Operação limpeza

Era uma manhã de julho de 2015 e agentes da Polícia Federal acabavam de deixar o apartamento funcional do senador Fernando Collor de Mello, em Brasília, quando funcionários do Senado tentaram barrar a passagem dos policiais sob a esdrúxula alegação de estar protegendo o parlamentar. A confusão demorou um tempo e só se resolveu quando uma delegada presente ameaçou os servidores com voz de prisão.

O apartamento de Collor era alvo de uma ação de busca e apreensão da Lava Jato na fase Politeia, a primeira a atingir suspeitos com foro privilegiado – como ele. Os funcionários do Senado, na verdade, eram da Polícia Legislativa e estavam ali para uma segunda varredura: queriam saber se os policiais haviam deixado grampos pela casa ou escutas que pudessem flagrar, no ambiente ou pelo telefone, qualquer conversa de Collor.

Na prática, tratava-se de ação de contraespionagem para evitar que a operação reunisse mais elementos contra ele. Não era a primeira vez que os policiais do Senado se prestavam a tal ação. Já haviam feito o mesmo na casa da senadora e hoje presidente do Partido dos Trabalhadores, Gleisi Hoffmann, e dos também senadores José Sarney e Lobão Filho, ambos do PMDB – quase todos à época envolvidos em suspeitas de corrupção ou obstrução à Justiça. No caso de Lobão Filho, o investigado era seu pai.

A revista da trupe do Senado durou cerca de sete horas. Vasculharam cada cômodo do apartamento com maletas antigrampo Oscor e Talam, que emitem uma frequência de rádio e, a partir do encontro dos sinais, identificam outros aparelhos emissores – como num jogo de “quente” ou “frio”, como se diz no jargão policial. Nada foi encontrado.

Do apartamento de Collor, os quatro policiais legislativos – Pedro Ricardo Araújo Carvalho, o “Pedrão”, diretor da Polícia do Senado, Antônio Tavares dos Santos Neto, Everton Elias Ferreira Taborda e Geraldo César de Deus Oliveira – seguiram para a Casa da Dinda, ocupada por ele enquanto era presidente do país, entre 1990 e 1992. Ali, a Polícia Federal havia apreendido três carros de luxo do senador. Na nova ação antigrampo, os policiais legislativos adicionaram à ação das maletas um árduo trabalho braçal: reviraram móveis em busca de pontos eletrônicos que podem ser colados em cima de um parafuso, procuraram adesivos com escutas perto de computadores e telefones, vasculharam fios, tomadas, as mesas, botões de tevê e interruptores. Como a casa era grande, o grupo recebeu reforço do pessoal de apoio e viaturas. No retorno, um deles ainda comentou: “Isso não vai dar certo.” “Se vai, vai dar para pelo menos dezoito pessoas…”, respondeu um colega – segundo uma fonte do Senado ouvida pela piauí.

Os servidores da Polícia do Senado permaneceram na mansão durante pelo menos quatro horas antes de darem o serviço por terminado. Novamente, tudo limpo, sem escutas que pudessem comprometer o senador.

Tanto a varredura no apartamento como na mansão foram justificadas como “Contramedidas de Vigilância Técnica”, expediente controverso previsto nas normas das Polícias Legislativas que serve para avaliar a segurança dos parlamentares. Não há clareza sobre a legalidade da medida fora das dependências do Congresso Nacional. Por via das dúvidas, no documento que autorizava a vigilância, não colocaram nem os endereços completos de Collor, nem o nome do político, como lembrou um servidor do legislativo. “Por causa do bate-boca entre os agentes da PF e os servidores no apartamento, sabíamos que era na casa do Collor. Mas, oficialmente, não aparecia quem seria o beneficiário”, afirmou, sob anonimato.

Tentativas de estancar a Lava Jato ocorrem desde o início da operação. Denunciado pela segunda vez pela Procuradoria-Geral da República, o próprio presidente Michel Temer é acusado por obstrução de investigações. Mas poucas vezes o modus operandi ficou tão claro quanto na ação destes quatro funcionários públicos, que acabaram pegos na operação Métis, deflagrada há onze meses para investigar ações contra a Lava Jato. Eles foram presos, mas liberados dias depois.

Eles fazem parte de um grupo de 678 seguranças armados e concursados, com altos salários, que atua como uma espécie de Polícia Militar interna, prevenindo delitos e fazendo prisões em flagrante. Mas também como Polícia Civil e Federal, investigando crimes, atuando até fora do Congresso e solicitando quebras de sigilo telefônico à Justiça. E, ainda fazendo as varreduras, com maletas antigrampo supostamente usadas para destruir ou retirar escutas ambientais eventualmente ordenadas por juízes, desembargadores e ministros de tribunais. O objetivo final, na atividade fim da Polícia Legislativa, deve ser sempre a segurança dos senadores e dos que circulam pelo Congresso. A interpretação é ampla.

Os autos da operação Métis dão mais pistas da forma como agiu a Polícia Legislativa sob o comando de Pedro Ricardo Araújo Carvalho, diretor da Polícia do Senado. Nos casos das varreduras feitas nas casas de Sarney, Hoffman e Lobão Filho foram usadas algumas das doze maletas antigrampo compradas pela Casa.

A operação Métis descobriu que as ações sempre contavam com a presença de um especialista em contraespionagem: Antônio Tavares Neto, policial do Senado, formado em física pela Universidade de Brasília. Era ele quem dominava as maletas, técnica aprendida na marra, apenas lendo o manual de instruções. Enquanto usava o equipamento, os demais servidores faziam a varredura “no braço”.

Mas o episódio com Collor despertou preocupações. O grupo antiespionagem precisava se especializar. Em 7 de agosto de 2015, Carvalho pediu para mandar Tavares e Geraldo César de Deus para um curso de aprimoramento em Cookeville, no Tennessee, nos Estados Unidos – pago pelos cofres públicos. Na justificativa da viagem, afirmou que as “medidas de contrainteligência” feitas com as maletas são “atividades essenciais na busca da garantia de funcionamento do Parlamento livre de ações indevidas de agentes externos”. O curso aconteceu em novembro daquele ano. Além disso, os servidores foram treinados por dois agentes da Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, o serviço secreto da Presidência da República.

A expertise adicional serviu para as varreduras posteriores àquela feita na casa de Collor. Em junho de 2016, o marido de Hoffmann, o ex-ministro do Planejamento do governo Lula Paulo Bernardo, fora preso pela PF na operação Custo Brasil. Foi nessa época que a senadora, ao saber que a Polícia do Senado poderia realizar esse tipo de serviço, pediu uma varredura em sua casa. Vários parlamentares sequer sabiam que o Senado tinha uma polícia – alguns chamavam-na apenas de seguranças –, que dirá uma ação contra escutas.

Ela fez o pedido por escrito em 5 de julho de 2016, segundo um relatório no Senado, para a ação em imóveis em Brasília e em Curitiba. Dias depois, a equipe separava as maletas para o novo serviço.

Na casa em Brasília, tudo foi feito rapidamente, pelo fácil deslocamento. Era preciso, porém, conseguir liberação da viagem da equipe para o Paraná, o que ocorreu em menos de uma semana: quatro funcionários da Casa foram despachados para Curitiba. Pegaram o avião: Tavares e Geraldo de Deus – que tinham feito o curso nos Estados Unidos – e mais dois colegas, Daniel Aguiar e Everaldo Bosco. Um deles, alertado por um colega sobre possíveis ilegalidades, não quis participar da ação.

A operação seguiu o mesmo roteiro: chegaram na residência, se apresentaram a porteiros e funcionários e ligaram as maletas em busca de sinais de radiofrequência. Ao mesmo tempo, vasculhavam os móveis e pontos de energia em locais próximos a aparelhos de telefonia fixa em busca de micropontos e adesivos suspeitos. Voltaram para Brasília e entregaram um relatório aos chefes.

Até hoje, não se tem notícia se foram encontradas escutas nos endereços vistoriados. O trabalho garantiu que os locais eram seguros, uma espécie de imóveis reservados a conversas sensíveis – “era uma blindagem deles”, avaliou um investigador da Polícia Federal.

Poucos dias antes da ação da PF contra Collor, os policiais do Senado receberam um pedido estranho. O ex-presidente da República José Sarney, que não era mais senador, queria uma varredura. O imóvel alvo era uma sala, espécie de escritório político usado por ele no edifício Office Tower, no Setor Hoteleiro Norte, em Brasília. A varredura foi rápida: “só” três horas, calculou um servidor.

O desenrolar da operação Métis mostrou mais operações de contraespionagem. Durante as eleições de 2014, os policiais legislativos foram atender, no Maranhão, um pedido do senador peemedebista Edison Lobão Filho, herdeiro do senador e ex-ministro de Minas e Energia investigado na Lava Jato. A ação aconteceu em 14 de julho em São Luís, no bairro Olho D’água, não na casa do senador, mas na de seu genro, Marcos Regada. “Era enorme, gigantesca”, disse um servidor do Senado à piauí. Era “suntuosa” e tinha um helicóptero, contou Geraldo de Deus, em depoimento à Polícia Federal.

As varreduras começaram no mesmo esquema “abre maleta-procura pontos-revira móveis”. Tavares e Geraldo estavam acompanhados de mais um colega. Ainda fizeram uma varredura no escritório de apoio do político, no bairro Quintas do Calhau, e em um terceiro endereço não identificado. A missão toda durou dois dias. Em um ofício enviado por Carvalho a Lobão Filho, o diretor da Polícia Legislativa comentou que o órgão comandado por ele já havia pedido à direção do Senado a compra de novos equipamentos para modernizar “as atribuições institucionais de contrainteligência”.

O genro do senador foi todos os dias ao hotel onde o trio estava hospedado para buscá-los e levá-los até os endereços indicados. E fez também turismo: os levou para conhecer pontos históricos de São Luís e ofereceu sua própria casa para que ficassem hospedados na próxima ocasião em que fossem à cidade. Regadas questionou ainda se os funcionários poderiam fazer o mesmo serviço “por fora” ou se haveria necessidade sempre de contatar o Senado. Procurado pela piauí, Regadas não quis responder às perguntas sobre sua relação com o ocorrido.

Os desdobramentos da Métis colocaram a atuação da Polícia Legislativa no centro das discussões. A operação, no entanto, está suspensa, aguardando uma decisão do Supremo Tribunal Federal sobre sua validade – a dúvida, levantada por um dos quatro servidores presos, é se o juiz Vallisney Oliveira, da 10ª Vara Federal de Brasília, tinha competência legal para autorizar uma investigação que poderia atingir senadores, que só podem ser investigados após aval do Supremo. A decisão sobre a continuidade ou não da operação está na mesa do ministro Edson Fachin. No mês passado, ele liberou o caso para ser julgado no plenário do Supremo.

O Senado ainda ajuizou outra ação no Supremo, desta vez para exigir, entre outras coisas, que ordens judiciais só sejam cumpridas na Câmara e no Senado com “autorização do presidente” da respectiva Casa. Buscas deveriam ser ratificada pelo Supremo e comunicadas à Polícia do Senado, que se responsabilizaria por manter o sigilo da operação e cumprir as ordens judiciais, ainda que a investigação seja da PF.

Ao Supremo, a Polícia Federal pediu o afastamento dos cargos dos quatro policiais legislativos por “intimidação de testemunhas”. Enquanto o Supremo não julga, todos continuam no cargo com salários que variam entre 16 mil e 30 mil reais. Tavares, Taborda e Geraldo César não foram localizados, e Carvalho não quis dar entrevista. O advogado de Carvalho, Luís Telesca, disse que ele e os outros servidores acusados de obstrução à Justiça apenas cumpriram ordens, atuando dentro das regras internas da Casa. “Se alguém tinha que ser investigado, como disse o Supremo, são os senadores”, afirmou.