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    Documentário acompanha rotina de órfão em zona de guerra na fronteira leste da Ucrânia. FOTO: DIVULGAÇÃO

questões cinematográficas

O Distante Latido dos Cães – apelo à boa consciência

Melhor documentário internacional no É Tudo Verdade mostra rotina de menino órfão em zona de guerra entre governo e separatistas na Ucrânia

Eduardo Escorel | 03 maio 2018_14h05
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Premiado como Melhor Documentário da Competição Internacional no 23º Festival É Tudo Verdade, encerrado há doze dias, O Distante Latido dos Cães é uma produção multinacional dinamarquesa, sueca e finlandesa, realizada com apoio também do Sundance Institute e de fundações da Noruega, Grã-Bretanha, Estados Unidos e União Europeia.

Dirigido pelo dinamarquês Simon Lereng Wilmont, o filme acompanha o dia a dia de Oleg, menino de 10 anos, órfão de mãe, que vive com sua avó, Alexandra, em Hnutove, pequena vila na fronteira leste da Ucrânia que, em 2011, tinha 699 habitantes. Embora estejam a apenas uma milha da frente de batalha em curso, Alexandra não cogita ir embora – “Todo cachorro é um leão na sua própria casa”, como se costuma dizer na Ucrânia, ela explica.

O conflito armado entre o governo e separatistas pró-russos, iniciado na primavera de 2014 na região de Donbass (bacia do rio Donets), acabou se concentrando ali, às margens do Kalmius. A recusa em partir, derivada do sentimento de pertencer a um lugar considerado seu, diferencia o pequeno núcleo familiar de O Distante Latido dos Cães – emigrar e se tornarem refugiados não é considerado opção válida para Alexandra.

Filmes sobre crianças órfãs só deveriam ser aceitos em festivais para participar fora de competição. Ainda mais quando elas vivem tão perto quanto Oleg de uma zona de guerra e o som ambiente diário são explosões e tiros de artilharia antiaérea cujos rastros luminosos cruzam o céu. Se essas circunstâncias não bastassem, no caso de O Distante Latido dos Cães, o menino Oleg Afanasyev ainda por cima tem atuação primorosa, mesmo sem ser ator, assim como os demais participantes, infantis ou não, em especial sua avó, Alexandra Goryachkina.

Com esse conjunto de atributos, ao quais caberia acrescentar um plano de Oleg contemplando o pôr do sol, dificilmente O Distante Latido dos Cães deixaria de sensibilizar o coração de qualquer júri, inclusive o do É Tudo Verdade deste ano, formado por Alfredo Mora Manzano, Pamela Yates e Renata de Almeida.

Além de investir em personagens e situações que apelam aos bons sentimentos do espectador, Wilmont incorpora em O Distante Latido dos Cães procedimento próprio do cinema ficcional – salvo um ou dois olhares furtivos para a câmera que creio ter percebido, a presença do diretor e da equipe técnica é ignorada pelos participantes das cenas. O jogo gravado tem regras rígidas, aceitas por todos, mas definidas por Wilmont, o que deixa claro a hierarquia existente e quem detém o poder durante a realização do filme.

Uma vez estabelecido esse princípio, fica excluída qualquer possibilidade de interação entre quem grava e quem é gravado, na tentativa, bem-sucedida, aliás, de criar uma impressão de autenticidade, como se tudo estivesse acontecendo de forma espontânea, sem quaisquer ditames para atender conveniências da gravação. Busca-se dessa maneira incorporar ao documentário o poder ilusório próprio da ficção, fazendo o que for preciso para dar ao espectador a sensação de estar assistindo à reprodução da realidade. Esses artifícios narrativos ficcionais são acentuados, em O Distante Latido dos Cães, pela narração em off sob medida, mesmo parcimoniosa, de Alexandra.

A vida segue seu curso, apesar da proximidade do conflito. Há lenha para cortar, visitas ao túmulo da mãe de Oleg, pescaria e banho de rio, canções de ninar, escola etc. Mas a guerra, além de sonora e visual, está presente também de outras formas, desde brincadeiras agressivas (garrafas de vidro destruídas com estilingue, brigas com e sem travesseiros…), até simulações de exercícios de proteção contra bombardeios na escola e balas de fuzil e minas encontradas pelo chão.

Nesse contexto não surpreende que Oleg, ainda criança, mesmo tendo sido ferido no pé por uma bala que ricocheteou durante uma brincadeira, tenha acesso a uma arma, aprenda a atirar e mate um sapo. Menos compreensível é sua avó, parecendo ser porta-voz de alguma organização anti-armamentista (ou do diretor do filme), dizer ao neto para “nunca mais fazer isso” porque “mais tarde você pode ser tentado a pegar uma arma verdadeira na mão” – afirmação que merece destaque dada sua redundância.

Como estarão Alexandra e Oleg, hoje? Em novembro do ano passado, apesar do acordo de cessar-fogo, combates diários prosseguiam. Oleg terá deixado de ficar sobressaltado quando ouve tiros e explosões enquanto está comendo? É pouco provável.

Para concluir, lembro que a região de Donbass, onde a guerra entre o governo da Ucrânia e separatistas pró-russos começou em 2014, tem um antecedente cinematográfico ilustre, que creio ter ficado sem registro nos comentários feitos a propósito de O Distante Latido dos Cães.

Foi em Donbass que Dziga Vertov, usando equipamento de gravação portátil, fez em 1930 Entusiasmo (Sinfonia da Donbass), seu primeiro filme sonoro. O projeto original, segundo Jay Leyda (Kino – A History of the Russian and Soviet Film, 1960), teria sido “mostrar como os mineiros da bacia de carvão do Donets pretendiam e eram capazes de cumprir em quatro anos sua meta no Primeiro Plano Quinquenal” de desenvolvimento econômico da União Soviética (1928-1932).

Duramente criticado na época, como ocorrera também com O Homem com a Câmera de Filmar, filme anterior de Vertov, Entusiasmo (Sinfonia da Donbass) chega a ser considerado hoje uma “obra-prima dos primórdios do cinema sonoro e da vanguarda soviética”, “notável” e “inspirador para muitos experimentadores posteriores” (como consta na contracapa e no folheto do DVD editado pela filmmuseum, reunião de instituições culturais e arquivos de filmes dos países europeus de língua alemã).

Graças à restauração da filmmuseum, Entusiasmo (Sinfonia da Donbass) está disponível em excelentes condições para ser reavaliado. Visto hoje, nem a beleza das imagens, nem a destreza da montagem e trucagens, nem o pioneirismo da polifonia sonora composta de música, ruídos, sons ambientes, declarações e discursos tanto em som direto quanto em off – nada disso se sobrepõem ao fracassado propósito persuasivo do filme. O drama, para não dizer a tragédia, de Vertov foi ter sido um propagandista sincero, mas rejeitado, do estado soviético, fiel até o início da década de 30 ao seu próprio projeto formal inovador.

Wilmont, por sua vez, tendo propósitos mais modestos, parece antes de tudo dirigir O Distante Latido dos Cães à boa consciência de europeus e americanos.

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