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A Caminho da eternidade – e daqui a cem mil anos?

Não é preciso mencionar a gravidade do que ocorre diariamente neste país e a persistente incapacidade de resolver problemas graves que vem de longe e se eternizam, para justificar o espanto ao saber que na Finlândia há quem esteja preocupado com o que poderá ocorrer daqui a cem mil anos.

| 18 nov 2011_11h18
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Não é preciso mencionar a gravidade do que ocorre diariamente neste país e a persistente incapacidade de resolver problemas graves que vem de longe e se eternizam, para justificar o espanto ao saber que na Finlândia há quem esteja preocupado com o que poderá ocorrer daqui a cem mil anos.

É verdade que, no Brasil, a Presidência da República tem uma Secretaria de Assuntos Estratégicos, criada em 2008, cujas atribuições incluem, entre outras, formular políticas públicas de longo prazo. Ainda assim, a impressão de quem não acompanha a atuação dessa Secretaria de perto pode ser que, por mais importantes que sejam suas iniciativas – atendimento integral à primeira infância, indústria de defesa, entre outras recentes – a mídia lhes dá atenção superficial, poucos as levam à sério, e não parece haver maior interesse e mobilização da sociedade em torno dos temas com os quais ela se ocupa.

Em um país em que a capacidade de planejar não costuma ir além da esquina, a recente prorrogação da Zona Franca de Manaus por 50 anos, por exemplo, surpreende. E o atraso das obras de infraestrutura necessárias para a realização da Copa do Mundo, em 2014 fala por si. O mais distante que nossas conjecturas parecem alcançar são cinco anos, a julgar pelas Olimpíadas, previstas para ocorrerem em 2016 no Rio de Janeiro.

Enquanto isso, na Finlândia, país sobre o qual sabemos pouco, (Into Eternity, 2010) revela estar em curso a construção, iniciada em 2004, do depósito subterrâneo de lixo atômico de Onkalo, na Usina Nuclear de Olkiluoto, localizada na ilha do mesmo nome, – uma das duas usinas nucleares do país, a terceira estando prevista para começar a operar em 2013. Dirigido pelo dinamarquês Michael Madsen (não confundir com o ator homônimo), o documentário trata do debate que mobiliza políticos e cientistas finlandeses em torno da maneira correta de presevar o depósito por cem mil anos, considerando que o tempo necessário para a maior parte do combustível de uma usina nuclear deixar de ser radioativo, como no caso do Urânio-235, seria de 7 bilhões de anos.

Planejado para ser realizado em quatro fases, começando pela caverna na camada subterrânea de granito, o depósito de Olkiluoto propriamente dito, onde o lixo atômico encapsulado será armazenado, deve estar concluído por volta de 2020, com espaço suficiente para receber lixo atômico por cem anos.

Desde o início, a obra da usina nuclear enfrentou problemas que atrasaram o cronograma de construção: irregularidades nas fundações de concreto, forjas inadequadas, dupla estrutura de contenção do reator defeituosa etc. Olkiluoto teria se tornado, segundo Stephen Thomas, professor de Estudos Energéticos da Universidade de Greenwich, e co-autor de The Financial Crisis and Nuclear Power, “um exemplo de tudo que pode dar errado em termos econômicos com novos reatores”. (disponível aqui).

Ficamos sabendo, portanto, que, como no Brasil, não faltam problemas graves na Finlândia. Além do custo, do atraso e das falhas na obra da usina, o desemprego vem aumentando, havendo previsões de que o país poderá vir a enfrentar as mesmas dificuldades financeiras de Portugal. Mas ainda assim, há um debate sobre algo que poderá ou não ocorrer em um futuro longínquo – na eternidade.

A Caminho da eternidade foi exibido pela TV Cultura em janeiro deste ano no Cultura Documentários, programa que tem apresentação e curadoria internacional de Amir Labaki. Não ter tido na ocasião, até onde sei, maior repercussão assinala limites e contradições da televisão como meio preferencial de difusão para documentários. E sublinha nossa dificuldade de pensar no futuro, o que dirá na eternidade.

Nova oportunidade de ver e debater as questões levantadas por A Caminho da eternidade acontecerá no Festival Internacional do Audiovisual Ambiental, no Rio de Janeiro, na próxima segunda-feira, 21 de novembro.

O foco de Michael Madsen é a necessidade ou não de assinalar o local do depósito, advertindo para o perigo da radioatividade tóxica e cancerígena. E, caso prevaleça a posição dos que acreditam ser necessária uma sinalização de advertência, qual seria a melhor maneira de fazê-la.

 

Mas quem habitará a ilha de Onkalo daqui a cem mil anos? Que língua falará? Como mandar uma mensagem do presente que possa ser decifrada na eternidade? Uma das possibilidades consideradas é usar O grito, de Munch, para indicar o perigo.

Bem estruturado, fotografado e narrado, A Caminho da eternidade é um hábil exercício de inteligência, recorrendo sem pudor a meios convencionais – depoimentos de especialistas e narração off – para tratar de um assunto da maior relevância. Como escreveu Peter Bradshaw no The Guardian, o documentário é “de cair o queixo”.

No Brasil, o lixo atômico foi assunto de uma vídeo-carta premonitória de Fernando Gabeira, em 1986, disponível no You Tube, na qual ele levanta questões retomadas agora em A Caminho da eternidade. Gabeira conclui sua vídeo-carta dizendo que “os navegantes do futuro precisam saber que a dez quilômetros do centro da cidade de Itú [em São Paulo], para o norte, estão enterradas 2500 toneladas de uma pasta radioativa, e que segundo os cientistas essa pasta radioativa pode causar mal a um ser humano ou um animal durante muitos e muitos séculos. Quem puder, deve passar a notícia adiante com palavras, filmes, músicas, todos os símbolos que puder inventar. E os habitantes do futuro que entenderem essa mensagem devem traduzí-la no seu próprio idioma.”

A imagem final da vídeo-carta de Gabeira, porém, não é animadora e parece confirmar nossa incapacidade de pensar no futuro – o que vemos é a garrafa em que lançou ao rio sua mensagem, parecendo nunca ter sido recebida por ninguém.

A Goiânia, pelo menos, não chegou. No ano seguinte da vídeo-carta de Gabeira, ocorreu inesperado acidente nuclear, em local improvável, devido a uma sucessão de negligências e irresponsabilidades. Uma cápsula de chumbo contendo césio 137 foi primeiro removida de um aparelho de radioterapia abandonado, e depois violada por catadores de um ferro velho. Houve quatro mortes e cerca de 120 pessoas contaminadas, embora esses números divirjam dependendo da fonte.

Em 1990, Roberto Pires concluiu Césio 137-O pesadelo de Goiânia, filme sobre a tragédia com roteiro baseado em depoimentos das vítimas, ao qual se dedicou com empenho, pondo em risco a própria vida ao filmar sozinho o local do acidente, segundo depoimento de amigos.

Tratando da eternidade, o próprio Michael Madsen faz breves intervenções em A Caminho da eternidade, conduzindo a narrativa de frente para a câmera, no escuro, iluminado apenas pela luz de um fósforo. Seus comentários duram o tempo necessário para que o fósforo queime e apague. São alguns instantes – metáfora da nossa breve passagem por este planeta.

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