A música popular perdeu a centralidade que já ocupou na vida brasileira. Os acontecimentos políticos recentes, que vêm sacudindo o país desde as passeatas de 2013, talvez possam testemunhar esse fenômeno. Eles não provocaram nenhuma reverberação musical, como se a música não tivesse sido requisitada como força motriz, potência existencial capaz de lhes dar voz e ampliar seus sentidos. O que se ouve são alguns “gritos de guerra” (em geral bastante velhos e gastos), mas nada que se assemelhe a uma “dimensão musical” propriamente dita. Os acontecimentos históricos não parecem mais ligados a um imaginário musical com um consenso mínimo que seja. Na hora de “defender a democracia” em praça pública, ou seja, defender uma espécie de bem comum, é Chico Buarque que continua a ser evocado – o que automaticamente reconecta a atualidade com o passado da luta pela democracia, transmitindo a sensação meio confusa de que não há um “novo momento político”, mas a reencenação de antigas batalhas, com os personagens de sempre. Qual será, no futuro, a trilha sonora das imagens de manifestantes ocupando triunfalmente o Palácio do Planalto? Racionais? Emicida? Arlindo Cruz? Los Hermanos? Coldplay? Chico Buarque, mais uma vez? A política parece aspirar a certos horizontes coletivos que a música popular não é mais capaz de alcançar.
Não estou bem certo disso, mas minha percepção é a de que a política foi “desmusicalizada”. E não me refiro apenas à ausência de certa dimensão musical no imaginário político de hoje. O próprio discurso político se apresenta apartado de sua essência musical. Tornou-se mais histérico, é fato, embora menos ritmado, menos fluido e melodioso – mais histérico e menos emocional. Penso no caráter melífluo das falas de Leonel Brizola, com suas vogais alongadas, suas oscilações de intensidade, suas pausas dramáticas finamente alocadas entre sobrancelhas arqueadas. Penso também no aprimoramento musical da oratória de Lula, que de “sapo barbudo” se metamorfoseou em “jararaca” (talvez “naja” fosse melhor, a serpente musical e hipnótica). Mas penso sobretudo nos candidatos das últimas eleições e nos políticos que dão o tom da cena nacional. Quase não há música. E música, aqui, de algum modo que não sei explicar, equivale à agudeza de pensamento, em retórica que se desdobra em capacidade persuasiva, em comunicação com dimensões que ultrapassam o puro conteúdo verbal. E isso, por sua vez, indicaria uma compreensão da política que vai muito além da gestão dos assuntos cotidianos.
Nos anos 1960 e 1970 a música popular era o principal signo identitário das novas gerações. Houve, por assim dizer, uma “musicalização da cultura”: palavras e discursos de protesto não eram suficientes, era preciso que fossem acompanhados de entoações melódicas, de potência épica e do pendor mítico da comunicação musical. A vida literalmente pulsava ao som de canções, que pareciam capazes de apontar os novos rumos do tempo. Essa interação direta entre música e cultura se desfez nas últimas décadas. No Brasil e no mundo.
A pergunta que vem sendo repetida desde então é: o que aconteceu com nossa música popular, que não desempenha mais um papel central na cultura? Talvez fosse melhor perguntar: o que aconteceu com nossa sociedade, que relegou a música a um lugar secundário e algo supérfluo?