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    FOTO: REPRODUÇÃO_VERMELHO RUSSO

questões íntimo-cinematográficas

Vermelho russo é o meu batom

A Rússia, pela atriz e autora do diário que virou filme, três visitas depois

Martha Nowill | 08 maio 2017_12h00
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Atravessei a Praça Vermelha e comprei um camisa pink na loja da Benetton logo depois de ver o Lênin embalsamado pela primeira vez. Poderia ter tomado uma vodka, fumado um cigarro, qualquer coisa para tirar a sensação mórbida da garganta, mas eu tinha 17 anos e estava viajando com minha mãe, então foi mais fácil caminhar até o outro lado da praça e adquirir uma roupa nova. Sim, o túmulo do Lênin, símbolo maior conservado em formol do comunismo soviético, já dividia a praça com lojas de grife.

Isso foi em maio de 1998, quando FHC tentava aprovar no Congresso a reforma da Previdência – perdeu pelo voto errado de Antonio Kandir, do PSDB de São Paulo – e o Teatro de Arte de Moscou comemorava 100 anos. Eu viajei com minha mãe e um grupo de alunos e professores do Teatro-Escola Célia Helena para assistir algumas peças de teatro inesquecíveis. Montagens do Teatro de Arte, de Bob Wilson e do Teatro da Vertigem. Mas coisas bizarras aconteciam por minuto. Em tempos em que a selfie nem sonhava em existir, eu, na tentativa de me enquadrar junto à cupulazinha colorida da catedral de São Basílio – aquela que todo mundo acha que é o Kremlin mas não é –, sou interrompida algumas vezes por russos a caminho de casa. Se você quer tirar uma foto do meu país você tem que me pagar uma taxa. Uma taxa? É. Por que um taxa? Porque é o meu país.

Nas duas vezes que me aventurei a sair sozinha fui parada na rua por homens na faixa dos 60 anos com a cara vermelha me oferecendo dinheiro para fazer programa. Como eu descobri que era programa que eles queriam? Sei lá, você aprende a decifrar. Mas isso era comum, mulher estrangeira, sozinha, sorrindo e com o cabelo solto: puta.

Minha relação com a Rússia poderia ter parado aí, nesse impacto estranho e lindo, enorme como as telas do Kandisnky que vimos no Hermitage nessa primeira viagem. Mas eu decidi voltar.

Em janeiro de 2009, quando a máxima devia bater os 5 graus negativos, fui para Moscou estudar teatro com minha amiga Maria Manoella e um professor chamado Valentin Treplyacov, numa escola chamada Gitis. Dividimos um quarto no alojamento de estudantes onde o colchão era horrível (minha quarta hérnia de disco foi concebida nele), a comida era péssima e a nossa interpretação de Sônia e Helena, personagens de “Tio Vânia” do Tchekov que trabalhávamos em aula, sofrível. Resumo possível dessa aventura: eu e Manu quase rompemos, evoluí consideravelmente como atriz, e passei semanas tentando dar um jeito de transar com o Sasha (minha paixão russa), já que ele era proibido de entrar no meu alojamento e eu no dele.

As coisas haviam mudado de 1998 para 2009. Mas não tanto. O Lênin continuava lá, as pessoas continuavam não falando inglês e o cirílico seguia hieroglífico. Mas eu senti um país menos selvagem, espinhudo. Uma nova geração crescia tentando fazer o contraponto com o velho, mas coisas bizarras continuaram acontecendo. As epopeias com o visto, o medo de o passaporte ser apreendido sem motivo aparente, as orientações para você dizer que está hospedada num hotel que você não está. Tudo isso foi relatado num diário que escrevi para a edição número 30 da piauí, e talvez meu relacionamento com a Rússia tivesse parado aí, se Charly Braun, jovem cineasta na época, agora nem tão jovem assim, não tivesse lido meu diário e resolvido transformar num filme.

Quando voltei em 2012 para visitar locações e em 2014 para filmar – agora eu é que já não era mais tão jovem –, as coisas haviam mudado. Mas nem tanto. O Lênin continuava lá, as usual. Rodamos o longa num alojamento para artistas do cinema soviético aposentados e aquela sensação do novo brigando com o velho ficou ainda mais clara, concreta e fina, como uma parede de drywall. Os artistas soviéticos vão morrendo (sem possível reposição) e o alojamento foi adquirindo novas funções. Abrigar uma equipe brasileira de cinema, palestras de autoajuda, consultórios odontológicos, quartos para estudantes.

No dia da assinatura da adesão da Crimeia e Sebastopol à Federação Russa nós estávamos lá e filmamos tudo. “Putin é nosso sol”, os senhores e senhoras gritavam na sala de televisão do alojamento. E choravam. Até onde eu pudesse saber, os jovens que encontrávamos no Café Mayak, bar divertidíssimo frequentado por jornalistas, não curtiam o autoritarismo mezzo czarista, mezzo stalinista de Putin. Apoiavam o ativista Navalniy. Mas uma noite fui comprar um espumante no mercado e a caixa ficou muito aflita de me ver com a garrafa. Eram 22 horas e 59 minutos e após as 23 horas havia sido proibida a venda de bebida alcoólica na Rússia. A fila não andou e eu fiquei sem champanhe. Mais tarde, quando filmávamos numa balada local, comentei com um moça de 20 anos o ocorrido. “Muito bem,” ela disse num bom inglês, “quem quer comprar álcool que se programe, finalmente Putin vai mudar a imagem de bêbados que os russos têm no resto do mundo.” E aquela sensação de que o novo tem parecido mais velho que o velho, ou de que o mundo está encaretando sem freios, tomou conta da pista de dança. Mas não me aprofundei muito na questão porque filmávamos 12 horas por dia e reescrevíamos o roteiro – que parecia ter envelhecido junto com a minha Rússia de 2009 – à noite. Eu não tinha nem o tempo de um café sem uma câmera apontada para mim e uma lapela de som enfiada no meu bolso.

Filmar na Rússia é pegar um facão e ir cortando os galhos no meio do caminho de uma selva dantesca. É guerrilha. A câmera pode travar devido ao frio, alguém pode implicar com você. Mas a luz é linda e os teatros continuam lotados, que inveja. A Rússia é uma senhora desconfiada, você demora muito para conquistar a confiança dela e, quando conquista, a senhora vira sua melhor amiga. Então você vai embora e quando volta para encontrá-la, achando que ganhou uma amizade para a vida, percebe que a relação zerou, ela volta a implicar com você e você tem que começar tudo de novo.

Maio de 2017 e estamos no meio do lançamento de “Vermelho Russo”, nosso filme. A Rússia deve ter mudado, mas nem tanto. O Lênin continua lá. Tenho uma amiga russa que anda muito triste com a situação de seu país, diz que os jovens agora estão com medo do Putin, que desde 2013 muita gente que foi na manifestação contra ele continua presa. Que Navalniy teve os olhos queimados e perdeu 80% da visão, que estão todos desiludidos e com muito medo. No meu WhatsApp fica o quadradinho escrito “O povo russo não é como o brasileiro. O povo russo tem medo”. Não sei o que responder a ela. Sinto raiva e pena do país que me deu tanto.

Como pode um povo, bravo como um urso, ter medo, penso, eu que sempre tive medo deles. Só um russo pode responder, e a cada povo a sua escolha. “Vermelho Russo” é um título poético que quer dizer um monte de coisa e nada ao mesmo tempo. Quando o Charly foi falar com um reitor, pedir autorização para filmar na escola dele, o homem ficou muito ofendido com o título e quis saber o por quê do nome. Charly inventou algo do tipo “vermelho da paixão e da força”, e voltou para me perguntar o significado. Tive receio de dizer a verdade. “É o nome da cor do meu batom, Charly, Russian Red.” É só o vermelho mate da MAC cosméticos, mas para mim é muito mais. Os russos odeiam o título, para eles Vermelho Russo é o vermelho sangrento, é o vermelho comunista, o vermelho da guerra, da morte, do antigo. Se o filme estrear lá, não existe a possibilidade de o título ser o mesmo. “Vermelho Russo” é um nome que mexe em dores velhas, mas para mim, parece bem atual.

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