Passados onze meses desde a posse do presidente da República, “cresce a apreensão com […] a estreiteza do projeto político que vem sendo acalentado pelo Planalto”, escreveu há dias Rogério Furquim Werneck (O Globo, 29/11). Assim, para quem sempre considerou o candidato eleito em outubro de 2018 despreparado para a função de governar o país, confirma-se a expectativa desalentadora quanto ao resultado da gestão do atual primeiro mandatário.
Na área cultural, somam-se à ausência de política de Estado os pronunciamentos estapafúrdios e falsos do presidente, nomeações de pessoas sem qualificação, além de sinais de que, no caso do cinema, o propósito deliberado do atual governo é asfixiar a atividade por meio de paralisia da Agência Nacional do Cinema (Ancine) efetuada este ano, além de outras medidas ou da simples inação.
Evidência disso é não terem sido tomadas a tempo providências necessárias para permitir o investimento de recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) neste ano. Outras provas, ainda mais graves, são a intenção do governo federal de efetuar corte de 43% no orçamento do FSA para 2020 e de “filtrar” projetos a serem financiados.
De modo geral, a gravidade da situação é reconhecida, embora pouco verbalizada, mas há as polianas de sempre que em meio à catástrofe sempre veem indicações positivas. Reunidas quinta-feira passada (28/11) no evento MAX 2019, em Belo Horizonte, algumas vozes admitiram que “as coisas” não estão resolvidas, mas declararam acreditar, ao mesmo tempo, que o ano pode terminar “um pouco melhor do que começou” (“Produtores audiovisuais ainda esperam fechar 2019 com cenário menos negativo”, Samuel Possebon, Tela Viva, 28/11).
Uma dissidência mais ponderada assinalou que até o momento as únicas medidas concretas tomadas foram de caráter burocrático-administrativo, sem consequências efetivas de estímulo ao setor. A impressão que resulta da notícia sobre o debate é que prevaleceu certo otimismo ingênuo, sem fundamento aparente, em relação à retomada da atividade, tendo faltado aos produtores senso crítico em relação ao arcabouço institucional e às fontes de recursos que prevaleceram desde que a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine) passou a ser cobrada, em 2002, e a partir da criação do FSA, em 2006.
Não se trata, com efeito, tão somente de restituir a política praticada nos governos precedentes, o que parece a cada dia mais uma batalha perdida. O que se impõem é redesenhar os mecanismos existentes nos últimos doze anos e corrigir suas conhecidas deficiências crônicas, partindo da premissa correta de que o fomento direto é essencial para assegurar a vitalidade da produção cinematográfica.
Um certo alento veio do artigo oportuno, e vigoroso, de Mariza Leão publicado no Segundo Caderno do Globo (29/11), em que a produtora reagiu com a necessária presteza, “espanto e apreensão” a alguns dos gestores recém-nomeados para presidir a Fundação Palmares e ocupar secretarias subordinadas à Secretaria Especial da Cultura do Ministério do Turismo. “Parece não haver dúvida”, escreve Leão, que essas nomeações apontam “para um projeto sombrio e perigoso, autoritário e medíocre do que deva ser a arte em suas diversas manifestações”, projeto que ela considera, com razão, uma ameaça à liberdade de expressão assegurada na Constituição, desconhecendo o fato do país ser laico.
Para evitar que o valioso protesto de Leão caia no vazio, porém, será preciso que os profissionais do setor audiovisual se associem à sua anunciada reação ao “plano prático de extermínio” expresso por “declarações que constrangem o Brasil e nos geram indignação e vergonha, além de imensa preocupação”. Resta verificar se estaremos à altura dessa tarefa.
Leão considera que as afirmações de alguns dos novos gestores da cultura são “palavras ao vento” que, uma vez traduzidas em medidas que caminhem “na direção de sufocar nossa liberdade de expressão”, terão “enfrentamentos jurídicos-constitucionais consistentes”. Creio que nesse ponto Leão se deixou empolgar por justa indignação e desconsiderou a extrema dependência da produção cinematográfica do Estado, fator que ela conhece bem. Ao deixar esse aspecto crucial de lado, ela adota um viés voluntarista e ilusório quando professa que a produção cultural, considerada boa “balbúrdia”, “foge do controle dos que a querem sufocar, uma vez que com um banquinho e um violão pode-se fazer uma multidão cantar” – além da referência óbvia à música popular, a frase ecoa também o romantismo de Paulo Martins na sequência final de Terra em Transe (1967): “Precisamos resistir, resistir! Eu preciso cantar…”, exclama o personagem do jornalista e poeta.
Para Leão, “soltar os bichos que povoam nossas mentes e corações sem medo de enfrentar a ignorância e a violência que permeiam o discurso fascista em curso” estaria “em nossas mãos”. Custo a crer que seja tão simples assim e que os meios necessários para enfrentar esse embate estejam mesmo a nosso alcance.
Na fantasia de Leão, há prazo definido “para que o Brasil se livre desse governo de verdades impostas por uma ideologia inqualificável. Um pouco mais de três anos…” Mas ela mesma sabe que, na verdade, não é bem assim. Nada garante que a “ideologia inqualificável” será derrotada em 2022. Não há como assegurar que veremos, como quer Leão, “nossa gente bronzeada mostrar seu valor e desafiar com inteligência, alegria, talento e coragem essa seita que daqui a pouco desaparecerá, ou pelo menos deixará de ocupar postos de relevância nas estruturas governamentais do Brasil”.
Previsões desse teor costumam cobrar um preço alto. Não será arregaçando as mangas e entrelaçando “nossos dedos com afeto”, como propõe Leão, que a mudança política necessária será realizada neste país. Ao contrário do que ela proclama, “essa gente” não morre “de medo da nossa capacidade de amar e da nossa liberdade de criar”, conforme demonstrou em 2018. Alimentar essa esperança resultará, apenas, em novas frustrações.