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A música em Aquarius

Paulo da Costa e Silva | 08 set 2016_11h45
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Há muito não observo no cinema brasileiro uma presença tão sensível da música popular como em Aquarius. No filme de Kleber Mendonça Filho, a trilha sonora não serve apenas como fundo de época (o que as pessoas ouviam em 1980), nem como comentário das emoções das personagens: ela integra uma visão de mundo, um modo de ser e de estar, um posicionamento diante da vida. Com isso, a música popular se torna personagem fundamental da trama, firmemente ancorada no próprio universo ficcional do filme. Escutamos as canções que as personagens escutam, escutamos junto com elas, reagimos às canções ao mesmo tempo que percebemos a reação das personagens a elas. Gil, Roberto Carlos, Bethânia entoam o reservatório de um conjunto de valores e de um tipo de sensibilidade que serão condensados em Clara (Sônia de Braga), que de algum modo incorpora a textura afetiva, emocional, política e humana de certa classe média dos anos 1970.

É uma textura indissociável dos elementos materiais que compõem seu habitat: samambaia, cômodas, livros nas estantes, posters de filmes e quadros (Kubrick, Miró) e, sobretudo, vitrola e discos, personagens fundamentais no filme – são objetos que definem de modo preciso a subjetividade da personagem, trazem visibilidade a seus valores, prioridades, sua relação com o tempo. Há algo de religioso no ritual de revisitar continuamente a vitrola – a cabeça pendendo ligeiramente para a frente, o estado de concentração e silêncio que antecede o início da faixa, o hiato que permite, finalmente, a abertura de um novo tempo no cotidiano, mais relaxado e emocional. Apesar de industrializados, os discos guardam a aura dos objetos singulares, insubstituíveis, com uma história própria – é isso que ela tenta explicar, sem sucesso, a uma jornalista, tomando como exemplo um disco de John Lennon que veio parar em suas mãos depois de uma longa trajetória por lojas e sebos, uma espécie de “bilhete na garrafa”.

Clara é literalmente feita de canções. Mas as canções não só ajudam a traçar seu perfil íntimo, como a própria personagem acaba iluminando a dimensão espiritual de uma parcela da canção popular brasileira. Numa das cenas mais emocionantes, vemos as gerações se conectando entre si e com a tradição a partir de um lindo choro de Gil, Pai e Mãe, que tematiza, justamente, o sentido de continuidade, e não apenas de ruptura, entre pais e filhos. Por meio de Clara, de sua condição no filme – a residente solitária de um prédio fantasma, um foco de resistência num mundo cada vez mais cínico e hostil –, percebemos também o deslocamento dessas canções em relação ao presente. E talvez seja esse um dos pontos mais interessantes do filme.

No fim, parece que Aquarius encena uma batalha entre modelos civilizatórios excludentes. De um lado, Clara com sua vitrola e suas músicas, sua atmosfera rica em nuances e emoções, marcada por um tempo fluido, aconchegante; do outro, a brutalidade e a impessoalidade dos arranha-céus, do avanço implacável da lógica do dinheiro sobre todos os aspectos da vida, da destruição ambiental e da aceleração mórbida da existência – tudo isso movido a muito culto de novidade e tecnologia pela tecnologia, e por uma sensação cada vez mais onipresente de vazio e de cansaço. Não se trata mais da falta de cultura, nem da ausência de valores: é uma outra cultura  – com seu conjunto de valores: eficiência, produtividade, avanço tecnológico etc. – que veio tomar de assalto o ambiente mais brando, humano e acolhedor, que fez surgir a grande música popular dos anos 1970. E essa grande música surgiu justamente porque estava no centro da vida social.

O retrato do imaginário da classe média ilustrada dos anos 1970 é certamente lisonjeiro. Inclusivo, abarca de Villa-Lobos a Roberto Carlos e o brega, marcado por um humanismo doce e por uma sensibilidade social afiada. Parece aberto a negociações e mudanças, mas não está isento de contradições profundas e desconfortáveis, que se revelam sobretudo diante da má consciência que essa classe média tem ao constatar que boa parte do seu universo florido se apóia em antigas desigualdades sociais. O mundo de Clara é assombrado não apenas pelo capitalista cretino da empreiteira (com sua podridão moral), mas também pelo recorrente “fantasma da criadagem”. Definitivamente, não é um mundo perfeito. Ainda assim parece bem mais desejável do que aquele outro que vem se afirmando cada vez mais.

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