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Pitágoras, os números e a música cósmica

Talvez, no fim, sejamos todos feitos de um emaranhado de microcordas soantes, como aquelas de Pitágoras, respondendo de forma vibratória a tudo o que existe

Paulo da Costa e Silva | 29 jan 2016_13h50
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Parece que isso aconteceu no século VI antes de Cristo, na Grécia. Pitágoras passava na frente de um ateliê de ferreiros quando subitamente estacou. Ficou ouvindo a porrada dos martelos percutindo sobre o denso metal da bigorna. Nos sons projetados no ar, reconhecia com nitidez os intervalos musicais de quarta, quinta e oitava. Tratou logo de pesar os martelos. Aquele que produzia o som da oitava tinha exatamente a metade do peso do martelo cujo som era o mais grave, e que fazia as vezes de tônica. O que produzia o som da quinta pesava dois terços do peso do mais pesado. O som do intervalo de quarta vinha do martelo que pesava três quartos do peso do mais pesado. Pitágoras descobriu que havia uma relação matemática entre os sons emitidos e os pesos dos martelos. Refez a experiência usando, dessa vez, uma corda tensionada. Dividiu a corda em partes iguais. Notou que as mesmas proporções produziam os mesmos intervalos sonoros. Confirmou, maravilhado, sua grande descoberta.

A anedota foi registrada por seu biógrafo, o filósofo neoplatônico Jâmblico, mais de oitocentos anos depois. Ela estaria na base da formulação fundamental de Pitágoras: a de que o princípio de todas as coisas está no número. O número, aqui, não é fria abstração quantitativa; é antes a essência mesma do mundo; o que nele há de mais profundo e real. Sendo a base comum de tudo o que existe no mundo, o número é o princípio que coloca todas as coisas em relação. O pensamento grego era dado a argumentar por analogias, a pular sobre vãos, conforme notou o helenista inglês Humphrey Kitto. Esses “saltos analógicos” eram sustentados pela premissa de que o universo, ou a Natureza, constitui uma unidade. A dimensão física, a dimensão moral e a dimensão religiosa formam uma só coisa. No experimento de Pitágoras, que ligava proporções espaciais com harmonias sonoras, a mente grega viu muito mais do que uma mera coincidência.

Excitados pelas descobertas das propriedades da corda soante, os seguidores de Pitágoras deram um passo além. Pensaram que poderiam encontrar também uma base matemática para a religião e para a moralidade. Assim, a descoberta de Pitágoras tornava-se válida para todas as coisas; estendia-se aos confins do cosmos. Complexificando a doutrina do mestre, a Escola Pitagórica sustentou que, assim como os intervalos de som, os movimentos dos astros se reduzem a relações numéricas. É  daqui o termo “harmonia das esferas”; ou mais diretamente “música das esferas”. Os movimentos dos planetas produz modos musicais – emana uma música que nossos sentidos não podem perceber, em razão de seus limites, mas que ainda assim está lá. Por esse motivo Platão escreve, na República, que a harmonia e a astronomia são ciências irmãs.

A intuição primordial de que o número está na origem de todas as coisas conduziu os gregos para uma teoria da harmonia das proporções. De fato, a harmonia comanda tudo: a virtude é harmonia; o bem é harmonia, a saúde é harmonia; a educação deve estabelecer ou restabelecer a harmonia na alma; a medicina deve permitir manter ou reencontrar a harmonia do corpo, e por aí vai. Desse modo, os gregos utilizavam a música para a educação das crianças, ou, mais amplamente, para agir sobre o espírito dos homens. Também a moralidade era pensada como um meio termo entre opostos, uma “afinação”, uma harmonia da alma. Contava-se que Pitágoras teria conseguido acalmar um homem bêbado através da simples mudança do modo melódico tocado por uma orquestra.

Essa visão místico-matemática do mundo penetrou também o universo da beleza artística. Passando do conceito aritmético de relação numérica à ideia de relação geométrico-espacial, os pitagóricos conseguiram estender o império do número ao domínio da arquitetura e das artes plásticas. Estabeleceram que as relações que existem entre as dimensões de diferentes elementos dos templos, entre os espaços vazios e os espaços preenchidos das colunatas, correspondiam às relações que regem os intervalos musicais. Do movimento dos planetas às proporções de templos e estátuas, era tudo um assunto de harmonia – um assunto de música e números.

 

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Pitágoras tocou um ponto nevrálgico, que iria por séculos assombrar (e ainda assombra) o desenvolvimento da história da música européia. Esse ponto é a descoberta do fundamento físico da consonância. Ele está na natureza, na própria estrutura física dos sons. “A descoberta ‘pitagórica’ estabeleceu, pela primeira vez na história humana, um elo cientificamente fundado entre o real fisicomatemático e a psicofisiologia humana”, escreveu o musicólogo francês Jean Molino. A pergunta que se coloca, desde então, é a seguinte: seria a música humana apenas o reflexo da ordem cósmica, ou seria uma simples invenção humana, variável de acordo com o tempo e o local? Ao contrário do que acontecia com os gregos, nosso pensamento passou a ser formado por uma série de dicotomias e de oposições estanques. Desde Descartes, a Modernidade opera com divisões implacáveis e cada vez mais aprofundadas em nosso íntimo. Ela se desenvolve na direção da fragmentação, em detrimento da integração. É cada macaco no seu galho. Ficou mais difícil conceber uma história construtiva que fosse, ao mesmo tempo, orientada de acordo com temas fundados sobre a natureza das coisas.

A música está presente em todas as culturas humanas. Cada uma delas seleciona, no interior do continuum sonoro, sua gama específica de sons, suas próprias notas. Com essas notas faz suas melodias e sons, cria sua própria tradição musical. Tal seleção, contudo, não é puramente aleatória. Há uma preferência amplamente difundida pelos intervalos de oitava, de quinta e de quarta (os intervalos do “martelo” de Pitágoras). Preferência esta que, em sua eloquência, não pode ser esvaziada pela existência de algumas poucas exceções. Tudo isso nos faz ponderar que a origem de tal preferência não é unicamente cultural, como há muito quer nos convencer o relativismo culturalista. Antes, ela possui um fundamento fisiológico, ecoa em nossas entranhas, em nossa estranha natureza humana.

Talvez, no fim, sejamos todos feitos de um emaranhado de microcordas soantes, como aquelas de Pitágoras, respondendo de forma vibratória a tudo o que existe. Talvez os gregos estivessem certos: pelos sons ancoramos nossa presença física no universo, nos tornamos participantes de uma ordem cósmica maior. Mas não apenas isso. O mistério maior, que vai ainda mais fundo, e que está na base da experiência estética em todos os domínios, diz respeito ao fato de que “as qualidades sensíveis têm o poder de agir sobre nossa afetividade. Elas não só emocionam, mas é incontestável que as emoções que nos causam diferem conforme as qualidades sensíveis que as causam”. Eis aí o fato primitivo que, nas palavras do filósofo e historiador francês Étienne Gilson, só podemos aceitar, sem querer explicar. Um tipo diferente de tonalidade afetiva acompanha naturalmente cada qualidade sensível. As cordas não apenas soam; as cordas emocionam. Nem os números explicam isso.

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