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    FOTO: ASCOM/CGU

questões da política

As contradições de Lula no combate à corrupção

Especialista em corrupção, o economista Claudio Ferraz, professor da PUC-Rio, defende a ideia de que havia uma “contradição” na atuação do governo Lula

Rafael Cariello | 23 maio 2016_20h21
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Especialista em corrupção, o economista Claudio Ferraz, professor da PUC-Rio, defende a ideia de que havia uma “contradição” na atuação do governo Lula diante dos casos de desvio de recursos por parte de políticos, servidores e funcionários de estatais, durante os seus dois mandatos. De um lado, acumularam-se denúncias de assalto aos cofres públicos. De outro, criou-se um dos melhores programas de combate à corrupção no mundo, a “menina dos olhos” de pesquisadores e instituições internacionais dedicados ao tema, segundo Ferraz.

Foi sob o presidente petista, e já no seu primeiro ano de governo, que a CGU, a Controladoria-Geral da União, implementou um programa impressionantemente eficaz de fiscalização das verbas distribuídas pelo governo federal aos municípios brasileiros – em geral a grande fonte de recursos das prefeituras espalhadas pelo interior do país. A ponto de, com a divulgação de suas auditorias, a fiscalização da CGU ter sido capaz de: 1) reduzir as chances eleitorais de políticos corruptos; 2) permitir à Polícia Federal colocar prefeitos na cadeia – em escala inédita na história brasileira – e 3) no fim das contas, reduzir o montante dos desvios encontrados nos municípios, a cada nova vez em que eram fiscalizados – ou seja, reduzir o tamanho da corrupção no interior do país.

Não se trata de simples impressão, mas da conclusão de dois trabalhos de que Ferraz foi coautor, um deles ainda inédito, cuja versão final ele prepara agora, enquanto dá aulas como professor visitante do MIT, o Instituto de Tecnologia de Massachusetts.

Isso tudo, claro, simultaneamente ao “descalabro” que ocorria na Petrobras e em outras empresas controladas pelo Estado, lembra o economista. “A grande contradição é essa: ao mesmo tempo em que você criou programas muito inovadores no nível local, você não implementou a mesma fiscalização no nível federal. Podiam ter criado um programa de fiscalização das empresas estatais, por exemplo. Não foi feito. A fiscalização nas estatais é nula; não existe, praticamente.”

De toda forma, a “contradição” pode estar chegando ao fim. As fiscalizações feitas pela CGU, que no ano mais produtivo sob Lula alcançaram 400 municípios brasileiros, caíram bastante no governo da presidente Dilma Rousseff. “O número caiu de maneira absurda”, enfatizou Ferraz, nunca ultrapassando, segundo dados da própria Controladoria, a marca de 120 cidades auditadas por ano, sob Dilma. Em 2013, 2014 e 2015, apenas 60 municípios foram fiscalizados, a cada ano, em todo o país. Chegou-se mesmo a cogitar a extinção do órgão, como parte da necessidade de “esforço fiscal” do país.

A medida, no entanto, só veio a ser tomada pelo sucessor de Dilma, o presidente em exercício, Michel Temer, ao anunciar logo depois da posse o fim da CGU e a incorporação de suas funções e corpo técnico ao novo Ministério da Transparência, Fiscalização e Controle. Embora ainda seja cedo para se avaliar as consequências da decisão, Ferraz afirma ter “um pouco de medo” quanto aos possíveis impactos da medida.

“Ao transformar a CGU num ministério, fica mais difícil acabarem com o órgão, é verdade”, ele lembrou. “Ministério tem mais visibilidade. Por outro lado, as pastas são distribuídas com interesses políticos muito maiores. Tem um risco maior de o órgão ser capturado politicamente – de maneira mais extrema do que seria o caso num órgão simplesmente de controle, ligado à Presidência, como era a CGU. Para mim ainda não é muito óbvio o que vai acontecer.”

O PMDB, é preciso lembrar, tem forte presença nas prefeituras do interior do país, e interesse direto, portanto, no trabalho que vinha sendo feito. Essa é, aliás, uma das possíveis explicações de Ferraz para a iniciativa tomada por Lula no início de 2003, com a criação do programa.

“O PT não tem muito prefeito. Em particular, não tinha muito prefeito no Nordeste quando o programa começou. O PMDB tem. O DEM tinha. Uma das interpretações da história seria a de que o governo soubesse, então, que as chances não eram altas de um prefeito do PT ser pego. Na média, nos lugares onde acontecem a maioria dos casos de corrupção, os mais escabrosos – no Nordeste e no Centro-Oeste –, o PT tinha poucos prefeitos. Não estou dizendo que foi por causa disso que fizeram o programa. Mas acho que esse cálculo de ‘custo x benefício’ pode ter sido feito.”

 

Claudio Ferraz, hoje com 44 anos, ainda cursava o doutorado, na Universidade da Califórnia, em Berkeley, quando descobriu o programa da CGU, mal ele havia sido criado. Como os municípios a serem fiscalizados eram escolhidos por sorteio, a iniciativa se afigurava ideal para um trabalho estatístico, em que se procura trabalhar com amostras tão pouco “viciadas” quanto for possível.

Como Ferraz também tinha interesse em aferir se determinados “incentivos” influenciariam as escolhas e o comportamento de políticos e eleitores, havia uma outra característica do programa, sob Lula, que parecia propícia. Quando foi criada, em 2001, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, a CGU, chamada à época de “corregedoria”, fiscalizava sobretudo as políticas públicas que recebiam verbas federais, mas não exatamente os seus gestores. Em determinado momento, por exemplo, técnicos eram destacados para saber se os recursos do programa de distribuição de merenda escolar estavam sendo usados de maneira correta, e voltavam de suas viagens pelo país com um relatório sobre a situação geral daquela iniciativa. Já era alguma coisa.

O avanço sob Lula, proposto pelo então ministro Waldir Pires, foi determinar que as fiscalizações não seriam mais por programa, mas por unidade da Federação. “Aí você cria uma accountability maior. Você diz para o prefeito: ‘Olha, amanhã ou depois, você pode ser fiscalizado.’ Essa foi a grande mudança.” Não só isso. O programa específico de fiscalização dos municípios acabou se tornando um dos melhores e mais eficazes dentro da Controladoria – que de modo geral é responsável por fiscalizar o uso de qualquer recurso que saia da União, seja ele empregado pelo próprio governo federal, por estados ou por municípios. “A maneira como cada um desses gastos é fiscalizado é diferente. Tem coisas que são muito bem feitas e focadas, e outras nem tanto.”

Com a divulgação dos resultados das auditorias, os efeitos logo começaram a ser sentidos. No primeiro artigo que escreveu sobre o programa, em parceria com o também economista e seu colega de doutorado Frederico Finan, Ferraz descobriu que diminuíam as chances de reeleição dos prefeitos pegos em malfeitos, para usar um termo caro à presidente Dilma. E diminuíam tanto mais quanto maiores fossem os casos de corrupção encontrados e divulgados.

Entre os municípios fiscalizados, naqueles em que não havia nenhum problema com as verbas federais, pouco mais de 50% dos prefeitos em primeiro mandato conseguiam se reeleger. Nas cidades em que era encontrada uma única “violação”, a taxa de reeleição caía para pouco mais de 40%. E caía novamente para cerca de 30% com dois casos de desvio de dinheiro público; e para 20%, quando eram encontradas três “violações” no uso dos recursos repassados pela União.

Um canal importante para que esse efeito acontecesse, de acordo com o economista, eram as rádios locais, que divulgavam os problemas encontrados pelos auditores. Segundo ele, mesmo que muitas estações fossem controladas por políticos, outras davam a notícia. O mercado de rádio é mais competitivo que o de tevê, comentou Ferraz, e o controle final sobre a informação veiculada é provavelmente menor.

Os dados da CGU não serviram apenas para que os prefeitos fossem punidos eleitoralmente. Muitos – dezenas deles, desde 2004 – acabaram de fato respondendo na Justiça por seus atos, com o aumento do número de operações da Polícia Federal para investigar e punir desvios no uso de verbas federais nos municípios brasileiros. “A PF fez várias operações em parceria com a CGU. Esse tipo de punição não existia antes no Brasil”, disse Ferraz. “Uma das contribuições significativas da CGU para acabar com o fato de que, basicamente, prefeitos não eram punidos por corrupção no Brasil foi criar uma base de dados sobre os desvios de recursos. Por meio dessas auditorias, você mostra o que está acontecendo. ‘Olha aqui: é crime!’ Depois a PF vai lá e faz a operação. Não é só porque a PF ficou mais ativa que o número de prefeitos presos aumentou. Em parte é porque, antes, a polícia não tinha essas informações.”

No artigo mais recente, ainda inédito, Ferraz e Finan mostram que também o “tamanho” da corrupção cai nos municípios reiteradamente auditados – não são apenas os prefeitos que deixam de se reeleger; os que chegam, temerosos dos efeitos da fiscalização, também parecem se conter. Nos municípios sorteados e auditados mais de uma vez pela CGU, a tendência encontrada pelos economistas foi a de que, na segunda fiscalização, os desvios fossem em média 13% menores, em valor total, do que na primeira fiscalização.

Numa conversa por telefone, Ferraz também chamou a atenção para um outro efeito da reiterada fiscalização dos municípios pela Controladoria-Geral da União: os próprios fiscais do órgão pareciam melhorar com o tempo, e aos poucos ficavam mais eficazes em seu trabalho. “Se você olha os relatórios da CGU, a qualidade aumenta muito ao longo do tempo. E faz sentido: você vai aprendendo como os prefeitos fazem para desviar recursos. É um processo de ‘learning by doing’. Houve um aumento da eficiência para detectar corrupção.”

A redução na frequência dos sorteios e das fiscalizações, ocorrida no governo Dilma, é portanto duplamente perniciosa, segundo o economista. Diminui a probabilidade de prefeitos corruptos serem pegos praticando desvios – e assim aumentam os incentivos para a corrupção – e, com o tempo, pode afetar a eficiência dos fiscais em seu trabalho.

“Quanto mais fiscalização, melhor. O papel da CGU foi muito importante nos últimos anos. Para isso continuar, você precisa dar recursos e independência ao órgão. A pergunta que está no ar é se eles vão ter esses recursos e essa autonomia.”

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