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questões cinematográficas

Silêncio – filme tagarela

Há silêncio de menos e falatório demais no filme dirigido por Martin Scorsese

Eduardo Escorel | 16 mar 2017_19h00
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Há silêncio de menos e falatório demais em Silêncio, filme dirigido por Martin Scorsese. Como nas más novelas televisivas, a narrativa é conduzida em grande parte através de diálogos copiosos, maus diálogos por sinal, iniciados quase sempre com perguntas para que as respostas expliquem o que aconteceu ou está acontecendo e as motivações dos personagens. Recorre-se também à voz em off, mas de forma parcimoniosa. O resultado é um falatório infindável (o filme tem duração de 2h41m) que abandona os personagens de Cristóvão Ferreira (Liam Neeson) e do padre Francisco Garrpe (Adam Driver) para se concentrar na missão do padre Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) no Japão do século 17.

Em 50 anos de carreira, Scorsese realizou mais de 20 filmes, entre eles os memoráveis Táxi DriverTouro Indomável e A Era da Inocência. Mas mesmo em seus filmes menos marcantes, ele demonstra domínio incomum da linguagem cinematográfica e grande talento como metteur en scène. Que Scorsese possa ter feito Silêncio, projeto que acalentou durante mais de 25 anos, baseado no romance de Shusaku Endo, comprova que nem mesmo grandes diretores estão livres de cometer desastres.

Habituado a orçamentos de produção entre 80 e 150 milhões de dólares, para conseguir fazer Silêncio Scorsese foi obrigado a trabalhar com um orçamento de 46 milhões, dos quais, segundo declarou, 24 milhões foram gastos com advogados e ações judiciais. Acostumado às condições disponíveis em produções de estúdios, ele não teria se readaptado ao que é considerado, nos Estados Unidos, uma produção independente, como as dos seus tempos de diretor iniciante.

Mas essa terá sido realmente a razão do fiasco de Silêncio? Salários menores para o diretor e atores principais; elenco e equipe remunerada pela tabela do sindicato; falta de benefícios usuais em produções de estúdios. Muita hora-extra nas filmagens – condições relatadas pelo produtor Gaston Pavlovich – explicariam o lamentável resultado? Salvo a disparidade flagrante entre o elenco principal e o secundário, aí incluída a claudicante figuração japonesa, por mais duras que tenham sido as condições de filmagem, não seriam esses os motivos da debilidade de Silêncio.

Problemática, de fato, é a incongruência entre a tentativa de conciliar grande espetáculo e debate intelectual sobre consequências da propagação da fé católica no oriente e o dilema entre abjurar e ser fiel. Harmonizar esses objetivos provou estar, ao menos no caso de Silêncio, além da capacidade de Scorsese, cujo talento paroquial parece viajar mal, florescendo melhor em histórias ambientadas na sua Nova York natal.

Ignorado quase por completo pela Academia, Silêncio recebeu uma única indicação ao Oscar deste ano. Concorreu, mas não ganhou o prêmio de melhor fotografia, dado a La La Land. Nas bilheterias, Silêncio foi igualmente maltratado. Chegou a ser exibido em mais de 1500 salas, nos Estados Unidos, depois de estrear em apenas 4, mas rendeu 7,1 milhões de dólares, além de outros 8,5 milhões no mercado externo, cerca de 15,5 milhões ao todo, configurando um rotundo fracasso comercial (precisaria ter alcançado mais de 140 milhões de dólares para cobrir seu custo de produção).

No contexto de tamanho fracasso comercial, chamam atenção os anúncios de meia página publicados semana passada nos grande jornais do Rio e São Paulo, anunciando a estreia de Silêncio. É um caso flagrante de propaganda enganosa. A principal imagem do anúncio e a frase de venda são dúbias. Liam Neeson é o grande destaque, apesar de ser quase um figurante. E a citação atribuída ao Daily News, sem identificar o autor, afirma que “Silêncio é a obra-prima de Scorcese” (a manchete completa da crítica publicada pelo jornal nova-yorkino, na verdade, é “Silêncio, a obra-prima de Scorsese sobre padres jesuítas no Japão é o filme pelo qual temos rezado”).

Quando fala dos seus filmes, Scorsese às vezes é mais interessante que os próprios filmes.

“Quanto você pode aguentar antes de ceder?”, Scorsese pergunta em entrevista à Film Comment. “Como você poderia julgar outra pessoa por cair em desgraça, quando você nem foi posto à prova? E até se você foi testado e resistiu, em um sentido verdadeiramente cristão, os Kichijiros [o personagem do traidor em Silêncio] também têm que ser aceitos – eles precisam ser ‘perdoados’ pelos padres e pelas pessoas à sua volta. Se você já teve um membro da família ou uma pessoa querida que tem um vício de alguma espécie… Eles largam e voltam ao vício. O que você faz com eles? Eles voltam, depois de ter largado o vício por um tempo. Quando você menos espera, eles roubam a casa. Eles voltam à droga. Você os livra, você os livra de novo, eles trazem amigos para casa e roubam. Aí o que é que você faz?” […]

Em outro trecho da mesma entrevista, Scorsese fala de uma carta que recebeu de alguém das Filipinas: “A ligação do evangelho cristão com a violência do colonialismo é uma ferida da qual o cristianismo asiático ainda não se recuperou. E tudo isso torna a apostasia de Rodrigues tão mais poderosa, rica, ele pisa no fumi-e [imagem de Jesus ou da Virgem Maria esculpida em pedra ou madeira sobre a qual suspeitos de serem católicos deveriam pisar para provar que não pertenciam à religião proibida] para salvar outros, ele ‘nega a verdade’ para afirmar compaixão, que no fim é a verdade mais profunda do cristianismo e de Jesus. Morrer como um mártir teria sido uma espécie de troféu.” (a entrevista completa está disponível aqui)

Em outra entrevista, publicada em La Civiltà Cattolica, Scorsese volta a falar de Kichijiro, o traidor, personagem prejudicado pelo ator inexpressivo escalado para o papel: “Creio que o personagem mais fascinante e intrigante de todos é Kichijiro. Às vezes, quando estávamos fazendo o filme, eu pensei, ‘talvez ele seja Jesus, também.’ Em Mateus, Jesus diz: ‘Em verdade eu vos digo: o que fizestes a um dos menores destes meus irmãos a mim o fizestes’. Você cruza com a pessoa que lhe rejeita na rua – isso é Jesus. É claro que Kichijiro constantemente fraqueja e causa dano a si mesmo e a muitos outros, incluindo sua família. Mas aí, no final, quem está lá com Rodrigues? Kichijiro. Ele era, descobre-se, o grande professor de Rodrigues. Seu mentor. Seu guru, como se diz. É por isso que Rodrigues agradece a ele no final. […] Personagens como Kichijiro me fascinam. É neles que pode haver destruição ou salvação. Muito disso vem do que observei quando era jovem, especificamente o que acontecia entre meu pai, que se chamava Charlie, e seu irmão Joe.” (a entrevista completa está disponível para download aqui)

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São todos temas poderosos, mas dos quais Silêncio não trata com a eficiência e vigor necessários.

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