Há certas semanas em que é preciso tenacidade para resistir aos arautos do apocalipse. Brian Raftery é um dos mais recentes. Na revista Wired de agosto, ele escreve: “tornou-se claro que, em 2016, as pessoas estão menos arrebatadas do que nunca por filmes […] É difícil pensar em outro ano no qual filmes pareceram tão efêmeros e tão facilmente ignoráveis”, mesmo admitindo “já termos vivido antes longos períodos de mediocridade”. A sensação é de que filmes foram “empurrados ainda mais para baixo na hierarquia das nossas necessidades de cultura pop […]”. Este ano, “com frequência demais filmes são apenas um produto-que-se-torna-item-de-conversa – uma coisa a ser acrescentada à fila de espera e observada depois que o debate arrefece –, ou sequer serem assistidos. […] Claramente, cinema ainda tem impacto – ocorre apenas que, em 2016, esse impacto parece difuso, e é com certeza difícil comprová-lo. E é por isso que precisamos mais do que nunca de um daqueles filmes transformadores da cultura que tenham uma plateia de massa: eles não apenas nos unem, física e emocionalmente, eles nos abastecem de imagens e ideias que se difundem e influenciam toda a arte, mesmo se levar anos para essa influência ser percebida.”
Em réplica, Richard Brody, um apóstolo do cinema, publicou no site da The New Yorker, em 30 de agosto, artigo no qual procura refutar o arauto do apocalipse, argumentando que “o que importa não é definido pela discussão na mídia mas por cada pessoa individualmente; filmes importam para mim, donde eles importam”. Para o apóstolo, ao contrário da política, que diz respeito a todos, “a arte é o que concerne uma pessoa, intimamente. A cultura é uma questão de poder; arte é uma questão de beleza. É também uma questão de liberdade – de liberdade espiritual, de espírito livre – e, então, também é política, embora sem ser imediatamente reconhecível, e, acima de tudo, não servindo de nenhuma maneira ao tipo de discurso próprio do artigo opinativo. O poder da beleza, o impacto da beleza em uma pessoa específica, evita discussão e convida ao silêncio, até quando incita êxtase, algo radicalmente diferente da análise. Essa é a força por trás da crítica que, se tem alguma qualidade que seja, converge com a obra de arte sendo ela mesma uma inspiração literária, poética, filosófica.”
O arauto do apocalipse, de um lado, e o apóstolo do cinema, de outro, têm bons argumentos. Mas quem tem posição destituída do catastrofismo de Raftery e do idealismo de Brody, é mesmo Francesco Casetti. Em seu livro mais recente, The Lumière Galaxy – 7 Key Words for the Cinema to Come [A Galáxia Lumière – 7 palavras chave para o cinema por vir], publicado em 2015, sem edição em português, Casetti pondera: “O cinema ainda é uma presença crucial. É um legado – […]. E é uma vocação – a necessidade de lidar com imagens que representam a realidade e alimentam a imaginação. Sempre haverá filmes para assistir e filmes que nos mantém atados ao cinema. Sempre haverá alguém pronto a nos oferecer um olhar especial sobre o mundo, um olhar que tem sido específico do cinema.”
O valor da perspectiva de Casetti está em “pensar sobre o estado do cinema hoje além das proclamações fáceis que anunciam sua morte ou celebram seus triunfos. O que está acontecendo ao cinema em uma idade em que está perdendo componentes essenciais e ganhando oportunidades sem precedentes? No que o cinema está se tornando no momento em que toda a mídia, devido ao processo de convergência [velhos aparatos, como tela/projetor/filme, substituídos por plataformas multi-funcionais etc.], parece estar transbordando dos seus caminhos habituais e embarcando em novas trilhas? O que é o cinema e, além disso, aonde está?”
Aqui no Brasil, é difícil saber se esse debate está despertando algum interesse. Em âmbito universitário, talvez. O meio cinematográfico, porém, parece alheio a essas questões. Tamanha indiferença resultará de estarmos a reboque da reconfiguração do cinema atualmente em curso? Condenados mais uma vez a posições dependentes e secundárias? Essas eventualidades lembram conhecida referência de Vinícius de Moraes a uma observação do jornalista Homero Homem, feita em 1951: “diante da crise mundial do cinema […] podia se dar o caso de o Brasil passar em branca nuvem por esse fenômeno do século XX que se chama Cinema, e ter de pular para a televisão sem nunca haver conhecido o primeiro, como indústria e como arte” (Em Vinícius de Moraes, O cinema dos meus olhos, Carlos Augusto Calil org.)
Vinícius considerava que isso poderia acontecer. E nesse caso, “o Brasil tendo apenas a seu crédito umas quatro ou cinco fitas dignas do nome […] então eu cobrirei minha cabeça de cinzas, ou me casarei com um aparelho de televisão, ou desafiarei Hélio Gracie para uma luta de jiu-jitsu, ou me atirarei do prédio do Ministério da Educação e Saúde crente que sou passarinho, ou passearei de cuecas pela Cinelândia tocando um bandolim de brinquedo, ou sei lá mais o quê.”
E nós, o que faremos? A crise atual do cinema não é comparável à do início da década de 1950. Mas permanecem imutáveis indicadores de que a atividade cinematográfica em nosso País pode vir a saltar nova etapa sem ter chegado propriamente a se consolidar nem como indústria, nem como arte.
Considerando o que se produz no Brasil atualmente, haverá algo que tenha capacidade de atender às exigências do arauto ou do apóstolo? Rememorando: o primeiro proclama a necessidade de filmes “transformadores da cultura que tenham uma plateia de massa: eles não apenas nos unem, física e emocionalmente, eles nos abastecem de imagens e ideias que se difundem e influenciam toda arte, mesmo se levar anos para essa influência ser sentida”. Já o apóstolo anuncia que “a arte, que é uma questão de beleza,” diz respeito à intimidade de cada pessoa e é o espectador, individualmente, quem define o que importa. “O poder da beleza, o impacto da beleza em uma pessoa específica, evita discussão e convida ao silêncio, até quando incita algo radicalmente diferente da análise: êxtase.”
Embora Casetti admita as transformações radicais ocorridas desde que “a escuridão sagrada” da sala de cinema deixou de ser um elemento essencial da experiência cinematográfica, ele lembra, citando Raymond Bellour (La querelle des dispositifs. Cinéma-Installations-expositions/A discussão sobre os dispositivos. Cinema-instalações-exposições), que “o fim do cinema é um fim que nunca termina de acabar” – afinal, o cinema está acabando, segundo tanto se disse, desde a chegada do cinema sonoro, em 1927. Mas o cinema continuou a sobreviver desde então, segundo Casetti. E persiste, agora à luz do dia, continuando a ser “um objeto a ser descoberto”.
O próprio Casetti, porém, haveria de admitir que a refutação das visões apocalípticas, volta e meia é posta à prova. Quem examinar as estreias da semana passada aqui no Rio será tentado a concordar que faltam filmes arrebatadores, como Raftery escreveu. E, mesmo entre a maioria dos títulos que continuam em cartaz, é difícil encontrar opções que não sejam medíocres (Café society), previsíveis (Amor e amizade) ou simplesmente banais (Nahid – Amor e Liberdade). Isso, sem mencionar alternativas revestidas de pompa e circunstância que acabam se revelando celebrações pretensiosas (Os pensamentos que outrora tivemos).