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    O tenente Luiz Thomaz Reis, diretor de Os Sertões, rodeado por indígenas FOTO: REPRODUÇÃO

questões cinematográficas

O cinema brasileiro no Carnegie Hall (III)

As descobertas do tenente Luiz Thomaz Reis sobre o mercado cinematográfico americano e sua busca por uma produtora para Os Sertões

Eduardo Escorel | 30 nov 2017_20h14
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Conquistada a cumplicidade de Theodore Roosevelt no lançamento de Os Sertões, além das providências que o tenente Luiz Thomaz Reis já tomara enquanto esperava por seu encontro com o ex-presidente, havia ainda inúmeras outras medidas a serem tomadas antes do dia da pré-estreia.  

Depois de liberar o filme na alfândega, e de fazer o pedido de copyright, Reis procurou se informar sobre as condições do mercado exibidor. Dedicou-se a essa tarefa gastando, nas suas próprias palavras, “algum dinheiro com pessoas do ofício, convidando-as para comidas e bebidas”. Nessas conversas, aprendeu que os Estados Unidos eram (como continuam a ser) “o maior mercado de produção e exportação de filmes do mundo” e que “a importação é muito diminuta, havendo uma quase prevenção para com os filmes de procedência estrangeira. Estes estão ali reduzidos aos assuntos não teatrais, que aqui [no Brasil] chamamos filmes ‘do natural’, conhecidos ali [nos Estados Unidos] pelo nome de educational films.”

Para Reis foi uma surpresa saber que “a exploração de um filme deve ser precedida de uma chuva de anúncios nas revistas do gênero” e, além disso, de “reclames destacados em que se agrupam muitas cenas de um filme […]”. O número de músicos necessários nos cinemas era maior do que nos teatros por que “é necessário preencher o vazio do filme silencioso”. Por se considerar que apenas o filme “seria monótono, aumentam as duas horas de função com alguns números de cançonetas, concertistas, danças especiais e outros números de café-concerto. Ninguém na América”, assinala Reis, “se iria divertir em casas como as nossas [brasileiras], numa sala tão pequena, sem ar, com seis músicos de orquestra, cadeiras tão duras e estreitas”.

Reis ficou deslumbrado com os cinemas de Nova York, comparáveis, para ele, “em conforto ao nosso Teatro Municipal”. Salas grandes, com plateia e balcão, “bem arejadas com ar frio e quente, todas as poltronas estofadas com couro ou veludo no inverno e cobertas de linho durante o verão. […] A orquestra de 75 músicos executa em combinação com um grande órgão um programa ensaiado pela manhã e destinado a interpretar o filme do dia, acompanhando todos os filmes da função. Os hinos aliados são tocados no fim dos entreatos e todo o povo aplaude as principais cenas do filme quando este agrada. A ordem é mantida nas plateias exclusivamente por moças empregadas [encarregadas?] cada uma de um certo número de cadeiras. A água é servida em copinhos de cartão duro que são inutilizados uma vez servidos, a fim de evitar a tísica, além de outros meios com o mesmo fim empregados ao lado de uma pesada multa superior a 500 dólares (cerca de 8 167 dólares, hoje) para os transgressores”.

Das empresas produtoras com as quais entrou em contato – Fox Film, Vitagraph e Metro –, Reis ouviu que não podiam “se ocupar de filmes diferentes do gênero que trabalhavam os seus estúdios, isto é, dramas e comédias”. A única companhia a se interessar foi a U. Interocean, que não era nem distribuidora, nem produtora, mas uma “espécie de intermediária entre os produtores americanos e os países estrangeiros ou melhor comissionários de filmes para os outros países”. A Interocean não se propunha a comprar direitos, “fazendo apenas negócios de percentagem”.

Até o encontro com Roosevelt, que acabou só ocorrendo um mês depois de sua chegada a Nova York, Reis suspendeu novos contatos com produtoras, distribuidoras ou intermediários. No final de abril, soube pela secretária do ex-presidente que ele havia marcado a conferência sobre “o assunto do Coronel Rondon”, a ser realizada sob os auspícios “da Sociedade Americana de Geografia no grande palco do Carnegie Hall a 15 de maio”.

Na noite do mesmo dia em que a conferência de Roosevelt foi confirmada, Reis organizou uma projeção de Os Sertões para Isaiah Bowman, diretor da Sociedade Americana de Geografia, criada em 1851. Até essa sessão, ninguém havia assistido ao filme nos Estados Unidos.

Os desacertos ocorridos foram consideráveis – faltaram bobinas, o projecionista estava cansado, o filme era longo, “enfim a projeção não primou em apresentar um bom trabalho, tendo impressionado mal mesmo a mim”, escreve Reis. Bowman, por sua vez, recomendou que o filme fosse mostrado quanto antes “ao censor a fim de evitar algum desgosto derivado da nudez dos índios”. Além disso, disse que a duração, o desenrolar e as legendas de Os Sertões eram “muito inadequados para um assunto daquele gênero” e deveriam “ser feitos com outra redação, mais a gosto dos americanos”.

No dia seguinte, também à noite, o filme foi exibido para os três membros da repartição de Censura. Por ser “um filme especial a ser apresentado em conferência de Roosevelt”, porém, toda a diretoria da Censura compareceu à sessão. Prevenido, de um dia para o seguinte, Reis reduzira a duração de Os Sertões, eliminando “certos pedaços que não faziam parte do programa e removendo o salto Iguaçu a fim de não prejudicar a matéria propriamente interessante”.

Outras precauções de Reis foram providenciar bobinas de 400 metros e rebobinar todo o filme com antecedência “para não depender da boa vontade dos tais operadores judeus [sic] que pouco se importam se a projeção é ou não bem-feita”.

O parecer da Censura foi “simpático”, referindo-se ao filme como “um belo documento” sem indicar “inconveniente algum em ser apresentado em uma conferência onde previamente se sabia a natureza do assunto. Fazia restrições, no entanto, para o público, pedindo para serem cortadas as peças onde apareciam em plano muito próximo da lente os índios em nudez completa […]”.

A determinação da Censura pareceu “muito natural” a Reis e, segundo seu relatório, “nada influía no valor do filme”, embora mesmo feitos os cortes “alguns interessados”, aos quais também mostrou Os Sertões, “duvidaram […] que o público se conformasse, os americanos em geral sendo muito particulares sob o ponto de vista de cenas de nu mesmo daquele gênero nos cinemas”.

As legendas viriam a ser refeitas com ajuda da jornalista Lilian Elwyn Elliott, autora de Brazil Today and Tomorrow, publicado em 1917, a quem Reis pediu que fossem redigidas “ao gosto” do “caráter americano” e de suas “inclinações” , assim como de acordo com o “nosso [dos responsáveis pelo filme] ponto de vista, aliança que não me parecia”, escreve Reis, “muito fácil de realizar”.

Empenhado em lançar Os Sertões comercialmente nos Estados Unidos, Reis exibiu o filme, em seguida, ao diretor e ao gerente da Interocean, Paul Cromelin e Mr. Brock, respectivamente. Elliott também esteve presente nessa sessão, tendo manifestado “palavras de entusiástica admiração pelas cenas que se iam sucedendo”. Em carta para Reis enviada depois da projeção, Cromelin declara “serem possíveis os negócios com a película, e que ele se punha” à disposição para agir como o fiscal dos produtores “nos Estados Unidos e nos países estrangeiros, garantindo a divisão dos lucros brutos depois de descontadas as despesas de impressão das diversas cópias necessárias ao exchange e a mais descontada também a quota de anúncios, advertisements”. Ficou de mandar “a relação de todos os lucros arrecadados de sorte que nós não tínhamos mais que esperar sem nenhuma participação ou providência mais”.

Deixando essas negociações de lado, momentaneamente, Reis passou a cuidar das novas legendas com as quais Os Sertões seria exibido no Carnegie Hall, em 15 de maio, após a conferência de Theodore Roosevelt. (cont.)

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Nota: A fonte do relato acima é o relatório da viagem aos Estados Unidos, escrito pelo então tenente Luiz Thomaz Reis e apresentado, em dezembro de 1918, ao capitão Amílcar Armando Botelho de Magalhães, chefe do Escritório Central da Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas, reproduzido nos anexos de Viagem ao Cinema Silencioso do Brasil, Samuel Paiva & Sheila Schvarzman (orgs.). Rio de Janeiro: Azougue, 2011.

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Leia a primeira e a segunda partes do texto

 

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