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    No fim do século XVIII, Don Diego de Zama é um oficial da Coroa Espanhola que deseja partir para Buenos Aires. Junta-se a um grupo de soldados à caça de um perigoso bandido e explora terras distantes

questões cinematográficas

Zama – espera e identidade

A adaptação para o cinema do livro homônimo pela diretora Lucrecia Martel

Eduardo Escorel | 05 abr 2018_16h22
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Com pequenas variações, Zama costuma ser apresentado como a história da espera de Don Diego de Zama por uma carta do rei da Espanha autorizando sua transferência para Buenos Aires – carta que nunca chega.

Esse tema da espera vã inspirou o notável ensaio “Quatro Esperas”, de Antonio Candido, incluído em O Discurso e a Cidade, no qual o autor analisa o poema “À espera dos bárbaros”, de Constantino Cavafis; A Construção da Muralha da China, narrativa breve de Kafka; e os romances O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati, e O Litoral das Sirtes, de Julien Gracq.

Seria preciso investigar se, e de que maneira, esse mesmo tema da expectativa inútil é tratado no romance Zama, de Antonio di Benedetto, publicado em 1956, depois, portanto, da ilustre linhagem literária analisada por Antonio Candido. De qualquer forma, as descrições do enredo da adaptação cinematográfica homônima, escrita e dirigida por Lucrecia Martel, geralmente costumam destacar a espera do oficial da Coroa nascido na América do Sul, no século XVII, como tema central do filme.

Graças à resenha de J. M. Coetzee, publicada pelo New York Review of Books em janeiro de 2017, sobre a primeira tradução em inglês de Zama, ficamos sabendo que o tema é, de fato, tratado no romance de Benedetto. Coetzee descreve Zama “como um crioulo, um americano nascido no Novo Mundo” que pode almejar no máximo ser vice-corregedor, “servindo a um governador espanhol […]”, e que “sonha com a carta do vice-rei que o removerá para Buenos Aires, mas ela não chega”.

Na palavras de Coetzee, o personagem é um sonhador obstinado: “Além do sonho de ser devolvido à civilização, Zama sonha com uma mulher, não sua esposa, por mais que ele a ame, mas uma jovem e linda, nascida na Europa, que o salvará não apenas do seu estado atual de privação sexual e isolamento social mas também de uma condição existencial mais difícil de definir com precisão – a ansiedade por alguma coisa que ele não sabe o que é. Ele tenta projetar seu sonho em mulheres que vê de relance nas ruas, sem muito sucesso.” É de se notar, portanto, a resposta de Martel, em entrevista publicada na revista Film Comment de Setembro/Outubro de 2017:

“Quando falam comigo sobre Zama, todo mundo fala da espera. La espera. A espera não existe se não há [a] questão da identidade. Se alguém não acredita, não tem esperança em nada. Quanto mais firme a identidade, mais duro é satisfazer essa esperança. Então, dessa maneira, o que me interessa no personagem de Zama é que se ele entregasse sua existência ao seu entorno, ele seria muito menos insatisfeito. Para mim, nosso país é insatisfeito porque é na América Latina quando deveria ser na Península [Ibérica]! [Ri] […] Na Argentina ainda existem problemas muito sérios com relação à posse da terra que mesmo após 200 anos de independência ainda estão por ser resolvidos. Nós não podemos resolvê-los por que não reconhecemos a comunidade indígena como sendo nossa, como o que somos.”

Ao ler esse trecho da longa entrevista de Martel, dias depois de ter assistido a Zama, tive impressão que ela dá precedência à questão da identidade em detrimento do tema da espera. Isso, talvez na tentativa de diferenciar seu filme do romance que lhe deu origem. Para Martel, “o ponto principal” é a ansiedade por uma identidade. “A espera não existe se não há a questão da identidade.”

Na resenha de Coetzee, porém, fica claro como as duas questões no romance, não só são interligadas, mas equivalentes, uma não se sobrepondo à outra. É dessa forma que o escopo do entrecho de Benedetto parece se ampliar, adquirindo dimensão à qual o filme de Martel aspira, mas não consegue alcançar: “O sonho de recuperar o Éden, de recomeçar, animou a conquista europeia do Novo Mundo desde o tempo de Colombo. Para dentro da nação independente argentina, nascida em 1816, acorreu onda após onda de imigrantes em busca de uma utopia que acabaram descobrindo inexistir. Não surpreende que uma esperança frustrada seja um dos grande temas subterrâneos da literatura argentina. Como Zama no seu porto fluvial em pleno sertão, o imigrante se encontra despejado em um local que é tudo menos edênico, do qual não há uma escapatória evidente. O livro Zama é dedicado às vítimas da expectativa.”

O filme de Martel, por sua vez, ressente-se ao não estabelecer essa conexão íntima que Coetzee indica haver entre identidade e espera, deixando desse modo de tratar os temas em pé de igualdade. A primeira parte de Zama resulta modorrenta, sem rumo, indefinida. Uma dinâmica mais forte só começa quando a expectativa pela carta é introduzida e deságua na sucessão de dubiedades e equívocos próprios das esperas inúteis.

As cobiçadas pedras preciosas não passam de cristais de rocha sem grande valor, o bandido Vicuña Porto (Matheus Nachtergaele) diz não ser Vicuña Porto, o corregedor Don Diego de Zama (Daniel Giménez Cacho) nega ser corregedor. De certa forma, seu final trágico ratifica sua negação – decepadas suas mãos, ele se torna incapacitado para desempenhar a função.

Diante de um romance como Zama, que Martel considera uma obra-prima, ela declara, em entrevista a Rodrigo Fonseca, que ao começar “humildemente” a escrever o roteiro, a premissa “é assassinar o romance que leu, pois só assim pode sobreviver”. Se essa for mesmo condição necessária para filmar adaptações de grandes obras da literatura, parece mesmo ser “uma enorme estupidez fazer um filme baseado em uma obra-prima”, ainda segundo a própria Martel.

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