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Paulinho da Viola e o choro: velhas histórias, memórias futuras

Eliete Negreiros | 22 fev 2013_14h10
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O choro nasceu, primeiramente, como um jeito de tocar a polca, a schottisch, a valsa, o tango, enfim os ritmos estrangeiros em voga no Brasil no final do século XIX. Ritmos que foram se abrasileirando, ficando morenos sob o sol escaldante de terra  brasilis. No início do século XX, o choro tornou-se um gênero musical, com forma definida, graças aos pioneiros Joaquim Callado, Chiquinha Gonzaga, Anacleto de Medeiros, Ernesto Nazareth e , é claro, Pixinguinha. Pra gente ter uma noção da beleza e da dimensão do choro na música popular brasileira, basta lembrarmos alguns grandes chorões: Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Waldir Azevedo, Radamés Gnatalli, Garoto,  Rafael Rabello, Paulo Moura, Guinga, Paulinho da Viola. Sim, Paulinho que  é mais conhecido como sambista, mas  que teve no choro sua iniciação musical , toca (cavaquinho e violão) e compõe choros belíssimos

Henrique Cazes, no livro Choro – do quintal ao Municipal, observa que o mesmo processo que levou ao nascimento do choro aconteceu em vários países, isto é, a música européia temperada pelo sotaque musical do colonizador deu origem a vários gêneros que são a base da música popular urbana: o maxixe brasileiro, a beguine da Martinica, o ragtime norte-americano, são todos uma adaptação da polca e a diferença entre eles se deve à música de cada país. Observa também que uma mesma instrumentação é usada  na música popular das diferentes colônias portuguesas: cavaquinho, violão e flauta, presentes no choro brasileiro, na música do Cabo Verde e até na da Indonésia. Além disso, a melancolia e o sentimentalismo lusitanos também se fazem sentir nelas.

E como era a polca, que invadiu a corte em meados do século XIX? “Em compasso binário, com indicação de andamento allegretto, melodias saltitantes e comunicativas, em pouco tempo a polca dominou os salões, mesmo enfrentando a oposição dos moralistas. Se já parecia absurdo o homem tocar a cintura de uma mulher para uma valsa, quanto mais os pulinhos dos pares polquistas” (H.Cazes). Imaginem, então, qual não foi o escândalo dos maxixes criados por Chiquinha Gonzaga, uma mulher!

A chegada da corte portuguesa ao Brasil provocou uma grande transformação na cidade do Rio de Janeiro, que se modernizou meio às pressas para viver sua nova vida imperial. Foram criados o correio, a estrada de ferro e, com eles, uma série de serviços públicos. As leis antiescravagistas e a abolição do tráfico negreiro deram um aspecto menos bárbaro e mais civilizado ao Brasil e causaram mudança no perfil social e econômico do país. Surge a classe média urbana composta por funcionários públicos e pequenos comerciantes. Vale lembrar que grande parte dos chorões trabalhava como funcionário dos correios, do porto e das ferrovias.

Junto com a corte, veio também um outro personagem: o piano. Com ele, um ideal de educação que o associava a algo que dava status às mocinhas da classe média emergente. A cidade do Rio de Janeiro foi então chamada “a cidade dos pianos”.

O choro passou a ter uma forma definida: era composto de três partes  e era modulante. Atualmente, o choro também significa um modo de frasear, que pode ser usado em diversos tipos de música e sua forma rondó, que era obrigatória, já é mais relativa.

Feita esta breve introdução, baseada no livro de Cazes, vamos dar um salto no tempo e ouvir e comentar um pouco os choros que Paulinho da Viola compõe e toca. No filme de Izabel Jaguaribe, Meu tempo é hoje, Paulinho dá uma visão ampla da música dos grandes mestres: elas são atemporais e, se as composições foram criadas no passado, basta  serem lembradas ouvidas ou tocadas para que se tornem presentes. Ele diz que não vive no passado mas é o passado que vive nele. Assim, a tradição torna-se algo vivo, carregado de sentido. As grandes músicas carregam , portanto, a porção de eternidade que a nós, seres mortais, é dado experimentar. Eu penso assim como ele. Os chorões de hoje potencializam o choro reinterpretando os grandes mestres ou criando novas composições. O aspecto da “novidade” é de menor importância. O que vale é a beleza da composição, o modo de tocar, a interpretação, enfim o que conta é a beleza da própria obra e de seu criador ou intérprete.

Esta ideia da tradição viva é bem desenvolvida no livro de Eduardo Coutinho Velhas histórias, memórias futuras. Esta frase que virou título deste livro é de um poema de Paulinho da Viola, Memórias, que ele escreveu para o encarte do disco em que gravou só choros, Memórias Chorando. A tradição entendida como “herança viva” é a transmissão de formas culturais, o que não é mera reprodução mecânica, mas supõe um esforço do sujeito num processo de reconstrução no qual a cultura é afetada e entendida como articulação orgânica entre o sujeito social e sua herança cultural objetiva, isto é, como atividade criadora de reinterpretação dos signos do passado. Diz Coutinho: “Na cultura brasileira, a obra de Paulinho da Viola é certamente uma das que melhor representam a compreensão da cultura como tradição viva.”

Paulinho da Viola, muito mais conhecido como grande sambista, compôs lindos choros, como Choro Negro, Abraçando Chico Soares, Sarau para Radamés, Rosinha, essa menina, Romanceando. Sua iniciação musical se deu ouvindo os grandes mestres nas reuniões que seu pai, o violonista César Faria, dava em sua casa: “Minha relação com a música começou na infância, nas rodas de choro organizadas por meu pai em nossa casa, das quais participavam Jacob do Bandolim e Pixinguinha. Desde menino comecei a observar, estudar e tocar violão e eu não era de samba não: era de choro mesmo.” Paulinho gravou um LP só de choros – Memórias Chorando, composições suas, de Pixinguinha, além de um choro desconhecido de Ary Barroso.

A maioria dos choros que Paulinho compôs até 1976, data da gravação de Memórias Chorando, diferentemente da forma tradicional, tem apenas duas partes. O único que tem três  partes é Beliscando.

Choro Negro foi composto em 1972 e gravado originalmente no LP Nervos de Aço, de 1973.  A invenção melódica é sofisticada, a harmonia é tradicional, discreta, tendo a função de acompanhamento da melodia. A tristeza que emana do choro nasce deste lindo desenho melódico, do andamento lento e do fraseado predominantemente descendente. Originalmente foi gravado apenas com piano e cavaquinho, o que acentua a sua expressividade e a sua melodia. Nesta gravação, ouviremos a interpretação do quinteto do músico Nailor Proveta, que usa a instrumentação tradicional do choro.

Choro Negro, Paulinho da Viola | Com Nailor Proveta e Quinteto Proveta: sax e clarineta; Carlos Roberto, piano, Edmilson Capelupi, violão de sete, Cléber Almeida, percussão, Jericó, trumpete e flugel horn

Proveta entrevistado por Patrícia Palumbo

Abraçando Chico Soares foi gravado no LP Paulinho da Viola, de 1971. Leve, brejeiro, alegre. Nesta gravação ouviremos a violonista Marcia Taborda e seu grupo, com participação especial de Maurício Carrilho. Marcia Taborda é, além de  grande violonista, profunda conhecedora da obra chorística de Paulinho da Viola, tendo gravado um CD só com os choros do compositor.

Abraçando Chico Soares, Paulinho da Viola. Com Marcia Taborda e grupo, part. Maurício Carrilho

Sarau para Radamés foi gravado originalmente no LP Paulinho da Viola, de 1978.

Agora, com a presença do grande maestro homenageado.

Sarau para Radamés, Paulinho da Viola. Com Paulinho da Viola e Radamés Gnatalli e Copinha (flauta e clarinete)

E uma outra interpretação deste choro feita pelo músico Edmilson Capelupi:

Sarau para Radamés, Paulinho da Viola

Aproveitei o tema para conversar com o Edmilson Capelupi, pois ele é um profundo conhecedor e tocador de choro: “Ainda me recordo de Pixinguinha, me chamou muita atenção. Ali, o violão de 7 cordas desempenha papel importante principalmente na introdução, e desse momento em diante nunca me separei desse gênero: foi minha escola, minha faculdade e é o alicerce para todos os meus trabalhos. O choro representa na sua essência a musicalidade, criatividade, lirismo, diversidade e ginga brasileiras, esse universo musical é formador de grandes expoentes da música, sendo o primeiro gênero musical instrumental brasileiro. O primeiro mestre foi o meu pai, Haroldo, que ensinou as primeiras baixarias (nome dado ao fraseado do violão 6 e 7 cordas na região grave), e logo em seguida descobri o sr. Horondino José da Silva, “Dino”, com quem aprendi (ouvindo)  a magia do violão de 7 cordas. Muitas pessoas influenciaram e continuam me surpreendendo: Jacob do Bandolim com seu estilo único e composições, Radamés Gnattali com seus arranjos camerísticos para grupo de choro, Pixinguinha com seus choros balançados. Outros músicos e arranjadores me ensinam e inspiram. Hoje tenho a honra e o prazer de tocar com dois mestres do choro: os irmãos Israel (violão 7) e Isaias Bueno de Almeida (bandolim), dois expoentes do choro de ontem, hoje e sempre. Acredito que as novas gerações de chorões estão atentas a esses detalhes e se abastecem desse legado, e também incorporam novas ideias harmônicas, melódicas e rítmicas. O choro não deve ser enquadrado num arquétipo, ele deve retratar a sua época, absorver influências, sofrer mutações, novos olhares, o tempo se encarrega de filtrar esse material.” Edmilson atualmente tem um grupo de choro, o Papo de Anjo.

Cuco – Edmilson Capelupi

Clique aqui para ouvir Chorinho na praia – Jacob do Bandolim

Os choros Romanceando, Rosinha, essa menina, Cinco companheiros, Cochichando, Beliscando e Inesquecível foram todos gravados por Paulinho da Viola em Memórias Chorando. Os músicos que participaram desta gravação foram: Paulinho da Viola, cavaquinho, César Faria, violão, Copinha, flauta, Cristóvão Bastos, piano, Chiquinho, bandolim, Dininho, baixo, Elton Medeiros e Chaplin, percussão e Hércules, bateria. Os comentários são do próprio Paulinho, que os escreveu para o encarte do disco, em 20 de novembro de 1976. É um disco deslumbrante, vocês ouvirão.

Romanceando, Paulinho da Viola

“Fiz a primeira parte deste choro dá dez anos mais ou menos, esperando que papai o terminasse. É muito comum entre os choristas o hábito, já tradicional, de dedicar esta ou aquela de suas músicas a alguém. É a forma de mostrar a uma pessoa o amor ou a amizade que se tem por ela. Há três anos resolvi acabá-lo, dedicando-o ao velho, que toca comigo todo o choro da primeira vez. Acho primorosos os dois solos posteriores de Cristóvão e Copinha, gravados de um fôlego só”.

Rosinha, essa menina, Paulinho da Viola

“Choro de violão, ao modo ‘nordestino’, como diz papai. Eu o fiz há mais de dez anos influenciado pelo estilo de Canhoto, virtuose do violão nascido em Princesa, na Paraíba, que visitou o Rio em 1959.(……) O nome Rosinha é uma homenagem à grande amiga e violonista Rosinha de Valença, que há tempos atrás tocava esta música comigo, revelando muita intimidade com o choro.”

Cinco companheiros, Pixinguinha

“Choro genial do Pixinguinha, aquele que mais gosto depois de Vou vivendo. Há um perfeito equilíbrio formal entre suas partes, poucas vezes alcançado por um compositor num choro.”

Cochichando, Pixinguinha

“Belíssima composição do mestre, onde nossa preocupação, minha e de Copinha, foi tocar à maneira sugerida pelo título.”

Beliscando, Paulinho da Viola

“Meu único choro de três partes, até agora. Foi feito há pouco tempo e dedicado ao amigo Jonas, grande cavaquinhista do conjunto Época de Ouro (…)”

Inesquecível, Paulinho da Viola

“Solo livre de meu  compadre. Foi criado em 72 e escrito exclusivamente para bandolim, com acordes e tudo. Gostaria de sentí-lo assim. Foi gravado pela primeira vez pelo conjunto Época de Ouro (Deo Rian) e seu nome nasceu da minha intenção de prestar uma homenagem àquele que considero o maior músico de choro de todos os tempos: Jacob do Bandolim. Um dia, Cristóvão me chamou e sentando-se ao piano me surpreendeu com o solo que fez. Só me restou convidá-lo para fazer a mesma coisa no disco, o que para mim é uma virtude dentro deste trabalho que não é propriamente um disco de minhas memórias, mas uma primeira experiência com o gênero musical que mais me comove dentro de nossa música popular. Além de sempre me trazer boas recordações.”

E uma versão mais recente de Inesquecível, tocada pelo violonista João Rabello, filho de Paulinho da Viola

Memórias chorando, revela Paulinho da Viola, é dedicado, “no íntimo”, à seu pai: “Tenho liberdade suficiente e não fico nada constrangido ao dizer que o considero (e não é por ser meu pai) um dos maiores acompanhadores de choro que conheço. Velhas histórias, memórias futuras:  César Faria, Paulinho da Viola e João Rabello.

Sons de carrilhões, João Pernambuco | Paulinho da Viola, César Faria, João Rabello

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