Mais do que um filósofo músico, Nietzsche parece ter sido um músico filósofo. Sim, um músico que chegou à filosofia a partir da música. No livro Nietzsche na Itália: A Viagem que Mudou os Rumos da Filosofia, Paolo D’Iorio narra a temporada do então professor de filologia no balneário de Sorrento, nas “terras do sul”. Cercado por um seleto grupo de amigos, todos hospedados na mesma pousada, Nietzsche “tira férias da própria vida”, nas palavras do estudioso italiano. Esgotado e doente, confuso e decepcionado, metido em aguda crise existencial, o filósofo pede à Universidade da Basileia uma licença médica de um ano. Entre longos passeios, cochilos, conversas íntimas e rodas de leitura com os amigos, ele aos poucos reencontra as forças necessárias para repensar os rumos de sua vida. Os ares do sul exercem extraordinário efeito sobre o seu pensamento. Nietzsche se afasta definitivamente do amigo Richard Wagner e da influência do pessimismo romântico – de todo o peso da metafísica de Schopenhauer. Começa ali a surgir um pensamento mais alegre e afirmativo. Mais leve – muito mais tarde, ele escreveria: “pés ligeiros são o primeiro atributo da divindade”. Um pensamento imanente, apegado ao mundo presente. Demasiado humano. Destinado aos “espíritos livres”, vibrando nas cores da paisagem mediterrânea.
Foi um processo lento, que se deu em meio a grandes dores. D’Iorio reconstitui momentos de extrema agonia e também de grande alegria. Nietzsche improvisando sofregamente ao piano, diante da platéia de amigos embevecidos. Nietzsche em estado de beatitude, transfigurando o sofrimento num “grande sim à vida”. E é exatamente esse júbilo musical que fornece o modelo da beatitude nietzscheana. “Pois a música”, comenta Clément Rosset, “ocupa todos os ‘centros nervosos’ da filosofia de Nietzsche.” Ela é a Revelação primeira que informa sobre o sentido, a causa e o fim de toda existência. Nietzsche recusa o consolo da metafísica e da religião porque a música já ocupa tal espaço. “Sem a música, a vida seria um erro”, escreveu em Crepúsculo dos Ídolos. Em seu “poder de dizer sim ao mundo”, a música constitui para Nietzsche uma tripla iniciação: iniciação à felicidade, à vida e à filosofia. Na música, “as paixões gozam a si mesmas”, ele escreveu em Para Além do Bem e do Mal. Em O Caso Wagner, nas páginas consagradas à ópera Carmen, de Bizet, ele ressalta sua “alegria africana”, sua felicidade “sem piedade”, sob a qual pesa “o cego destino”. “Cada vez que escutei Carmen“, ele diz, “me senti mais filósofo, melhor filósofo do que de costume me parece: tornado tão indulgente, tão feliz, tão índio, tão sereno.” A música “torna o espírito livre”, “dá asas ao pensamento”. É ela que está na origem do teatro, da poesia e da prosa, é ela que fornece o modelo de todo discurso – inclusive do discurso filosófico. O gosto musical, por outro lado, é o modelo do amor pelo real. A música é a principal via de acesso à experiência filosófica de aprovação incondicional da vida. Ou seja, ela não é uma fuga do mundo, mas uma adesão a ele. A afirmação nietzscheana do real passa pela experiência da música.
Para Nietzsche, a música é alegre, e a alegria é musical. Existem, certamente, músicas que conduzem à nostalgia e à melancolia. Mas o filósofo não as leva muito em consideração. Num conhecido aforismo de A Gaia Ciência, ele diz que a “essência do romantismo” está no sentimento de falta – em notável contraponto ao sentimento de plenitude que caracterizaria o artista “clássico”. A música poderia, sim, colocar-se a serviço da expressão dessa falta, mas isso seria “uma espécie de traição” – um “desvio do efeito musical em vista de outros fins que não aquele ao qual a música pode, eminentemente, alcançar, concessão de uma alegria sem reticências e sem falta”. Isso não quer dizer que as observações de Nietzsche sobre músicos de seu repertório sejam chapadas ou binárias. A alegria, para ser plena, precisa de um crucial ingrediente de dor. Desse modo, Chopin, um dos compositores prediletos de Nietzsche – “eu daria todo o resto da música em troca de Chopin”, escreveu ele em Ecce Homo –, ainda que situado historicamente no romantismo, conseguiria ultrapassá-lo por sua excelência na expressão da alegria. Como escreveu Rosset, “Chopin é feliz até mesmo na infelicidade”. Para o estudioso francês, “sua própria melancolia é para ele uma ocasião suplementar de deleite – deleite muitas vezes interpretado como taciturno e mórbido, quando é, ao contrário, o sinal da maior saúde”.
Nietzsche sempre desconfia da expressão pesada, com pretensões de “profundidade”, tão ao sabor do romantismo alemão. Numa passagem de Para Além do Bem e do Mal, ele coteja a arte de Mozart (expoente maior do classicismo musical) com a de Beethoven (que se tornou uma espécie de arquétipo do artista romântico). Louva no primeiro tudo aquilo que os críticos sisudos taxaram como índice de superficialidade: seu “rococó”, seu “bom-tom”, a “paixão delicada”, “seu prazer infantil com chinesices e floreios”, “sua cortesia de coração”, “sua ânsia de graça”, “sua crença no sul”. Ou seja, a inocência despreocupada e a leveza de sua alegria musical. Beethoven, por outro lado, é o signo ambíguo de uma Europa a um só tempo moderna e decadente, levada ao recurso da violência devido a seu próprio esgotamento. Além do desvio do efeito musical por excelência – a alegria –, haveria, na trituração do código operada por sua música, uma reviravolta geral da arte contra si mesma. Não mais a serenidade alegre, a suavidade de Mozart, mas uma espécie de autofagia, de impulso de morte que não deixa de acenar para a possibilidade de um novo começo: “Beethoven é o produto híbrido de uma velha alma cansada que constantemente se despedaça, e de uma alma ultrajovem e por vir que continuamente chega; em sua música está aquele lusco-fusco de um luto eterno.”
Seja como for, em Nietzsche a alegria de ser culmina na expressão musical. É nela que tal alegria encontra sua realização suprema. Não consigo me deparar com tais pensamentos sem pensar nas reservas de alegria do Brasil. Alegria cruel, despreocupada, indiferente a todo o resto, que despreza acintosamente as condições materiais; alegria sem necessidade de esperança, que não raro se manifesta pelo viés afirmativo da música; alegria desconcertante, que beira a loucura e zomba de nossas ideias modernas de progresso ou melhoria. A alegria que o cineasta Pasolini encontrou quando esteve por aqui nos anos 1970, que lhe valeu a afirmação de que o Brasil é “a pátria desgraçada devotada sem escolha à felicidade.”