Esta reportagem integra o FinCEN Files, projeto conduzido pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, o ICIJ. Com base em documentos secretos da FinCEN (Financial Crime Enforcement Network), agência do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, a investigação de dezesseis meses desvenda fluxos de dinheiro ilícito pelo mundo. O trabalho reuniu mais de quatrocentos jornalistas do ICIJ e mais 109 veículos de 88 países. No Brasil, participam do projeto a revista piauí, a revista Época e o site Poder360. Esta reportagem foi produzida por Allan de Abreu (texto e apuração), José Roberto de Toledo e Fernanda da Escóssia (edição), Marcella Ramos e Plínio Lopes (checagem) e Ana Martini (revisão).
No fim de 2014, os Schahin, tradicional família da elite paulistana, intuíam o pior para os negócios do clã. Ainda em seus primórdios, a Operação Lava Jato já apontava suas armas para o que considerava indícios de propinas milionárias nos contratos do grupo Schahin com a Petrobras. Na Câmara, os deputados se articulavam para criar uma CPI que investigasse desvios na estatal – a comissão começaria os trabalhos no início do ano seguinte. Enquanto isso, a Polícia Federal e o Banco Central investigavam irregularidades contábeis no banco da família, incluindo o sumiço de 90 milhões de dólares de uma conta na Suíça.
O grupo Schahin, que reunia todos os ramos de negócios do clã, da construção civil à exploração de poços petrolíferos, vivia uma crise sem precedentes. Foi nesse contexto que, em 13 de novembro de 2014, a South Empire International, uma subsidiária do grupo Schahin no estado norte-americano de Delaware, transferiu de sua conta no Deustche Bank a quantia de 6,2 milhões de dólares para uma conta no JPMorgan Chase & Co., em Nova York, controlada pela empresa canadense Ribas do Rio Pardo S.A.. Outros três depósitos seriam feitos entre essas mesmas contas nas semanas seguintes: 2,5 milhões de dólares em 2 de dezembro, 10 milhões de dólares no dia 17 daquele mês e 11,15 milhões de dólares em 20 de janeiro de 2015. Um total de 29,9 milhões de dólares, ou 158 milhões de reais no câmbio atual.
As três primeiras transações bancárias constam de um relatório da FinCEN (Financial Crimes Enforcement Network), braço do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos responsável por examinar transações financeiras suspeitas no sistema bancário norte-americano – seria o equivalente, no Brasil, ao Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras). Para a FinCEN, “os detalhes da transação não apresentam uma finalidade comercial e indicam que a South Empire International LLC está negociando em nome de terceiras empresas” – foi por essa razão que o governo americano considerou suspeitas as movimentações da empresa do grupo Schahin. O documento consta de um conjunto de relatórios de atividades suspeitas, obtido pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, na sigla em inglês) no projeto FinCEN Files.
Em abril de 2015, três meses após a última transação suspeita, o grupo Schahin, formado por 36 empresas e que chegou a ter 10 mil funcionários, ingressou com um pedido de recuperação judicial na 2ª Vara de Falências de São Paulo. O plano de pagamento aos credores foi homologado pela Justiça um ano depois, mas, como os Schahin descumpriram o acordo, em março de 2018 o juiz Marcelo Barbosa Sacramone decretou a falência do grupo. “Se não interessa ao sistema econômico a manutenção de empresas inviáveis, não existe razão para que o Estado, através do Poder Judiciário, trabalhe nesse sentido, mantendo recuperações judiciais para empresas inviáveis”, escreveu o juiz na decisão.
A dívida atual do grupo é de 10 bilhões de reais, segundo a KPMG, administradora da massa falida. Mas, passados cinco anos do pedido de recuperação judicial pelos Schahin, apenas 36 milhões de reais em bens leiloados do grupo foram recuperados para os credores. Uma investigação conduzida pela KPMG constatou desvios milionários de patrimônio do clã Schahin por meio de offshores e de empresas de fachada, como a própria Ribas.
A Ribas do Rio Pardo S.A. foi criada no Canadá em 2001 pelo advogado José Maria Marcondes do Amaral Gurgel – o nome, segundo ele, é uma homenagem ao município de Mato Grosso do Sul onde ficava a fazenda em que ele conheceu sua segunda mulher, nos anos 1980. Muito próximo da família Schahin, Gurgel atuou como cônsul honorário do Brasil em Vancouver, Canadá, entre 2000 e 2007. Consulta às bases de dados de offshores mantidas pelo ICIJ mostra que o nome de Amaral Gurgel aparece vinculado a empresas desse tipo em vários paraísos fiscais: Panamá, Ilhas Virgens Britânicas, Bahamas, Luxemburgo. Uma delas, aberta pelo famoso escritório panamenho Mossack Fonseca a pedido do advogado brasileiro, tinha como controlador um empresário investigado pela Polícia Federal no “caso dos sanguessugas”, como ficou conhecido o esquema de desvio de recursos públicos na compra de ambulâncias pelo governo federal, em 2006. Outra, aberta ainda nos anos 1990, teve como procurador, além de Gurgel, o lobista José Amaro Pinto Ramos, apontado pela força-tarefa da Lava Jato como operador de propinas do senador José Serra (PSDB).
A sede da Ribas do Rio Pardo S. A. fica em uma casa simples de Whitehorse, cidade de 25 mil habitantes que é a capital e único município do inóspito território canadense de Yukon, próximo ao Alasca, onde as temperaturas chegam a -36ºC no inverno. Gurgel, que ainda mantém residência em Vancouver, disse ter escolhido Whitehorse para abrigar a empresa devido a vantagens tributárias oferecidas pelo território – apesar dessas facilidades fiscais, Yukon não é considerado um paraíso fiscal.
De acordo com a apuração da KPMG, os quatro depósitos milionários dos Schahin em favor da canadense Ribas do Rio Pardo eram parte do pagamento feito ao clã por uma subsidiária da Petrobras na Holanda em decorrência da operação, pelo grupo, de um navio-sonda da estatal brasileira, o Vitória 10.000 – posteriormente, o negócio motivaria condenações judiciais de corrupção contra a cúpula do grupo e diretores da Petrobras. Para internar o dinheiro no Brasil, a Ribas do Rio Pardo firmou cinco contratos de câmbio, no total de 30,9 milhões de dólares, para a CBA (Companhia Brasileira de Agroindústria), que pertence à Ribas e cujos diretores, na época, eram a então mulher e uma das filhas de Amaral Gurgel. Esse dinheiro, por fim, sempre de acordo com a KPMG, serviu para a CBA comprar um edifício de dez andares do mesmo grupo Schahin, na Vila Mariana, em São Paulo, por 75 milhões de reais – ou 100 milhões em valores de hoje – atualmente o imóvel está alugado por 450 mil reais mensais para uma faculdade particular. Para a administradora da massa falida, os Schahin utilizaram as empresas do advogado Amaral Gurgel para ocultar patrimônio, evitando a perda do bem para os credores do grupo. “Na prática, o dinheiro saiu dos Schahin no exterior para voltar aos Schahin no Brasil”, afirma a advogada da KPMG Osana Maria da Rocha Mendonça.
A apuração da KPMG motivou o que se chama de ação revocatória, em que a administradora da massa falida pede à Justiça que o prédio passe a integrar a massa falida do grupo Schahin. Nesse processo, que também tramita na 2ª Vara de Falências de São Paulo, o juiz Marcelo Sacramone determinou o bloqueio do imóvel para evitar uma possível venda do bem. Ainda que a transferência de recursos tenha ocorrido antes do pedido de recuperação judicial, o caso pode configurar fraude aos credores, crime previsto na lei 11.101, de 2005, com pena prevista de três a seis anos de prisão. A decisão de ingressar ou não com ação penal contra os envolvidos é do Ministério Público Estadual, que não quis se pronunciar sobre o caso.
À piauí, o advogado Gurgel disse que os 158 milhões de reais que recebeu do grupo Schahin se referem ao pagamento de honorários advocatícios e ao retorno de investimentos feitos por ele no grupo no início dos anos 2000. Afirmou também que a compra do edifício não possui relação com o grupo Schahin e “provém do sucesso” em seus negócios “como industrial farmacêutico, fazendeiro, advogado e grande investidor do mercado financeiro”. Sobre as offshores que abriu em paraísos fiscais, disse que foi a pedido de clientes. “Não tenho conhecimento das razões que levaram meus clientes a formarem aquelas sociedades”, disse, em entrevista por e-mail. A defesa do grupo Schahin disse apenas que a inclusão da família na investigação da KPMG é “indevida”.
Gurgel protagonizaria outro episódio nebuloso envolvendo os Schahin. Em maio de 2015, um mês após o grupo pedir recuperação judicial, duas offshores panamenhas, ambas representadas por ele, viraram sócias nas holdings MTS e Satasch, que pertencem, respectivamente, aos irmãos Milton e Salim, e que controlam as empresas do grupo no Brasil. Para especialistas em recuperação judicial ouvidos pela piauí, a entrada das duas empresas do Panamá no grupo Schahin pode ter sido uma estratégia para blindar o patrimônio dos dois irmãos como pessoas físicas, caso fosse decretada a falência do grupo – o que, de fato, ocorreu. Gurgel disse à piauí, por e-mail, que criou as duas offshores a pedido dos Schahin. E repetiu: “Não conheço as razões que levaram meu cliente a formar aquelas duas sociedades. Eu nunca soube do uso daquelas sociedades para fins ilícitos”.
O império empresarial dos irmãos Schahin começou a ser construído em 1966, quando os irmãos Salim, Rubens e Milton, netos de prósperos comerciantes vindos do Líbano no início do século XX, criaram uma incorporadora imobiliária. Na esteira do boom dos conjuntos habitacionais nos anos 1970, em pleno milagre econômico, o negócio deu tão certo que, na década seguinte, o clã diversificou suas atividades com agropecuária, banco e empresa de energia. Na década de 1990, o grupo fincou um pé no setor público, com obras de grande porte, como o Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia). Mas foi no governo Lula que os Schahin ingressaram no seleto grupo dos grandes conglomerados empresariais brasileiros, primeiro com a explosão do crédito que impulsionou bancos médios como o dos Schahin, depois por meio do acordo com a Petrobras para explorar navios-sonda, assinados em 2007 pelo então diretor da estatal Nestor Cerveró.
Mas a crise financeira mundial no ano seguinte abalou os negócios dos irmãos Schahin, a começar pelo banco. A instituição financeira chegara aos anos 2000 especializada no financiamento de veículos e de pequenas empresas. E entrou na mira do Banco Central, alvo de fiscalizações, processos administrativos e multas constantes. Para manter a impressão de saúde financeira, o banco vendeu títulos de créditos sem lastro, repassou créditos podres a outras empresas do grupo e ainda fez operações cruzadas com outros bancos. Com isso, criou-se um lucro fictício total de 325 milhões de reais em 2009 e 2010. As fraudes motivaram uma denúncia do Ministério Público Federal contra Milton, Salim e Rubens, além de Carlos Eduardo (filho de Salim) e Pedro Henrique (filho de Milton), por crimes contra o sistema financeiro nacional e formação de quadrilha.
Além das fraudes bancárias, o MPF acusou os Schahin de se apropriarem indevidamente de 4 milhões de reais do banco e sumirem com 90 milhões de dólares de uma conta no banco suíço Cladiren Leu (atual Crédit Suisse). O dinheiro fora depositado pelo banco Schahin na conta em Zurique em 2007, mas no ano seguinte o Clariden apropriou-se dos 90 milhões de dólares, alegando que cobrava um empréstimo neste exato valor. A família brasileira disse à Polícia Federal que a assinatura do suposto pedido de empréstimo por Milton e Salim ao Clariden era falsa, mas estranhamente a família evitou tomar medidas formais de cobrança contra o Clariden. Em depoimento à PF, Salim disse que na época enviou o filho Carlos Eduardo à Suíça para tratar do assunto com o Clariden. “Fomos orientados a não recorrer judicialmente pelo risco da morosidade da justiça e sim tentar uma solução administrativa com o Banco Clariden”, disse. O dinheiro desapareceu.
O caso gerou uma ação penal que tramita na 2ª Vara Federal Criminal de São Paulo e ainda não foi julgada. Procurada pela piauí, a defesa de Milton Schahin não quis se pronunciar. A advogada dos demais integrantes da família não entrou em detalhes sobre o caso: “Só o que posso afirmar é que a defesa entende e sustenta que não houve prática de qualquer crime”, disse Maria Elizabeth Queijo.
Quebrado, o Banco Schahin foi vendido em 2011 ao BMG por 230 milhões de reais. Naquele mesmo ano, segundo documentos da base de dados do ICIJ, Milton Schahin abriu uma offshore nas Bahamas denominada “The firth of forth foundation” com conta no Royal Bank of Canada. A offshore não consta na declaração do imposto de renda de Milton relativa ao ano de 2011 – o documento está anexado na ação penal da 2ª Vara Federal Criminal em São Paulo.
Por uma prática semelhante, Carlos Eduardo, filho de Salim, foi condenado a dois anos e meio de prisão pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Ele mantinha 2,9 milhões de dólares em uma offshore nas Ilhas Virgens Britânicas, valor não declarado à Receita Federal no Brasil. A pena foi substituída por prestação de serviços comunitários.
Outra operação suspeita do banco colocou os Schahin no olho do furacão da Lava Jato e da CPI da Petrobras. Em 2004, o banco da família emprestou 12 milhões de reais ao pecuarista José Carlos Bumlai, amigo do clã desde os anos 1990 – o dinheiro emprestado e nunca pago por Bumlai, segundo delatores, serviu para quitar uma dívida do PT. Em troca, a licitação para a operação do navio-sonda Vitória 10.000 foi direcionada para o grupo Schahin, ainda que a empresa não tivesse capacidade operacional para aquele serviço. Em 2009, para dar baixa no empréstimo com os Schahin, Bumlai simulou a entrega de embriões de gado de elite para a família. Para manter a operação do navio-sonda e obter obras menores da Petrobras, como a construção de um gasoduto no Vale do Paraíba, interior paulista, os Schahin também pagaram propina à diretoria internacional da estatal por meio de contas na Suíça controladas por offshores.
Na tarde de 27 de maio de 2015, os Schahin foram interrogados, um a um, pelos deputados integrantes da CPI. Amparados em um habeas corpus do Supremo Tribunal Federal, o clã permaneceu em silêncio diante do bombardeio de perguntas. No ano seguinte, o então juiz da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba, Sergio Moro, condenou Bumlai, Milton e Salim a nove anos de prisão cada um, por corrupção e gestão fraudulenta. Para escapar da prisão, Salim e Milton fecharam acordo de delação com a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, pagando uma multa, somada, de 8,5 milhões de reais.
As mais de 57 mil páginas da ação judicial de falência do grupo Schahin reúnem 3,8 mil credores. Entre eles, doze bancos, que cobram da família o pagamento de empréstimo de 475,4 milhões de dólares, em contrato assinado em 2009. Para pagar a dívida, a 27ª Vara Cível de São Paulo determinou a penhora das contas bancárias dos Schahin em 2016. Mas só foram encontrados 613,33 reais nas contas, o que os bancos denominaram “um evidente esvaziamento patrimonial” – uma delas, no banco BTG Pactual, foi encerrada apenas três dias antes do pedido de recuperação judicial do grupo.
Enquanto isso, o clã mantém um “luxuoso estilo de vida”, segundo alegam os bancos. Milton Schahin e a mulher passaram o Carnaval de 2016 em hotel quatro estrelas de Paris, para onde viajaram em voo de classe executiva que custou 32 mil reais. Seu irmão, Salim, mora em apartamento de 663 m² na Alameda Franca, nos Jardins, em São Paulo, avaliado em 8 milhões de reais. A Justiça negou a penhora do imóvel, requerida pelos bancos na ação.
O grupo Schahin também tem credores bem mais humildes. Em janeiro de 2014, o eletricista Joaci Teles Taveira, hoje com 65 anos, levou uma forte descarga elétrica em obra dos Schahin no interior de Goiás – ele não utilizava luvas de proteção. Taveira ficou afastado do emprego até novembro daquele ano. Ao retornar ao trabalho, foi demitido antes dos doze meses de estabilidade previstos em lei. Em 2015, a Justiça do Trabalho condenou o grupo a pagar 86 mil reais em indenização ao eletricista. Desde então, ele aguarda sua vez de receber o que os Schahin lhe devem. “Não sabemos nem mesmo se ele irá receber o que é de direito dele”, disse Cosmo Alexandre da Silva, advogado de Taveira – o eletricista, que hoje mora em um povoado de Presidente Dutra, interior do Maranhão, não foi localizado.
Procurados pela piauí por telefone, e-mail e Whatsapp entre os dia 1º e 10 de setembro, Milton, Salim e Carlos Eduardo Schahin não responderam ao contato. A defesa deles no processo de falência limitou-se a dizer que a família deseja pagar todos os credores do grupo, especialmente os trabalhistas. Segundo a defesa, a família não irá se manifestar sobre as offshores e as transferências bancárias para a Ribas do Rio Pardo S.A..