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“A alegria é a prova dos nove”

Zelia Duncan | 15 jun 2011_17h06
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Crédito: Foto de Walter Firmo

Existem vários tipos de músicos e formas de lidar com a música, obviamente de acordo com o talento e as escolhas de cada um. Há compositores diversos que não tocam instrumentos, porém compõem de boca, como se diz, verdadeiros clássicos. Alguns se resolvem em caixinha de fósforo, o que também é uma arte. Ciro Monteiro e Elton Medeiros não me deixam mentir. Que os cigarros desapareçam se for o caso, mas nunca essa chama em pacotinho, promessa de suingue tão brasileiro!

Há os compositores-mestres, que dominam com singularidade seus instrumentos, como por exemplo, João Bosco, Ivan Lins, Chico Buarque, Joyce, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Djavan, Milton Nascimento, Luiz Tatit. Alguns da minha geração, Chico Cesar, Lenine, Moska, Pedro Luis, Zeca Baleiro. Há os compositores-maestros, como Tom Jobim, Radamés Gnatalli, Francis Hime, Edu Lobo. Os dois últimos foram recentemente convidados da OSESP, orquestra paulista , a mais importante da América Latina, para orquestrarem peças próprias, executadas por cordas, madeiras, metais, coro e tudo mais que se espera de uma grande orquestra.Há ainda os autodidatas geniais como Itamar Assumpção ou os sábios irreverentes, como Tom Zé e Jorge Mautner.

A gente sempre esbarra, em algum momento da vida, com aquela antológica foto de Pixinguinha na cadeira de balanço. É muito bonito constatar a relação de um grande músico com seu instrumento. O saxofone é como uma extensão de suas mãos, um link de harmonia com o céu que ele contempla ali. A visão da completude.

Quando ainda morava em Brasília, fui assistir ao Hermeto Pascoal. Reza a lenda (olha ela aí!) que, antes do show, vez em quando, ele invade seu próprio palco e “rouba” as partituras dos músicos . Foi um show que me marcou pra sempre, pois além de vê-lo tocando não só os convencionais instrumentos, tocou chaleira. Isso mesmo, chaleira, aquela que esquenta água pro café. Ao final, foi saindo do palco, em fila indiana com sua banda que, seguida por toda plateia, deu a volta no teatro pelo lado de fora. Nós todos fomos seguindo aquela literal mistura de flautista de Hamelin com Papai Noel, sem questionar, apenas constatando o quanto a vida pode ser surpreendente e alegre. Procurem assistir a um video dele com sua trupe, dentro dágua, soprando uns vidros. É de outro mundo. Hermeto diz que quando você não toca o instrumento, ele te abandona…

Outro mago impressionante é o amado percussionista Naná Vasconcelos. Naná viveu durante muitos anos fora do Brasil, tocou com grandes nomes internacionais. Hoje mora em Olinda, comanda a abertura do carnaval de Recife, entre muitas outras coisas. Naná é envolvido com as nações de maracatu, coisa séria e profunda. Tem vários álbuns gravados e o dom de hipnotizar a platéia e fazê-la cantar sons da natureza. Uma coisa de louco, uma epifania coletiva. Certa feita, num ensaio, ele começou a olhar pro teto e perguntar: “hã?” Todo mundo fez silêncio e ele continuava, “hã? O que? Ah, o suingue? Calma, já tá chegando!” e caiu na gargalhada! E ainda sabe cozinhar esse Naná! Ora, ora, Deus às vezes não é justo!

Mas creio que o primeiro a quem assisti ao vivo foi Egberto Gismonti, que lançou álbuns antológicos pela lendária gravadora ECM. No show, anos 80, ele trazia a novidade de um sintetizador no palco, o tal do OBXA. Tudo parecia vir de outro planeta. Recomendo um álbum em especial, onde ele toca apenas violão, se não me engano, chamado Solo. Não, não, tem o Água e Vinho, ou melhor, um que se chama Palhaço, não, nada disso, fechem os olhos, escolham qualquer um, a viagem é certa.

Tive o privilégio de ver Raphael Rabello e seu sete cordas ao vivo, o que também era uma experiência à parte. O cara tinha um coração em cada mão e uma técnica absurda. E ainda uma característica muito interessante: adorava acompanhar eventualmente uma voz, coisa que não é comum entre vistuosos. Fã incondicional da diva Elizeth Cardoso, gravou com ela – quando ele já era uma grande estrela de seu instrumento -, um álbum vigoroso, apaixonado e não à toa intitulado Todo Sentimento. Ouça e se chorar, saiba que não foi o primeiro e nem será o último.

Tudo isso veio à tona em minha memória porque fui convidada para um “pequeno” sarau, onde Hamilton de Holanda e Yamandu Costa tocariam um arranjo especial de Noel Rosa, para um pequeno grupo de pessoas amigas.

Pra falar de Hamilton e sua obra, que já é vasta, precisaria de um post só pra isso. Assim como Yamandu, esse gaúcho arretado, que já tem estrada e reconhecimento de sobra por aí. Mas os dois juntos causam uma terceira sensação que ficou marcada em quem esteve presente. Eles nos “enganaram”, dizendo, “vamos ensaiar primeiro”! Digo enganaram, porque tudo ali soa encontro, tudo parece certo, até os descaminhos e atalhos. Um olhar aqui, uma franzida de testa ali, uma risada que só eles entendem e lá vem a melodia de Noel, descendo a ladeira, pra subir de novo logo ali. E são desempenhos tão elevados, que tudo parece muito fácil. Parecia que, se eles parassem, a música prosseguiria. E de repente a rainha Alcione, que já tinha cantado e calado tudo que é passarinho, desvenda: “vocês parecem duas crianças!”. Bingo! Alegria de criança! É exatamente isso. O segredo desses dois caras ali, fazendo misérias… e sorrindo, como quem solta uma pipa, ou anda num carrinho de rolimã, cujo freio existe, mas ninguém aciona. Improvisar é meio isso. O freio improvável.

Tive o privilégio de gravar e viajar com Hamilton. Ele foi o único músico até hoje que olhava pra mim, no meio da canção, nós dois marejados de música, enquanto seus dedos não largavam das dez cordas de seu bandolim e sussurrava:” tá lindo!”.

Não posso deixar de pensar que a alegria emocionante do músico brasileiro, que se sente bem resolvido com sua profissão, sempre o vai diferenciar do resto do mundo. Não essa alegria tipo exportação surtada, mas a alegria que foi detectada faz tempo, por Oswald de Andrade. Aquela que não desgruda da gente quando desfrutamos da nossa mistura e quando estamos sendo nós mesmos.

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