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Um estado de orfandade

    A mãe, em Manaus, na década de 1950: Neuza não gostava de dormir em cama, mas na rede ou no chão, ouvia os sons os mais inaudíveis, como o de uma mosca, e comia como um passarinho CRÉDITO: ARQUIVO PESSOAL

relato pessoal

Um estado de orfandade

A mãe, o pai, a filha, o irmão – e o impossível da história de cada um

| 07 nov 2025_13h08
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“A primeira aparição da mãe que guardo na memória é de uma mulher belíssima, nunca jamais houve outra tão bela. Pele cor de sapoti, e se eu pudesse sentir o gosto da mãe seria levemente adocicado e estonteantemente suculento e insinuante. O gosto vai logo embora, como o de uma fruta líquida, mas a boca fica sugando a saudade.”

Assim Conceição Freitas descreve, em um relato pessoal na edição deste mês da piauí, a sua mãe, Neuza, filha de um negro nordestino com uma indígena amazônica. Seu avô materno era “um cavador de buraco antes que a pessoa encarregada desse ofício passasse a se chamar bombeiro hidráulico”. Sua avó materna era filha de um tuxaua que foi sequestrada na aldeia, nas proximidades de Manaus, e levada para a cidade. Era essa a história que Freitas ouvia sobre seus ascendentes, contada pela mãe, “misturando orfandade e fantasia”.

Freitas conta que Neuza era uma mulher sexualmente livre. Antes dos 20 anos, na Manaus da década de 1950, perdeu a virgindade com o namorado – e foi expulsa de casa. Passou a viver com um baiano 25 anos mais velho que apareceu em Manaus ostentando riqueza e prometendo levá-la para conhecer o Bra­sil. Logo, ela engravidou dele. “Assim que eu nasci, os dois desceram o Rio Negro, atravessaram o encontro com o Rio Solimões e desaguaram no Amazo­nas até Belém, com a recém-nascida e uma mala de dinheiro”, rememora Freitas.

A família foi viver numa palafita sobre solo seco, a uns 200 metros do Rio Guamá. Na fren­te da casa passava um esgoto a céu aberto. Para chegar à rua que a levava à escola, Conceição Freitas precisava atravessar a vala nojenta. “Na minha escala de meni­na, era um precipício de lama, dejetos, baratas, lacraias, lagartixas, siris olhu­dos que entravam e saíam dos buracos, como se esperassem que eu caísse no esgoto para me devorarem”, ela escreve.

O pai era um homem sem estudo, mas sabia das coisas: matriculou a filha em colégio bom de meninas ricas. “Além de mim, menina de pele e cabelo cor de burro fugido, como o pai vivia repetindo, e de uma amiga de feições indígenas, só havia brancas no colégio de escada de mármore, freiras com hábitos até o pé e a imagem original de Nossa Senhora de Nazaré na capela da escola”, conta Freitas.

Quando ela era ainda adolescente, um acidente trágico atingiu sua família. A morte do pai mergulhou a mãe, a menina e seu irmão caçula em um “estado atordoado de orfandade”, como descreve Freitas: “O caçula parou de estudar, a mãe-órfã começou a namorar, e eu continuei querendo fazer bonito para o pai morto – e desse amor por homens inexistentes nunca consegui sair.”

Assinantes da revista podem ler a íntegra do texto neste link.

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