sentido de que as usinas de Angra são obsoletas e perigosas, além do fato de que, mais do que ninguém, não precisamos disso, já que temos muitas fontes de energia limpa. Só muito lentamente essas questões vão sendo assimiladas. Também no que se refere à política posta em prática por partidos de esquerda no poder, não se pode dizer que até agora se tenha dado prova de uma consciência ecológica muito aguda. O governo Dilma Rousseff foi particularmente surdo a esse tipo de exigência, para não dizer mais. Basta falar no projeto da usina de Belo Monte, projeto ecologicamente desastroso e economicamente duvidoso. Também não houve uma verdadeira resistência à pressão do agronegócio e dos grandes interesses rurais que visavam desmontar a legislação de proteção à floresta. Enfim, o balanço dos anos Dilma Rousseff em termos de ecologia – como também a sua política indigenista – foi muito ruim, embora ela tenha tentado tomar algumas medidas corretivas no último momento – e apenas quando já era tarde demais.

 

O discurso tradicional da esquerda – em particular o discurso marxista – se fundava numa concepção excessivamente otimista do homem, algo aliás que os arautos da nova direita não cansam de repetir. Os rasgos negativos da espécie adviriam quase que pura e simplesmente do peso de maus sistemas sociais. Hoje, depois de Freud e de muitos outros – e também depois de muita experiência histórica –, é impossível comungar com o antigo otimismo, que poderia ser chamado de “humanista”. É ilusória a ideia de uma sociedade em que os homens apareceriam como que despojados de quase toda agressividade e violência. Mas isso não significa que a tese contrária, a dos chamados anti-humanistas, seja verdadeira. O homem não se define pelo egoísmo e pela violência. Mesmo se a fórmula parece banal, é preciso reafirmar que os humanos são capazes tanto do pior como do melhor. Seja como for, é preciso admitir, como já sugeria Kant, que há limites ao tipo de vida coletiva a que se pode aspirar.

O esboço programático que tracei, como talvez já se tenha notado, inverte a perspectiva marxista para o longo prazo. Para Marx, o objetivo era o comunismo, o que implicava o ideal de uma sociedade transparente, com a abolição do Estado e da propriedade privada. Tal objetivo, para o pensador alemão, não seria utópico. Ao contrário, a longo prazo nada seria mais realista. Utópico, diante da marcha da história, seria querer conservar alguma forma de mercado ou o Estado, mesmo se modificado, ou ainda a propriedade privada de bens de valor relativamente considerável – como a casa própria, por exemplo.

Na perspectiva pela qual optei, e que parece se impor à luz da experiência dos últimos 150 anos, tem-se o contrário. O comunismo e a sociedade transparente, sem Estado, é que passam a ser utópicos. E, pior do que utópicos, perigosos, porque o projeto contém germes totalitários. Inversamente, propõe-se, e não se vê utopia nisso, conservar o dinheiro e alguma forma de mercado, mais o Estado e a propriedade privada, ainda que não de todo tipo de bens. Não me parece absurdo crer na possibilidade histórica de um projeto como esse. De fato, se a ideia de uma sociedade transparente foi fazendo água do século XIX para cá, esse fracasso não significa que se deva aceitar a inevitabilidade da atual forma social dominante. É verdade que uma sociedade organizada nos termos que indiquei não se apresenta, de forma alguma, como uma necessidade histórica. Mas nada nos leva a supor que ela seja impossível.

A sociedade que temos em vista será bem menos transparente e sem dúvida menos solidária do que aquela com que Marx sonhava. Mas nada impede que seja bastante solidária; bem mais solidária, democrática e justa, de toda forma, do que a que temos hoje.[1]

[1] Agradeço a ajuda preciosa de Arthur Hussne Bernardo, Cícero Araújo, Leonardo da Hora Pereira e Luisa Lobo Fausto. Sem responsabilidade.