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    Ilustração de Paula Cardoso/sobre foto de divulgação

questões imunológicas

Vacina, pressa e propaganda

No Brasil, governos prometem vacinação em massa contra Covid-19 para logo, mas laboratórios programam terminar fase de testes entre outubro de 2021 e novembro de 2022 

Camille Lichotti | 11 ago 2020_21h54
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Mundo afora, governantes transformaram o desenvolvimento de uma vacina contra o Sars-CoV-2 em uma corrida política. De Donald Trump nos EUA a Vladimir Putin na Rússia, promessas de vacinação em massa iminente contra o vírus que provocou a pandemia de Covid-19 se repetem com frequência. No Brasil, o governo de São Paulo fechou acordo com a empresa chinesa Sinovac para testar sua vacina em quase 9 mil voluntários em troca de poder fabricá-la no país. O diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, responsável pelos testes entre os brasileiros, anunciou que “no começo do ano que vem já teremos condições de usar essa vacina em massa”. Seu chefe, o governador João Doria, afirmou que a vacina estaria disponível em janeiro para ser distribuída gratuitamente. O calendário científico, porém, é menos otimista. O próprio Butantan prevê examinar o último participante do teste em outubro de 2021. É a mesma data prevista pela AstraZeneca e a Universidade de Oxford para terminarem os testes de sua vacina no Brasil. O terceiro laboratório que testa a sua droga no Brasil, a Pfizer, prevê completar o estudo em novembro de 2022.

A reportagem da piauí encontrou a data no protocolo preenchido pelo Butantan no banco de dados mundial sobre estudos clínicos, o Clinical Trials. Confrontado com a informação, o instituto confirmou a previsão. Assim, a distribuição em massa da vacina no começo do próximo ano esbarra nas exigências de acompanhamento dos testes até o fim, para saber, justamente, se a imunização é eficaz. A última fase dos testes clínicos da CoronaVac, coordenada no Brasil pelo instituto, teve início no dia 21 de julho. Desde então, Doria e o diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, alimentam a esperança de que em pouco tempo a vacina possa ser utilizada. 

O anúncio de vacinação em massa antes da comprovação científica não é exclusividade brasileira. Hoje (11), o presidente russo Vladimir Putin anunciou a eficácia de uma vacina desenvolvida no país, sem apresentar estudos que sustentem sua utilização. Segundo a Organização Mundial da Saúde, 28 vacinas estão atualmente passando por estudos clínicos, numa cruzada que envolve cientistas de todo o mundo em busca de uma resposta efetiva à pandemia do novo coronavírus. As vacinas candidatas estão sendo testadas em procedimentos de investigação que podem confirmar ou não sua segurança e eficiência. Os ensaios são divididos em três fases e, por enquanto, seis candidatas estão no estágio final, que analisa a eficácia das vacinas. Entre elas, está a CoronaVac.

Segundo o próprio Instituto Butantan, o acompanhamento dos voluntários que participam dos testes só termina mesmo em outubro de 2021 – muito depois da data anunciada por Doria e Covas para a distribuição da vacina. A assessoria de imprensa do Butantan disse à piauí que as afirmações de Covas traduzem a expectativa positiva dos pesquisadores. Mas, na prática, isso não significa muito. 

“É impossível prever esse resultado antes de acompanhar a fase 3”, aponta Natalia Pasternak, doutora em microbiologia pela USP e presidente do Instituto Questão de Ciência. “Não podemos dar a falsa esperança de que a vacina está ali na esquina.” A terceira e última etapa do ensaio clínico é a mais importante de todas, justamente porque confirma se a vacina realmente funciona. Diferente das fases anteriores, essa divide os voluntários em dois grupos: um deles recebe as doses do imunizante e o outro, placebo – uma substância que não interage com o organismo. Com o tempo, os voluntários se expõem ao vírus, e aí sim, os resultados podem ser contabilizados. 

“Essa fase precisa de um tempo prolongado para que os pesquisadores consigam uma boa resposta, com bom poder estatístico, que demonstre que a vacina realmente funciona”, explica Pasternak. Por enquanto, as doses de CoronaVac sequer foram aplicadas em todos os voluntários. O objetivo do Instituto Butantan é administrar a vacina em 9 mil voluntários – marca que deve ser alcançada em outubro, segundo a assessoria de imprensa. À piauí, por telefone, o órgão informou não ter o número de voluntários que já receberam as doses de teste. “Só podemos pensar em distribuição quando tivermos dados robustos para avaliar a eficiência”, diz Pasternak. “Pode ser que tenhamos esses dados até o fim do ano, mas também podemos não ter. É preciso ter o pé no chão.”

Nesta terça-feira (11), o Instituto Butantan publicou em seu site que, com os resultados da segunda fase do estudo clínico, a CoronaVac se mostrou “eficaz e segura”. Mas, como explica Pasternak, que teve acesso ao estudo, a afirmação é equivocada. “A resposta de anticorpos nessa fase não é sinal de eficácia”, explica. “Só é possível afirmar que a vacina funciona quando você compara os grupos na fase 3.” Ao todo, doze centros de estudo, entre hospitais e universidades, vão participar da última fase de testes. O objetivo é administrar as doses em profissionais de saúde, que estão mais expostos ao vírus. Essa estratégia busca acelerar os resultados finais, que dependem do número de infectados entre os voluntários. 

Segundo a OMS, outras cinco vacinas também estão na fase 3 e, como a CoronaVac, dependem de dados robustos para serem distribuídas: a vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford em parceria com a farmacêutica AstraZeneca; a desenvolvida pelo Instituto de Produtos Biológicos de Wuhan em parceria com a Sinopharm; a do Instituto de Produtos Biológicos de Pequim, também em parceria com a Sinopharm; a desenvolvida pela farmacêutica Moderna em parceria com o Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos EUA; e a desenvolvida pelas empresas Pfizer, BioNTech e Fosun Pharma – a primeira a iniciar a última fase de testes clínicos. 

Entre as candidatas registradas pela OMS, todas estabelecem pelo menos um ano de acompanhamento dos voluntários. Esses processos, normalmente, levariam anos para serem finalizados. Levando em conta os parâmetros científicos, prazos tão curtos para o desenvolvimento de uma vacina – por mais longos que pareçam – são um feito inédito. Segundo Pasternak, que acompanha os principais estudos na área, é impossível prever qual deles revelará resultados positivos para a eficácia do imunizante. “Eu, como geneticista, gostaria muito de ver uma vacina genética, como a da Pfizer, trazer resultados positivos. Todo mundo tem uma preferida”, brinca. “Mas a verdade é que não dá para saber quais vão realmente ser eficazes.” Por enquanto, todas as candidatas são apenas promissoras.

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