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    Com o que ganhou em quatro vendas de óvulos, Adriana viajou pelo mundo e fez uma lipoaspiração. Nunca viu a cara do filho que ajudou a gerar. Diz que a sua relação com ele é "puramente genética" FOTO: ALEX AND LAILA_STONE+_GETTY IMAGES

saúde & família

Toma que o óvulo é teu

Adriana, bem torneada e curvilínea, troca seus gametas por dólares

Roberto Kaz | Edição 9, Junho 2007

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Adriana Macagi é paulistana, tem 27 anos e mora em Los Angeles, na Califórnia. Com os olhos azuis e a pele bem clara, pontuada por sardas, ela joga nas costas o cabelo longo, castanho e cacheado. Adriana fez, há pouco, uma pequena lipoaspiração, que, se não a deixou com a silhueta esguia de uma modelo, realçou a bela aparência. No Brasil, foi aeromoça da TAM e, nos Estados Unidos, garçonete e gerente de um restaurante italiano. Nos últimos dois anos, além de trabalhar passou a vender seus óvulos. E, com isso, ganhou mais de 60 mil reais.

Ela se mudou para os Estados Unidos em 2003. Viveu ilegalmente até agosto do ano seguinte, quando se casou com um americano. Com os documentos em dia, quis doar sangue – o que já fazia em São Paulo, no Hospital Albert Einstein. Ao escrever no Google a palavra “donation”, topou com um recrutamento de doadoras de óvulos. Pagava-se, e não pouco, por essa “doação”. No início de 2005, ela se inscreveu numa companhia chamada The Egg Donor Program, criada por Shelley Smith, ela mesma mãe de um casal de gêmeos gerados de óvulos alheios.

Adriana diz que pensou em duas coisas, ao se alistar: nos 6 500 dólares que ganharia e, enfatiza, “na possibilidade de ajudar alguém”. Também foi cativada pelo tratamento que Shelley Smith dispensa às vendedoras de óvulos. Elas são sempre chamadas de “anjos”.

Shelley é uma ex-atriz de Hollywood, que trabalhou em filmes desconhecidos para TV, e apareceu três vezes na série “Ilha da Fantasia”. Em 1990, quando nasceram seus filhos, abandonou os estúdios para se dedicar à causa dos óvulos. Começou a trabalhar como agenciadora de doadoras (em inglês, egg broker). Um ano depois, passou a publicar anúncios em revistas femininas, oferecendo “oportunidade financeira e emocional extremamente recompensadora” a mulheres jovens, com boa ovulação. A propaganda teve retorno e Shelley abriu sua agência.

Na internet, a página inicial do The Egg Donor Program apresenta uma imagem angelical da sua proprietária. Vestida de branco, ela aparece com os cotovelos apoiados em uma mesa, as mãos juntas e o queixo repousando sobre os dedos entrelaçados. Num canto da página, que é dominada por uma grande fotografia de um lírio, lê-se a seguinte frase: “Veja nossas Doadoras-Anjo”. Lá estão retratos de garotas morenas, ruivas, loiras, orientais – todas de aparência saudável. Ao todo, a companhia conta com 250 doadoras, entre 21 e 29 anos. São parte de uma elite: só 10% das mulheres que se apresentam na empresa são aprovadas.

Para conseguir virar anjo, Adriana passou um dia na agência, fazendo testes psicológicos. Teve que levar fotos dela (atuais e de quando era criança), do pai, da mãe e do irmão. Terminado o processo, seu perfil foi posto no site.

A introdução mostrava uma foto dela de cabelos presos. Usava brincos, batom vermelho e uniforme de comissária de bordo. Um quadro indicava dados objetivos, como altura, peso, religião (ela é espírita) e instrução (completou o segundo grau). Em informações pessoais, Adriana citava algumas preferências, como livro (O livro dos espíritos, de Allan Kardec), filme (Regras da Vida; dirigido por Lasse Hallström, com base num romance de John Irving, o filme tem como tema a orfandade), cor (azul e rosa) e comida (chocolate e frutos do mar). Em estilo de vida, respondia qual era o trabalho atual, o anterior, o estado civil, se fumava e se bebia. No questionário sobre a saúde, as perguntas eram técnicas, para saber se houve algum caso de doença grave na família. No histórico genético, mais informações práticas, como a altura e a idade dos pais. Perguntavam-lhe também qual era sua memória mais antiga. “Meu pai me ensinando a contar”, respondeu. Pediam-lhe que descrevesse sua infância. Ela escreveu o seguinte: “Fui uma criança feliz, com muitos amigos. Morava em um edifício grande no Brasil, onde havia várias crianças com quem brincar – muitos ainda são meus amigos. Sempre fui boa aluna. Nunca quebrei um osso”.

Havia um tópico intitulado “nossos comentários”, onde a agência dava sua impressão da doadora: “Quando Adriana chegou ao nosso escritório, ficamos fascinados por sua beleza. Com um corpo torneado e curvilíneo, pudemos perceber que ela sabe se cuidar. Adriana foi comissária de bordo e está em dúvida se segue a carreira ou se faz trabalhos sociais. Além de atraente, os adjetivos saudável e natural são bons para descrever essa jovem serena e calma. Mesmo sem falar um inglês perfeito, nós pudemos sentir que esse ‘Anjo’ tem um coração carinhoso”.

 

Em outubro de 2005, Adriana foi selecionada por Julie, desenhista inglesa de 44 anos, e José, argentino de 38, professor de futebol. Tentavam engravidar havia quatro anos. Escolheram-na porque, fisicamente, Adriana lembra Julie. O casal encontrou Adriana pessoalmente, foi aprovada, e começou um processo burocrático que envolveu advogados e papelada abundante. Um documento indicava os exames iniciais a serem feitos pela doadora: sangue (para identificar doenças transmissíveis sexualmente), urina (para detectar o uso de drogas) e nível hormonal (para saber se os óvulos eram saudáveis). O documento dizia que o pai e a mãe “serão eternamente gratos a você e, quando olharem nos olhos da criança, se lembrarão do seu gesto de amor”. O parágrafo seguinte enfatizava que a agência deveria ser ressarcida caso a doadora desistisse no meio do tratamento.

O contrato principal tinha dezenove páginas. Ao assiná-lo, Adriana se comprometeu a abdicar de qualquer responsabilidade moral e legal em relação ao filho. Abriu mão também do direito de custódia e de visita. Comprometeu-se a não constar como a mãe biológica na certidão de nascimento e a se abster de relações sexuais durante o período de ovulação. Fixou-se o valor da doação da seguinte forma: 6 500 dólares para Adriana, 7 500 dólares para a agência, fora custos médicos, que podem chegar a 15 mil dólares. No ano passado, uma pesquisa publicada pela Sociedade Americana de Medicina Reprodutiva apontou que o preço médio pago para as setenta maiores agências é de 4 350 dólares. As moças recebem, em média, 5 200 dólares. Os óvulos custam mais nos estados ricos, como Nova York, do que, por exemplo, no Alabama. A Califórnia é o estado com os preços mais altos.

Tina Barbagallo, coordenadora do The Egg Donor Program e doadora sete vezes, conta que o valor pago pelos óvulos de Adriana é o que se paga “para uma doadora premier“. Ela explica: “Depende das qualificações. As jovens com boas notas, em boas universidades, são mais requisitadas, assim como as que têm habilidades atléticas e as que tiveram sucesso em doações anteriores. As garotas bonitas são, com freqüência, as mais escolhidas”. Tina conta que para uma moça “non-premier“, o valor do óvulo fica em cerca de 5 500 dólares.

Em novembro, Adriana começou a tomar pílulas anticoncepcionais, para sincronizar seu ciclo menstrual com o de Julie: ambas precisavam estar férteis ao mesmo tempo. Iniciou-se então o procedimento para estimular a ovulação. No primeiro dia, ela recebeu um buquê de rosas em casa, com um cartão de Shelley: “Obrigado mais uma vez por ser um anjo”. A frase, impressa; a assinatura, a mão.

Nas duas semanas que seguiram, Adriana se aplicou uma injeção diária de Lupron, na barriga, para prevenir a menstruação. Da segunda semana em diante, outra injeção, de hormônio folículo estimulante, foi aplicada nas nádegas. No dia da extração, Adriana foi internada às seis da manhã em uma clínica de Beverly Hills. Sedaram-na para fazer a cirurgia, que consiste em aspirar os óvulos diretamente dos ovários, com uma agulha bem fina. Normalmente, saem de quatro a dez óvulos, contra um único exemplar de uma menstruação não estimulada. Adriana produziu dezesseis óvulos. Quando acordou, o casal estava ao seu lado. De presente, lhe deram uma cesta de produtos de beleza. Ao chegar em casa, Adriana recebeu uma caixa do The Egg Donor Program. Dentro, o cheque, um colar, um vale de 100 dólares da American Express e outro, também de 100 dólares, do Spa Burke Williams, uma cadeia de massagens californiana. Os presentes se repetiriam nas doações futuras. Vez ou outra, o colar era trocado por um relógio de couro branco, dinamarquês.

Três dias depois, ocorreu a fertilização in vitro. Como Julie não tinha condições de engravidar, o embrião de Adriana foi implantado no útero de outra mulher (prática conhecida como barriga de aluguel), também agenciada por Shelley Smith. Duas semanas depois, Adriana recebeu uma carta da agência, informando que a gestação fora malsucedida.

Em fevereiro de 2006, a brasileira foi convocada a doar óvulos pela segunda vez. O casal, Jim e Carol, não fez questão de conhecê-la. À parte isso, o processo foi o mesmo: três semanas de injeções diárias, abstinência sexual, contrato, pagamento após a extração. Dessa vez, Adriana recebeu 8 mil dólares, valor estipulado pela agência. O “passe” de uma vendedora sobe à medida que aumenta o número de extrações de óvulos, pois se tem a garantia de que ela ovula bem. Adriana soube por um e-mail da agência que essa criança nasceu saudável. Nunca viu a cara do bebê. “Minha relação com a criança é puramente genética”, ela diz. “Nunca segurei ela no colo, nunca lhe dei de mamar. Esse filho é deles. Mas tenho curiosidade de ver a cara dele. Um dia peço uma foto para a agência.”

 

Meses depois, veio a terceira venda. Foi para uma ginecologista, solteira, de quem ela não se lembra o nome. Também não se conheceram. Adriana recebeu e-mail da agência dizendo que “estavam tentando negociar por 10 mil dólares”. Conseguiram. A gravidez não deu certo. De acordo com a Sociedade Americana de Medicina Reprodutiva, 43% dos casos são bem-sucedidos. Adriana diz que quando o filho não nasce, fica triste pelo casal, “mas não por mim”.

Em outubro, Julie e Jose tentaram engravidar pela segunda vez, e recorreram ao The Egg Donor Program. Como o casal já havia gasto muito dinheiro antes, Adriana perguntou à agência se a doação poderia ser, de fato, gratuita, como costumam ser as doações. (No universo da compra e venda de óvulos, evita-se termos como compra e venda: só se fala em “doação”.) A resposta foi negativa, e Adriana embolsou outros 6 500 dólares. A gravidez falhou novamente, mas o casal não desistiu. Agendou uma terceira tentativa para esse ano. Para Adriana, vai ser a quinta vez. Pretende chegar até a sétima. A partir daí, se torna perigoso, por conta da ingestão exagerada de hormônios, que pode resultar em câncer no ovário.

Pelas leis americanas Adriana não teria limites. Não há regulamentação nos Estados Unidos. A Sociedade Americana de Medicina Reprodutiva apenas sugere que não se ultrapasse as sete doações. Também aconselham que não se pague mais que 10 mil dólares por óvulos, o que nem sempre é respeitado. Julia Derek, escritora sueca radicada nos Estados Unidos, publicou, em 2004, o livro Confessions of a Serial Egg Donor (“Confissões de uma doadora de óvulos em série”), no qual relatou as doze vezes em que doou óvulos, quando estudava jornalismo em Washington. Para se convencer de que fazia algo correto, dizia que “não se tratava de doar uma criança, mas um óvulo, uma célula, como se estivesse dando a alguém um fio de cabelo”. Adriana também ressalta a vantagem genética da doação: “Quando você adota uma criança, é impossível saber se ela tem um histórico de doenças na família”.

Em 2006, Debora L. Spar, professora de administração em Harvard, publicou o livro The Baby Business (“O negócio dos bebês“). O livro mostra como os avanços na área da reprodução, somados ao desejo de milhões de pessoas inférteis (10% a 15% da população adulta mundial), resultou em um mercado internacional bilionário. A companhia de Shelley Smith já agenciou vendedoras de óvulos para casais de Hong Kong, Japão, Austrália, Canadá e Brasil. Segundo Tina Barbagallo, do The Egg Donor Program, 30% dos seus clientes vêm de outros países.

A doação de óvulos responde por uma fatia pequena do mercado do “negócio de bebês”. Em 2004, estima-se que tenha movimentado cerca de 37 milhões de dólares nos Estados Unidos. Já as clínicas de reprodução assistida movimentaram mais que 1 bilhão de dólares. São proibidas as vendas de órgãos, mas não existe obstáculo para doações remuneradas de esperma e de sangue, que são renováveis. Os óvulos não se multiplicam (a mulher nasce com todos formados, entre 300 mil e 400 mil, e, durante a vida, amadurece e expele cerca de 400), mas como o excedente é muito grande, a legislação americana não contempla a sua comercialização. O pagamento se refere, em tese, ao tempo perdido e às inconveniências médicas passadas pela “doadora”.

 

A doação de óvulos de verdade, gratuita, é permitida na maioria dos países ocidentais. No Brasil, não há lei reguladora. Apenas uma resolução (a de nº 1 358/92), publicada, em 1992, pelo Conselho Federal de Medicina. Define os seguintes pontos: “A doação nunca terá caráter lucrativo ou comercial; obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas; a escolha dos doadores é de responsabilidade da unidade”. Se uma clínica desrespeita essas normas, ela pode ser advertida, mas não punida. O que costuma acontecer é a “doação compartilhada”, que envolve dois casais com dificuldades distintas de engravidar. Em um deles o homem é infértil; no outro, a mulher não tem óvulos saudáveis. A solução, para ambos os casos, é a fertilização in vitro. Acontece, então, um intercâmbio: o primeiro casal doa alguns óvulos e recebe, em troca, o pagamento para a sua inseminação (o custo fica entre 10 mil e 20 mil reais por tentativa). Ou seja, o casal que precisa de óvulos paga por dois tratamentos. Como as possíveis doadoras só aparecem à medida que querem engravidar, a fila para quem espera é grande. Vai de três meses a dois anos.

 

Ao contrário do sêmen, óvulos congelados não oferecem resultado satisfatório (apenas 2% das tentativas). A presença da produtora de óvulos é essencial, para que eles possam ser inoculados em seguida numa outra mulher. Segundo Lyne Macklin-Fife, diretora da agência Egg Donation Inc (uma das maiores dos Estados Unidos), o Huntington Centro de Medicina Reprodutiva, em São Paulo, chegou a usar uma “doadora” três vezes. A prática foi interrompida há quatro anos. O site da Huntington diz que a “a importação de sêmen ou óvulos congelados não é permitida pela lei brasileira”.

No Rio de Janeiro, a Huntington possui uma pequena unidade no bairro de Ipanema, dirigida por Isaac Moise Yadid. Numa sala da clínica, rodeado por fotos de bebês, ele nega que tenha havido casos desse tipo na Huntington, mas diz não ver crime em comércio de gametas. “Qual é o problema de uma pessoa ser ajudada por algo que a outra descarta todo mês?”, ele pergunta. “Tenho pacientes indignadas com a falta de doadoras. Elas passam pela avenida Atlântica de noite e vêem duas ou três garotas que se encaixam com o seu biotipo. Quanto essas garotas ganham por programa? Cem reais? Com uma doação, elas se sustentariam por mais de um mês.”

Eduardo Pandolfi Passos é presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida. Para ele, a doação remunerada é e deve continuar sendo exclusividade americana. “Eles têm o costume de viabilizar ganhos com as situações mais variadas. Não acho salutar que se comercialize material biológico”, diz. José Roberto Goldim, professor de bioética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, critica o mesmo ponto: “No caso da doação compartilhada, as duas pessoas têm a necessidade de engravidar. No modelo americano, uma das partes se torna apenas fornecedora. Ela corre riscos biológicos para receber benefícios financeiros. É uma lógica perversa, que coisifica o ser humano”. Goldim diz que a doação nos Estados Unidos vende o ideal do produto perfeito: “Eles sugerem que a doadora bonita e sem histórico de doença na família vai gerar filhos saudáveis, como se isso fosse um atestado de qualidade industrial. Mas e o acaso? É impossível haver um certificado completo sobre uma célula”. Maria do Carmo Borges de Souza, vice-presidente da Rede Latino-Americana de Reprodução Assistida, diz que a doação remunerada nunca poderia ser empregada no Brasil: “Em um país com diferenças sociais tão grandes, quem seriam as doadoras?”. Ela reconhece, no entanto, que as filas de espera por um óvulo são grandes. Nunca viu uma doação voluntária.

Já Debora L. Spar ainda acha a doação remunerada a solução mais prática para diminuir a lista de espera de casais inférteis. No seu livro, ela sustenta que “enquanto a doação continuasse puramente altruística, sofreríamos com a escassez de voluntárias. Por que uma mulher jovem e saudável se colocaria em risco para ajudar uma pessoa infértil a quem ela não conhece? Simplesmente não havia outra maneira de aproximar a oferta da demanda”.

Adriana não está preocupada com essas questões. Com o que ganhou em quatro vendas de óvulos, deixou o emprego e fez uma porção de viagens. Passou dez dias pelo Japão e dois meses perambulando pelo Peru, Chile e Bolívia. Em março, esteve em São Paulo, para visitar os amigos. O dinheiro ainda deu, no mês seguinte, para ir à Europa, e percorrer Inglaterra, Portugal, Espanha e Irlanda. No mês passado, esteve em São Paulo de novo, para fazer a lipoaspiração. Com vendas futuras, pretende comprar um carro – automático, especifica. São coisas que dificilmente faria com os 1 800 dólares mensais que ganhava como gerente de uma das unidades da cadeia de restaurantes The Olive Garden. O prazer em viajar faz com que Adriana tenha uma certeza: não espera ter filhos tão cedo.