Algum jovem, bem jovem mesmo, que por ventura me leia neste momento, não há de saber quem foi “Araca, a Arquiduquesa do Encantado”, estou certa? Assim era chamada a cantora favorita de Noel Rosa e tantos outros, a super Aracy de Almeida. Mulher absolutamente singular em sua figura e trajetória.
Quando criança, sempre via o programa de calouros de Silvio Santos, aos domingos. Uma das figuras mais bizarras e intrigantes, ao lado de Pedro de Lara, era então nossa Aracy. Eu a via com preconceitos de criança e não entendia o porquê dela ter mais poder que os outros, sendo tão aparentemente rude e feiosa. Foi minha mãe que primeiro me disse: “ela era uma grande cantora, tem o melhor ouvido do programa, por isso o direito de reprovar os mais desafinados e ainda passar-lhes uma boa espinafração”.
E Aracy cumpria bem aquele papel de estraga prazeres do programa. Fazia tanto sucesso que, segundo o livro do poeta , produtor e amigo, Hermínio Bello de Carvalho, chegou a ser a jurada mais bem paga da televisão brasileira. Com o gordo contra-cheque, Aracy abriu mão de qualquer pontinha de glamour que fosse, pois era o que se esperava dela. Era extremamente despojada de qualquer aparente vaidade e debochada como jurada. Porém, no passado, fora uma cantora fina, afinadíssima, antenada, querida pelos compositores da época, entre eles o adorável rabujento, Ary Barroso, que simplesmente a escolheu, como primeira cantora de “Aquarela Do Brasil”.
O mais interessante é que Aracy era um paradoxo com duas pernas. Nascida e criada no subúrbio carioca do Encantado, era chegada aos palavrões e à vida boêmia. Noel a arrastava pelas noites, cantavam em casas noturnas e bordéis eventuais. Foi casada com um goleiro de futebol, depois viveu com um general aposentado. Junte a isso leituras sofisticadas, amizades com Di Cavalcanti, de quem tinha quadros nas paredes, poesia de Augusto dos Anjos e textos de psicanálise. Amava o natal, era exímia decoradora da festa. Gostava de cozinhar com especiarias, mesa posta com cristais e pratarias. Em casa, bermuda e camisa amarrada na cintura. E pasmem, cuecas. A diva Aracy queria o conforto do(da) samba-canção de todas as formas possíveis e imagináveis.
Transgressora por excelência, tinha expressões famosas e tiradas tão rudes, quanto sensacionais. Só andava de trem (que chamava de “avião dos covardes”). Araca era tudo ao mesmo tempo agora. Chamada de “o samba em pessoa” e “a intérprete perfeita de Noel”, isso dito inclusive por ele mesmo, viveu a fase áurea dos auditórios das rádios, que eram as grandes propagadoras das vozes mais lindas e poderosas do Brasil.
No meu imaginário, a mágica de ouvir um ídolo, mais do que idolatrar sua imagem física, me parece arrebatadora ao extremo porque liberta a imaginação. Você se emociona com o que não está imediatamente vendo. Dizem que no enterro de Chivo Alves, mais de 500.000 pessoas foram para as ruas chorar e render homenagens ao Rei da Voz. Em tempos sem televisão, é algo extraordinariamente bonito.
Então Araca, a diva transgressora, era poesia na época do rádio e escracho na fase televisiva, que foi justamente a que, infelizmente, mais ficou marcada na memória das pessoas, pois a TV tem essa propriedade de trator. Para o bem e para o mal. Não se pode julgar essa intérprete tão fina. Fico aqui me perguntando, que lugar haveria para ela, se não tivesse sido jurada, personagem do Ibope selvagem de domingo. De que viveria? Não importa mais, porém, um pouco de reconhecimento vale ouro pra memória dela e pros nossos ouvidos.
Salve Aracy de Almeida, que fez do samba e do samba-canção sua roupa íntima e um tesouro valioso pra nossa cultura.
Semana que vem, eu juro, se não falar do presente, falo do futuro.
E como diria Aracy:
Valeu, matusquelas!
OBS-Araca Arquiduquesa do Encantado, é o nome do livro de Hermínio Bello de Carvalho, que empresta suas palavras deliciosas, pra nos falar de sua musa.