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Formado em direito pela Universidade São Judas Tadeu, mestre e doutor pela PUC-SP, o advogado Hédio Silva Jr. se tornou em 2005 secretário estadual de Justiça e da Defesa da Cidadania de São Paulo, no governo de Geraldo Alckmin, em substituição ao hoje ministro do STF Alexandre de Moraes. No comando do próprio escritório, ele se dedica há décadas a casos em defesa da igualdade racial e dos direitos das religiões de matrizes africanas, frequentemente em atuação pro bono. Foi defensor de meninas negras vítimas de racismo, em casos recentes de repercussão: o de uma neta do sambista Arlindo Cruz, que recebeu ofensas enquanto jogava vôlei na Escola Mais, e da filha da atriz Samara Felippo, que teve xingamentos escritos em seu caderno na escola Vera Cruz. Os dois episódios aconteceram em instituições particulares de São Paulo. Há algumas semanas, Silva Jr. passou a trabalhar, ao lado do colega Anivaldo dos Anjos, em um caso que terminou em tragédia: a morte de Pedro Henrique, aluno do Colégio Bandeirantes, um dos mais tradicionais da capital paulista.
Pedro Henrique tinha 14 anos quando consumou o suicídio no trajeto a caminho da escola, no dia 12 de agosto. Ele cursava o último ano do ensino fundamental no Bandeirantes graças a uma bolsa integral obtida pelo programa Ismart, instituto que financia os estudos de bons alunos da periferia em colégios de excelência. A piauí publicou uma reportagem sobre o caso.
Morador de um conjunto habitacional no bairro Vila dos Remédios, em Osasco, o adolescente negro e abertamente homossexual vinha se queixando de bullying por parte dos colegas. Um deles chegou a empurrá-lo e a gritar em seu ouvido dentro de um elevador da escola, que tinha câmeras. A família comunicou a Ismart, que afirma ter falado com o Bandeirantes. Protestos contra racismo e homofobia tomaram conta da porta do colégio, que sempre se defendeu dizendo que possui programas de integração entre os alunos e ações de desenvolvimento de competências socioemocionais.
Silva Jr. e Anjos defendem a família de Pedro Henrique e preparam uma uma série de ações. O Colégio Bandeirantes será o primeiro a ser acionado, mas não o único. “Existem diferentes cargas de responsabilidade”, diz Silva Jr. Familiares de Pedro, também ouvidos pela piauí, afirmam que estão de acordo com os critérios adotados pelos advogados.
A estratégia jurídica do escritório está baseada em uma culpabilidade múltipla, que envolve não só a instituição de ensino paulistana mas a família dos adolescentes suspeitos de serem autores de ofensas, o Ismart, incumbido de estabelecer o vínculo entre o jovem e o colégio, e o Estado, encarregado da fiscalização do sistema de ensino. As ações judiciais serão concebidas em momentos separados. Silva Jr. afirma que uma primeira vitória já foi conquistada em uma ação preparatória para obtenção de provas, protocolada no início de setembro, que mostram a realidade do jovem dentro do Bandeirantes. O material obtido está sob sigilo judicial.
A primeira apuração que já está em curso é a de Ato Infracional Análogo ao Crime de Injúria, baseada na determinação do Supremo Tribunal Federal do ano passado, que definiu que a homofobia e a transfobia sejam enquadradas como injúria racial. A investigação, solicitada pelos advogados no escopo do inquérito sobre a morte de Pedro, abrange quatro adolescentes nomeados pelo jovem no áudio de 6 minutos e 12 segundos deixado por ele antes do suicídio, no qual descreve a conduta de agressões e ataques. “Nós esperamos que a ação resulte em medidas socioeducativas para os menores. Vamos propor a prestação de serviço comunitário em uma ONG voltada ao público negro ou ao ativismo LGBTQIAP+”, diz Silva Jr.
A possibilidade de ato infracional ocorre porque os estudantes são menores de 18 anos e não podem ser enquadrados pelo Código Penal. Após a conclusão do inquérito, que está sendo conduzido no 23ª DP de São Paulo, em Perdizes, o caso deverá ser analisado pelo Ministério Público. Caso a denúncia ocorra, ela será julgada pela Vara da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Os indícios encontrados até o momento já suscitaram uma mudança nos rumos da apuração. O inquérito, que havia sido enquadrado inicialmente como “suicídio consumado”, que é o atentado contra a própria vida, está sendo averiguado agora como suspeita de “induzimento ao suicídio”, que aponta algum tipo de interferência de terceiros no ato. “É uma alteração que muda tudo em relação ao entendimento policial da ação”, salientou o advogado. A informação foi confirmada pela piauí com documentos da investigação. Procurado pessoalmente no 23ª DP, o delegado Rogério Luís Marques não concedeu entrevista.
Até o início de outubro os advogados devem protocolar a ação principal, que tem dois eixos. O primeiro é “ação de obrigação de fazer”, instrumento jurídico utilizado para o cumprimento de exigências legais ou contratuais e que podem estar relacionadas à violação de direitos individuais ou coletivos. Assim, eles pretendem responsabilizar o Colégio Bandeirantes por “não garantir a integridade física, moral e psíquica dos seus alunos”. Silva Jr. cita como argumento a promulgação da lei 14.811, de janeiro, que institui medidas de proteção à criança e ao adolescente contra a violência nos estabelecimentos educacionais, e a Convenção Relativa à Luta Contra a Discriminação no Campo do Ensino, da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação Nacional, que visa não só combater a discriminação no ambiente escolar, mas assegurar a diversidade nos tópicos apresentados em sala de aula. “A supressão de determinados conteúdos tem um duplo efeito: torna o espaço escolar mais hostil para pretos, gays e pobres, e também não prepara o aluno branco para coexistir com o preto. Essa diretriz precisa existir não só na gestão do conteúdo, mas na administração da escola. É isso que vamos pedir.”
Outro alvo dessa ação será o Ismart, o Instituto Social para Motivar, Apoiar e Reconhecer Talentos. Fundado em 1999 pelo empresário Marcel Telles (sócio de Jorge Paulo Lemann e Beto Sicupira na 3G Capital, controladora de empresas como a Ambev e as Americanas), o Ismart atua em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Pedro era beneficiado pelo programa havia um ano e meio. Assim que o bullying começou, a família procurou a coordenação do Ismart para relatar o ocorrido. “É evidente que o Ismart é mais do que o intermediador, porque é a empresa que dialoga com a família e o aluno bolsista. Ele ficava de 5 a 6 horas na escola por meio do programa. Nós reconhecemos quão benéfica é a iniciativa, mas isso não o isenta de responsabilidade”, ponderou. O advogado defende uma participação maior da empresa no trato com os alunos, além do financiamento de programas educacionais. A opinião é similar à dos familiares. Para eles, o Ismart, apesar do bom serviço prestado, foi negligente no caso de Pedro.
No fim de agosto, um grupo de bolsistas, ex-bolsistas e integrantes da rede Alumni Ismart divulgou um texto no qual ressalta o papel das escolas e pede uma mudança de cultura na ONG. A piauí ouviu alguns deles e a percepção é de que, embora gratos pelos benefícios trazidos pelo custeio de seus estudos, é grande o sofrimento causado pela falta de integração em instituições de elite. “Incluir um bolsista vai além de oferecer uma vaga; é integrar uma nova realidade social e econômica que desafia a homogeneidade e o conforto daqueles que sempre desfrutaram de privilégios. A desigualdade precisa ser discutida abertamente, como parte de uma estratégia para criar um ambiente seguro e acolhedor para todos os alunos”, diz o texto. “O sentimento de injustiça e humilhação que os bolsistas podem sentir não decorre de sua falta de acesso a certos privilégios socioeconômicos, mas da falta de um suporte adequado e da resistência em reconhecer e combater as estruturas que perpetuam as desigualdades. E é papel da escola não apenas encaminhar problemas a outras competências, mas iniciar o acolhimento, promover o debate de inclusão e estimular a reflexão sobre a diversidade.”
Procurados pela piauí, o Colégio Bandeirantes e o Ismart não se pronunciaram.
O segundo eixo da ação principal é um pedido indenizatório contra o Bandeirantes e as famílias dos quatro jovens descritos por Pedro no áudio derradeiro. “É uma prova incontestável. Não há dinheiro que pague, nem apague. Não é possível reparar a perda. Mas alguém tem que pagar essa conta”, diz o advogado. O valor ainda não foi calculado.
Os defensores também vão interpelar o estado de São Paulo em duas frentes. A primeira delas é uma ação por falta de fiscalização da Secretaria de Educação para coibir as diversas formas de violência no âmbito escolar. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) define no artigo 70 que “é dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente”. No artigo 73, diz que o não cumprimento das normas da prevenção é passível de responsabilização na pessoa física ou jurídica. Já a Constituição Federal afirma no artigo 208 que é dever do Estado garantir ao estudante programas suplementares de material didático escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde. Por fim, o artigo 61 da LDB institui que profissionais da escola devem estar preparados “para identificação de maus-tratos, de negligência e de violência sexual praticados contra crianças e adolescentes”.
Assim, o processo vai exigir que a Secretaria de Educação não só questione outras escolas dos ensinos público e privado sobre a promoção de instrumentos focados em coibir a violência contra os alunos dentro das instituições, mas que elas reproduzam eventuais determinações dadas ao Bandeirantes no escopo da ação judicial. “A gente espera que o colégio seja obrigado a rever suas políticas. A partir daí, a única forma de atingir todas as instituições de ensino é acionando o Estado. Isso não pode ser restrito ao Bandeirantes.”
A medida vai na contramão do que o Conselho Estadual de Educação, vinculado à Secretaria de Educação de São Paulo, tem debatido em suas reuniões. O órgão é responsável por criar normativas e políticas públicas para as escolas privadas e públicas do estado. Uma semana após a morte de Pedro, Hubert Alquéres, diretor do Bandeirantes, apresentou um documento intitulado “limites da responsabilidade das escolas nos casos que envolvem a saúde mental dos alunos”. A proposta foi endossada por Mauro de Salles Aguiar, acionista do colégio e membro do Conselho. O texto, cuja formulação deve ser retomada pelo órgão em outubro, após um adiamento de 60 dias, desenha um caminho para essa desobrigação ao propor que as instituições não devam lidar a fundo com o problema.
“Não podemos continuar atribuindo às escolas questões de saúde pública. Não tem que ter psicólogo na escola. A formação de um bom pedagogo tem uma carga de psicologia. Nas boas escolas, é raro não ter alguém com mestrado e doutorado. Isso não dá condição de diagnosticar depressão e mudança de sexo, algo altamente complexo. A escola tem de criar um ambiente de convivência positiva. Agora, daí a diagnosticar e transformar a escola numa clínica psicológica ou psiquiátrica, isso é insano”, afirmou Salles Aguiar durante a reunião do Conselho.
Aguiar deu exemplos de outros colégios particulares que também estão debruçados sobre questões de saúde mental de seus alunos. Conta ter tido informação “segura” de que no Graded School, um colégio bilíngue localizado no bairro do Morumbi com mensalidades entre 10 mil e 13 mil reais, há um estudante que se reconhece como um gato, e não um humano. E que no St. Paul’s School, instituição também bilíngue situada no Jardim Paulistano, com mensalidades entre 9 mil e 12 mil reais, há um aluno que entende ser um lobo. “Não é possível esse nível de insanidade prevalecer. Daqui a pouco, vai ter de colocar cadeira para gato, leão e assim por diante.”
Procurados pela piauí dias depois da reunião, o Graded não quis comentar o assunto. O St. Paul’s afirmou em nota que desconhece as denúncias e por questões éticas não comenta casos específicos envolvendo alunos, mas ressalta “o compromisso com o bem-estar geral dos nossos alunos, pois acreditamos que o sucesso acadêmico está intimamente ligado à saúde mental e emocional”. Disse também: “a St. Paul’s enfatiza sua dedicação em proteger e nutrir a saúde mental dos alunos. Nosso objetivo é desenvolver habilidades que promovam relacionamentos positivos, tomadas de decisão sólidas e comportamentos socialmente conscientes, os quais contribuam positivamente para a comunidade escolar. Nosso compromisso é proporcionar um ambiente de aprendizagem seguro e acolhedor, onde o bem-estar de cada aluno seja sempre uma prioridade”.
Em outro momento, Aguiar disse na reunião que o Bandeirantes tinha 110 bolsistas por meio do Ismart e que ele sempre foi um apoiador do programa. Mas que, de dois anos para cá, e mais recentemente com a morte de Pedro Henrique, descobriu um plano de redução de custos por parte do Ismart que, segundo ele, pode ter acentuado as dificuldades do jovem. Ele citou o estilo de gestão da 3G Capital. “Agora, diante da tragédia, a gente foi a fundo na questão da mentalidade 3G [em alusão à cultura de foco agressivo em resultados com baixo custo]. De expandir e dar escala ao movimento e cortar custos. O que aconteceu? Deixaram de levar em conta o que era o princípio básico deles: a família. Sem família, você não consegue fazer um bom trabalho.”
A atuação de Mauro Salles Aguiar no Conselho resultou em uma crise interna no Bandeirantes. Ele divide a gestão do colégio com Luiz Álvaro de Salles Aguiar Menezes, seu sobrinho, Helena Aguiar, que é prima de Luiz e sobrinha de Mauro, e Eduardo Tambor, que não é da família. Luiz Menezes planeja pedir o afastamento do tio da administração escolar por seu comportamento, que “não é adequado e promove antagonismos”. A informação foi revelada pela jornalista Adriana Negreiros, no UOL.
Os advogados também vão ajuizar um processo administrativo para cassar o alvará de funcionamento do Bandeirantes. “Nós sabemos que é difícil, mas precisamos pautar essa discussão. Há algo de errado aí”, afirmou Hédio Silva Jr. Sua argumentação está baseada em outros dois casos de suícidio envolvendo alunos do colégio, ambos em abril de 2018. O órgão julgador será a Secretaria de Justiça de São Paulo. “Não podemos perder de vista que a escola, ainda que privada, é prestadora de um serviço público. Não é loja de perfume. São milhares de crianças e adolescentes sob seus cuidados por boa parte da vida. É preciso ter responsabilidade. Então, nós vamos questionar se eles têm capacidade e credencial para continuar prestando esse serviço público.”
Bruno, tio de Pedro Henrique, disse à piauí que a atuação na esfera judicial busca não só reparar a morte do sobrinho, mas tem um objetivo maior. “Para além de toda dor emocional, há a busca por justiça, pelo Pedro e por seus pais. Queremos, além de criar uma jurisprudência nesse assunto, que o tema do bullying seja discutido seriamente. Não só entre os agredidos, mas entre os agressores. Essas crianças são construídas socialmente. É preciso que os pais desses jovens estejam atentos.”
Nesta quinta-feira, o colégio realizou em seu ginásio um “Manifesto pela vida”, com apresentações musicais, dentro da campanha Setembro Amarelo, de prevenção ao suicídio. “Será muito importante estarmos todos juntos, principalmente em um ano com tantos desafios na nossa comunidade”, escreveu o colégio em um post da página do Instagram @cara.colband, que convidou os alunos a vestirem branco ou amarelo.
Se você estiver passando por um momento difícil, procure o Centro de Valorização da Vida (CVV), que oferece atendimento gratuito e sigiloso por telefone (no número 188), por e-mail e por chat