A dissecação autobiográfica de Janet Malcolm
No livro, como nos melhores exemplos de “natureza morta” – em que a excelência reside na pulsação misteriosa da vida contida em certo objeto inanimado –, as imagens manuseadas pela autora são tudo menos imóveis
Filha de judeus checos que migraram aos Estados Unidos para fugir do nazismo, Janet Malcolm foi uma peça-chave na consagração da revista The New Yorker como um espaço vital para práticas jornalísticas arrojadas, construindo, ao longo de décadas, inúmeros retratos de figuras centrais na cultura contemporânea. Em Imagens imóveis: sobre fotografia e memória – livro póstumo, lançado recentemente no Brasil – ela se debruça sobre sua própria história, mais precisamente sobre um conjunto de imagens, a maioria delas fotos de família.
Malcom analisa as fotos de maneira delicada e incisiva, distanciando-se de modos confortáveis e usuais de lidar com a memória. Ao manter uma atitude cética similar à que usava para dissecar os personagens de suas reportagens, a autora examina a si própria como um problema sem solução fácil. Nada parece resolvido e, embora sua prosa cristalina seja sempre acessível, o que fica mais evidente é como a memória, núcleo da identidade, é volúvel e misteriosa. “A perversidade da memória”, ela diz em certo momento, “seu atavismo caprichoso”, perplexa com o fato de ser capaz de lembrar frases e momentos banais com pessoas que desapareceram completamente de sua vida há muito, enquanto outros eventos e incidentes, de supostamente maior monta, evaporam, custam a retornar à consciência.
O livro se torna a autobiografia que Malcolm ensaiou escrever e não escreveu de fato. Sua fisionomia emerge à medida que percebemos a maneira como ela observa os outros personagens das fotos. Ela diz a certa altura que “na literatura, coisas interessantes acontecem a pessoas interessantes; na vida, com muita frequência, coisas interessantes acontecem com pessoas que não são interessantes”, e somos convencidos disso pelo devir desse capítulo – uma história rocambolesca envolvendo um casal de amigos de seus pais.
Há também esboços de figuras que não foram perpetuadas em fotos, mas que ficaram na memória. E há o tratamento de pessoas íntimas, como o próprio pai de Malcolm, um médico com um jeito bonachão que aparece em várias fotografias e merece um capítulo inteiro, intitulado “Papai”. Já de saída, Malcolm diz: “Minha cabeça está cheia de adoráveis lembranças dele, sem trama.” Mantendo-se fiel a essa observação, evitando criar uma narrativa facilmente digerível em torno da figura do pai, Malcolm, ao mesmo tempo que faz uma autobiografia, desobedece os clichês do gênero.
Como nos melhores exemplos de “natureza morta” – em que a excelência reside na pulsação misteriosa da vida contida em certo objeto inanimado –, as imagens manuseadas por Malcolm são tudo menos imóveis: ao movimentá-las com seus comentários, nós somos, também, comovidos pela vida que parece se espalhar pelo livro.
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