minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

Novidades

Laurie Anderson – o principal evento da vida

Anderson ocupa lugar de destaque entre os artistas e cineastas que realmente tem algo a dizer

Eduardo Escorel | 18 ago 2016_12h15
A+ A- A

No final de março, em entrevista pelo telefone ao The Guardian, a multiartista Laurie Anderson disse diante do mar da Bahia que ele é “extraordinariamente bonito”. Em seguida, respondendo a uma pergunta sobre Coração de cachorro, declarou que é “um filme sobre empatia” – “empatia quase pura” da sua cachorra, a rat terrier Lolabelle; empatia que ela teria tentado “expressar [no filme] da melhor maneira” que era capaz.

Lou Reed, marido de Anderson, falecido em 2013, a cujo “magnífico espírito” ela dedica Coração de cachorro, pertencia, diz Anderson, à categoria de pessoas que têm afinidade com cachorros. Lolabelle era muito querida dele. Quando o veterinário lhes disse que “precisaria ser sacrificada por que para viver teria que ficar em uma tenda de oxigênio, Reed perguntou: onde se consegue uma tenda de oxigênio? E nós conseguimos uma no mesmo dia, e ela viveu mais um ano.” (entrevista disponível aqui)

Lou Reed, Laurie Anderson e Lolabelle
Lou Reed, Laurie Anderson e Lolabelle

A dúvida que fica é se prolongar a vida dessa maneira seria um benefício para a cachorra que está morrendo ou apenas uma forma de egoísmo, proporcionando auto-satisfação para os humanos que continuam vivos?

Coração de cachorro começa com a declaração de amor eterno a Lolabelle, feita por Anderson. Na entonação serena e cadência tranquila da sua própria voz, com pausas inesperadas no final de frases para enfatizar certas palavras, ela conta ter sonhado que pariu a pequena cachorra depois de ter “providenciado que fosse costurada” dentro do seu estômago. O filme mal começou (menos de três minutos se passaram com uma sequência de desenhos de Anderson) e isso tudo pode soar absurdo a quem não sabe a que extremos ela é capaz de chegar.

Exemplo: em uma noite gelada do início de janeiro deste ano, no auge do inverno novaiorquino, Anderson deu um concerto para cachorros, no Times Square, “tocando música composta – e reproduzida em frequência apropriada – para cães”. Segundo o repórter do The Guardian que teve a felicidade de testemunhar esse evento, “Anderson apareceu faltando quinze minutos para meia-noite e foi recebida por uivos dos humanos na plateia, e pouca reação dos cachorros. Usando jogging, tênis e parca, ela ocupou uma posição na base dos degraus da plataforma de Times Square onde os fãs dela tinham se reunido. Anderson pegou seu violino e o arco de fita, instrumento que ela inventou na década de 1970, e começou a tocar.

Através das caixas, a música mal era audível, dando impressão que alguém estava tocando um CD dentro de um sleeping bag. Foi assegurado à multidão, porém, que a frequência baixa tinha sido ajustada para o prazer dos cachorros. Fones de ouvido foram fornecidos para não-cachorros, através dos quais era possível ouvir o violino e os teclados de Anderson.

O show provocou uma reação imediata de Phoebe, cruza de border collie com pastor australiano, que trabalha de dia como cachorra terapêutica. Phoebe começou a latir alto enquanto a música fluía para dentro dos seus ouvidos. Não estava claro se isso era uma reação positiva.” (vale a pena ler a matéria completa, disponível aqui)

Diante disso, é preciso estar preparado, pois se pode esperar tudo, e mais um pouco, de Anderson. Ainda assim, quem não tem afinidade com cachorros só terá a perder se não der a devida atenção a Coração de cachorro e se recusar a levar Anderson a sério – ela ocupa lugar de destaque entre os artistas e cineastas que realmente têm algo a dizer.

Surpreendente é Anderson declarar, como fez em outra entrevista, que até Coração de cachorro começar a ser exibido em festivais ela não percebeu que “há mais morte nesse filme do que em qualquer car-crash movie. Todo mundo morre!” De fato, há um encadeamento de mortes – as de Lolabelle, das vítimas do 11 de setembro, do amigo e escultor Gordon Matta-Clark, do bebê que para de respirar, da mãe de Anderson etc. –, a respeito das quais ela reflete, somando à narração grande variedade de imagens, algumas ilustrativas, outras alusivas, que compõem a narrativa ensaística inspirada e com forte carga emotiva.

O melhor de Coração de cachorro são os momentos em que Anderson se deixa levar pela livre associação de ideias pessoais, como ainda no início do filme quando relaciona a expressão de Lolabelle, ao ser atacada por gaviões nas montanhas da California, à consciência de que era uma presa a ser caçada. E ao comparar o olhar de Lolabelle com o de seus vizinhos em Nova York logo após 11 de setembro “quando se deram conta, primeiro, que a morte podia vir do ar e, segundo, que seria assim dali em diante”.

Menos feliz é o uso de citações às quais Anderson recorre aqui e ali. Por mais interessantes que sejam, algumas frases de Wittgenstein ou Kierkegaard, citadas a torto e a direito, já se tornaram banais. Soam mal quando incluídas em forma de legenda e servem como sinais de alerta de que haja alto coeficiente de mistificação nisso tudo.

Lolabelle
Lolabelle

Anderson deixa clara sua admiração pela concentração dos tibetanos no “principal evento: a morte desta pessoa. E a tentativa de entender a morte sem auto-piedade. O ponto de vista dos budistas também é jornalístico: ver as coisas como são. Eu aprecio a ausência de choro por que sou puritana e cheia de culpa e dúvida. Sorte minha! Se você considera a morte um evento imenso principalmente na vida de outra pessoa, ela se torna muito mais impressionante. Eu me senti muito afortunada em ter essa compreensão.” (entrevista completa aqui).

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí