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O Botão de Pérola – Vestígios do corpo

Apesar do intervalo de cinco anos que separa as estreias de Nostalgia da Luz e de O Botão de Pérola, os dois filmes de Patricio Guzmán deveriam ser exibidos em programa duplo e assistidos obrigatoriamente um após o outro

Eduardo Escorel | 21 jul 2016_15h54
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Apesar do intervalo de cinco anos que separa as estreias de Nostalgia da Luz, em 2010, e de O Botão de Pérola, em 2015, os dois filmes de Patricio Guzmán deveriam ser exibidos em programa duplo e assistidos obrigatoriamente um após o outro, pois formam um díptico sobre a busca dos cerca de 3 mil desaparecidos políticos chilenos, vítimas da ditadura chefiada pelo general Augusto Pinochet que perdurou quase dezessete anos, de 1973 a 1990.

Narrado em voz off cadenciada e serena pelo próprio Guzmán, O Botão de Pérola é um desdobramento de Nostalgia da Luz. Ambos compõem, de fato, um único ensaio elaborado, filmado e montado em estilo igual. São duas obras unidas por uma mesma meditação que se desdobra e aprofunda, criando um marco do cinema contemporâneo.

Transcorridos mais de trinta anos desde que Guzmán concluiu, em 1979, A Batalha do Chile, seu primeiro documentário de repercussão internacional, ele foi capaz de se reinventar como cineasta, passando da militância a quente da mocidade à reflexão madura de Nostalgia da Luz e O Botão de Pérola.

Os acontecimentos políticos do momento e a necessidade urgente de informar ao mundo o que ocorria no país provocaram o impulso que levou à realização de A Batalha do Chile, documentário de 285 minutos dividido em três partes. Guzmán, cineasta ainda iniciante, testemunha, filma a história em ação. Deixa-se “arrastar pelo que está acontecendo”, conforme declarou. Pergunta aos eleitores, em 1973, como vão votar e revela um país dividido, no qual o enfrentamento radical entre a esquerda e a direita resulta, em setembro, no golpe de Estado, tema da segunda parte. E na terceira, mostra ações populares de apoio ao governo de Salvador Allende, tomadas no período anterior à intervenção militar, em reação ao boicote econômico, com o propósito de superar a crise política e neutralizar o golpe em preparo.

<i>O Botão de Pérola</i>
O Botão de Pérola

Os fatos que dão origem a Nostalgia da Luz e O Botão de Pérola decorrem do desfecho político documentado em A Batalha do Chile – durante a ditadura militar, milhares de presos políticos são assassinados, seus corpos enterrados ou lançados ao mar, alguns desenterrados depois e levados para lugares desconhecidos na tentativa de impedir que fossem encontrados. Entre os presos e desaparecidos está Jorge Müller, diretor de fotografia e câmera de A Batalha do Chile. O país deixara de ser o “remanso de paz, isolado do mundo” que fora durante a infância e juventude de Guzmán, conforme ele mesmo diz na narração inicial de Nostalgia da Luz.

Graças à sua antiga paixão pela astronomia e à experiência de vida adquirida, ao tratar em Nostalgia da Luz e O Botão de Pérola do trauma coletivo do Chile, país no qual além dos desaparecidos há cerca de 60 mil ex-torturados, Guzmán foi capaz de articular o passado com o tempo presente, dominante em A Batalha do Chile. Aprendera que “nada se vê no instante em que é visto”, como diz o astrônomo Gaspar Galaz, em Nostalgia da Luz.

“O presente não existe”, prossegue Galaz. “Ou seja, o único presente que existe, se é que existe, é o que eu tenho na minha mente. Minha consciência é o que mais se aproxima do presente absoluto. E talvez nem mesmo isso seja verdade, porque quando penso o sinal demora a se deslocar entre meus sentidos. O passado, eu creio, é a grande ferramenta do astrônomo. Nós somos manipuladores do passado. Estamos acostumados a viver atrasados, somos habituados a essa defasagem. É assim.”

“É como um arqueólogo que sempre estuda o passado e um historiador também?”, pergunta Guzmán. “Exatamente”,  responde Galaz. “O passado do arqueólogo é mais próximo, mas é o mesmo. E o geólogo também. Ele sabe que quanto mais escavar, à medida que vai mais fundo, as coisas são mais antigas. É o mesmo para nós astrônomos.”

“O presente é uma linha tênue que um simples sopro destruiria”, concluem Guzmán e Galaz.

Através da astronomia, arqueologia e memória de testemunhas, Gúzman passou a acreditar “que nossas raízes podem estar lá em cima, além da luz […] e não “no solo, enterrada[s] debaixo da terra, ou no fundo do mar”, como pensava.

Balizado por paradigmas da astronomia, arqueologia, geologia e história, Guzmán dedica o terço inicial de Nostalgia da Luz e O Botão de Pérola à apresentação dessas referências, recorrendo na narração a metáforas para iluminar suas formulações. “São metáforas pequenas de coisas concretas”, Guzmán declarou à revista Filmcomment. “Não metáforas enormes. Usando essas mini metáforas como alicerce construo a história. Pode-se usar grandes metáforas para fazer filmes, mas é muito difícil e eu não posso fazer isso.” (Entrevista completa disponível aqui)

<i>Nostalgia de Luz</i>
Nostalgia de Luz

A estrutura narrativa de Nostalgia da Luz e O Botão de Pérola  arrodeia em espiral o tema central dos dois filmes – a busca de vestígios humanos de prisioneiros políticos assassinados –, cerrando passo a passo o foco da reflexão e produzindo dessa maneira efeito dramático impactante.

Aos 52 minutos de Nostalgia da Luz, em resposta a uma pergunta de Guzmán, Vicky Saavedra diz o que acabou encontrando de seu irmão, Jose Saavedra Gonzales: “Um pé, um pé que estava dentro do sapato e parte de seus dentes. Achei parte de sua testa, seu nariz. […] Sua orelha, a parte de trás da orelha com um impacto de bala que saiu por esse lado. […] Não sei em que posição estava, como foi isso. Além de um tiro de misericórdia na testa que estava toda esmigalhada, totalmente.”

Em O Botão de Pérola, um dos momentos mais fortes, encenado no terço final do filme, é o da preparação de um boneco, representando um corpo humano a ser lançado ao mar de um helicóptero. Não se trata de uma aeronave militar verdadeira, explica Guzmán na mesma entrevista citada à Filmcomment. “Os militares jamais permitiriam que fizéssemos isso. Na pós-produção, um helicóptero militar foi superposto ao  originalmente filmado e os corpos que caem foram acrescentados utilizando computação gráfica.”

Segundo Guzmán, O Botão de Pérola foi concebido a partir da associação entre o botão encontrado em um dos trilhos usados para assegurar que os corpos afundassem, ficando ancorados no mundo do mar, e a história de Jemmy Button, nativo de ilhas ao redor do arquipélago da Terra do Fogo, que teria sido comprado dos pais pelo preço de um botão de madrepérola e levado pelo capitão FitzRoy para a Inglaterra, em 1830, para ser civilizado. Button tornou-se uma celebridade, mas depois de um ano retornou à sua terra natal no Beagle que levava Charles Darwin em sua famosa viagem, abandonou rapidamente roupas e hábitos europeus que havia adquirido e recusou a oferta para voltar mais uma vez à Inglaterra.

Patricio Guzmán
Patricio Guzmán

O último encontro de Vicky Saavedra com o irmão dela foi com seu pé. “E de madrugada”, ela conta em Nostalgia da Luz, “levantei-me e fui fazer carinho no pé dele. Ainda estava de meia, uma meia cor de vinho, vermelho escuro. Tirei o pé da bolsa e fiquei olhando […] No dia seguinte, meu marido foi trabalhar e passei a manhã toda com o pé do meu irmão… estávamos nos reencontrando. Foi um grande encontro e uma grande desilusão, porque só então me dei conta de que meu irmão estava morto.”

Para Guzmán, o Chile é “um país que não trabalha seu passado. Está estagnado em um golpe de Estado que ainda o mantém imobilizado, de certo modo.” O arqueólogo Lautaro Núñez, entrevistado em Nostalgia da Luz, diz compartilhar dessa visão: “É um paradoxo. O passado mais recente nós o encapsulamos. É um paradoxo enorme. […] Não fizemos absolutamente nada para compreender por que, no século XIX, foram produzidos esses modelos econômicos vertiginosos como o do salitre, do qual não restou nada. Então… nossas histórias mais próximas, nós as mantivemos escondidas, nós as mascaramos. Há como um contrassenso. Como se não quiséssemos nos aproximar dessa pré-história próxima, como se ela fosse quase uma pré-história acusatória. E isso, estimado amigo, não serve. Não serve para ninguém. Nem à direita, nem ao centro, nem à esquerda.”

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