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questões cinematográficas

Visages Villages, um documentário encantador

Indicado ao Oscar, filme de Agnès Varda e JR retrata viagem da dupla pela França em um caminhão adaptado como cabine fotográfica

Eduardo Escorel | 01 fev 2018_19h45
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Há filmes que deveriam ser saudados com fanfarras. São raros, mas existem. Visages Villages, documentário de Agnès Varda e JR, é, com certeza, um deles.

Separados por 55 anos de vida, a veterana cineasta Varda e o jovem fotógrafo JR formam um duo inesperadamente harmonioso. Acima das diferenças de suas gerações, há o que os aproxima. Nas palavras de Varda “serem interessados em outras pessoas, pessoas desconhecidas, pessoas comuns. Pessoas sem qualquer poder. Pessoas que podem ser encontradas em cidades pequenas”.

A pergunta de uma jornalista americana, feita aos leitores da entrevista com Varda e JR, confirma a sensação de bem-estar causada no espectador de Visages Villages: “Quando foi a última vez que você assistiu a um filme que lhe deu vontade de abraçar um desconhecido, ou de puxar conversa no metrô?”

O poder de encantamento de Visages Villages tem origem, de um lado, na interação afetuosa entre Varda e JR, que ela chama de “amizade à primeira vista”; e de outro na relação cordial que ambos estabelecem com seus personagens ao longo da viagem de dezoito meses através da França, em um pequeno caminhão adaptado como cabine fotográfica e impressora de cópias em grande formato.

“O acaso” sempre foi meu melhor assistente, Varda diz no início do filme. Fiéis à sua máxima, durante a jornada o dueto foi conhecendo pessoas casualmente que se tornaram personagens. Mas, há também as que procuram deliberadamente, como a avó centenária de JR, e mesmo lugares específicos aos quais decidem ir, como o túmulo de Henri Cartier-Bresson, a quem rendem homenagem.

Há certa ironia em Visages Villages ter ganho o Œil d’or (Olho de ouro), prêmio de melhor documentário exibido no Festival de Cannes, em 2017. É como se o júri atribuísse a chancela “visão dourada” ao filme, apesar do dueto enxergar mal (Varda) e sempre usar óculos escuros (JR). Em um caso, consequência de doença, no outro da intenção deliberada de preservar sua imagem pública.

Ao receber o Œil d’or, Rosalie Varda, filha de Agnès e produtora de Visages Villages, leu um texto em nome de sua mãe e de JR que merece ser lembrado: “Fizemos nosso trabalho documental com prazer: encontrar pessoas, filmá-las, ouvi-las, representá-las, valorizá-las e torná-las conhecidas daqueles que assistirão ao filme. Bancamos os palhaços. Foi com boa vontade… dois corações dispostos, em três fases, com quatro olhos. Mesmo se o tempo da filmagem é efêmero, vivemos momentos de amizade e de compartilhamento que já foram prêmios. […] Recebemos com emoção esse reconhecimento da nossa jornada que fala das pessoas, dos olhares, da idade, da transmissão, da juventude, do trabalho, do cinema, do passado, da família e de muitas outras coisas.”

E JR acrescentou: “Agnès me deu o presente de convidar minha avó para participar da nossa aventura. É a seu olhar risonho e a seus olhos às vezes fechados que pensei ao ouvir as palavras olho de ouro. Ela tem 102 anos. Nós dois dedicamos esse prêmio a ela.”

A nota dissonante de Visages Villages é dada no final quando Varda e JR dão com o nariz na porta ao chegar à casa de Jean-Luc Godard, em Rolle, na Suíça, para uma visita marcada com antecedência. Encontram apenas um bilhete enigmático escrito na vidraça, fazendo referência a Jacques Demy, marido de Varda falecido em 1990 e contemporâneo de Godard nos primórdios da Nouvelle vague.

Apesar de previsível, em vista de antecedentes semelhantes, a descortesia do seu amigo de longa data surpreende Varda. Ela vai às lágrimas e se retira com JR, não sem antes deixar o pequeno embrulho com o doce preferido de Godard pendurado na maçaneta da porta.

Com aversão notória a amabilidades, Godard prefere contrariar a expectativa de Varda no seu momento nostálgico, instaurando um registro amargo na sequência final do filme, em vez de fazer o papel de cineasta ancião gentil sendo apresentado a JR.

Mesmo assim, passado o choque sentido no momento do forfait que a levou a dizer, inclusive, que Godard é um “cavalo”, Varda se mostra compreensiva e volta a deixar claro seu grande apreço por ele: “O que me feriu foi em relação a Jacques Demy de quem realmente sinto falta e ainda amo. Então, por ele ter feito a conexão com Jacques, tornou-se muito duro e me feriu com muita força. E aí pensamos, ‘precisamos nos acalmar’. Vamos ao lago e nos acalmamos. E JR me explicou algo em que acredito. Ele foi muito inteligente em entender que, de certo modo, Godard escreveu um trecho do roteiro. Ele acrescentou algo ao filme. Talvez melhor do que um encontro.”

E Varda prossegue: “Esse é um homem estranho. Fomos amigos quando éramos moços. Mas, você sabe, tínhamos 30. Tínhamos 40. Aí, ele mudou. Começou a fazer filmes políticos. Aí nós fomos para a América. Perdemos contato. Mas ainda o vejo aqui e ali. […] Você sabe, quando amo alguém eu não posso abandoná-lo. Amor não é algo que você abra e feche, sabe? Então, eu me lembro de amar que ele e Jacques Demy fossem amigos. Tiramos férias juntos. Gozamos a vida. Não posso apagar isso. E eu admiro o trabalho dele. Eu acredito que ele é um inventor incrível do cinema. Ele é um pesquisador. Ele é um cineasta filosófico, e isso é tão raro no mundo. Ele é único. Então realmente admiro a posição dele. Isso quer dizer que ele é agradável? Nada tem a ver, você sabe? Como cineasta, ainda lhe devoto minha admiração. Mas como homem, como amigo, agora? Ele está meio queimado.”

Em novembro do ano passado, Agnès Varda recebeu um Oscar honorário no salão Ray Dolby, em Hollywood. E Visages Villages concorre, com outros quatro filmes, ao próximo Oscar de melhor documentário de longa-metragem. Caso venha a ser premiado, o júri terá demonstrado grande largueza de espírito.

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Nota: As citações de Varda provêm de entrevista disponível na íntegra aqui.

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