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A canção maneirista

O passado de glórias da música popular tornou-se algo distante e inacessível. O sentido mais amplo de continuidade se dissolveu

Paulo da Costa e Silva | 13 jun 2016_22h56
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“Quando estamos fora de uma tradição, o que é o caso de todo artista hoje, desejamos somente registrar nossos sentimentos sobre certas situações de uma forma que se aproxime tanto quanto possível de nosso próprio sistema nervoso.” Esse comentário do pintor irlandês Francis Bacon, em entrevista ao crítico David Sylvester, nos anos 1950, poderia ser aplicado ao que vem acontecendo com os artistas da canção. Sim, as portas da tradição parecem ter sido fechadas. O passado de glórias da música popular, mesmo quando presente em carne e osso (na figura imensa de nomes como Chico, Caetano, Elza, Gal etc.), tornou-se algo distante e inacessível. O sentido mais amplo de continuidade se dissolveu. O que restou foi o lugar fora da tradição, como disse Bacon. Talvez seja essa a lição mais difícil a ser aprendida por todos aqueles que hoje sonham escrever canções capazes de dialogar com a tradição da música brasileira. São artistas que estão em descompasso com o momento histórico presente, que se dedicam a uma arte com espaço cada vez mais incerto em nossa cultura.

Lorenzo Mammì é autor de algumas das melhores observações sobre o tema. Para ilustrar o momento atual da canção, o ensaísta chegou a evocar, num texto sobre Luiz Tatit, a descrição que o artista americano Robert Smithson fez a respeito da cultura contemporânea: uma rede de signos com tamanha densidade que acabou por se tornar uma casca lisa e uniforme, “sobre a qual seria possível correr livremente em todas as direções, como num deserto incontaminado”. Nas palavras de Mammì, “o cânone, que vai mais ou menos de Nazaré a Chico e Caetano, já se fechou. Pode sofrer um acréscimo aqui ou ali, mas na substância já está formado, e é um valor indiscutível e incontornável para qualquer um que não seja de todo surdo ou insensível”.

A canção teria entrado em sua fase maneirista. E o que seria exatamente isso? No ensaio de Mammì, o conceito de “maneirismo” é ilustrado pelo alto grau de consciência das canções de Tatit, em seus jogos internos e pequenos labirintos – “maneiristas adoram labirintos”. Haveria, portanto, um domínio tão completo dos procedimentos e dispositivos da linguagem da canção, do manejo de sua história e de sua rede de referências, que ela teria saído da esfera intuitiva e natural para adentrar o território da reflexividade, no qual passa a operar com plena consciência de seus próprios meios. Reduzido consideravelmente o aspecto mais primitivo e emocional, a canção expõe de modo claro sua dimensão de artifício. Ela passa a ser uma espécie de jogo mental, uma canção destinada ao lógos. Outras linguagens artísticas trilharam caminho semelhante, o que nos remete à definição que o poeta Paul Valéry cunhou para a arte moderna: “Uma forma de drama na qual a consciência assiste a si mesma em ação.” Seria o preço inevitável a ser pago por certo grau de amadurecimento.

Mas não se trata apenas disso. O termo “maneirismo” também diz respeito à hipótese, sempre ventilada, do desaparecimento da arte como atividade culturalmente determinante. Tal hipótese está presente em outros textos de Mammì, não somente sobre música, e parece lhe ter sido inspirada pelo historiador da arte Giulio Carlo Argan. A arte do maneirismo, como a pós-moderna, seria marcada pela “impossibilidade de o artista influir factualmente na cultura e na organização social em que vive e atua”, escreve ele no posfácio de uma coleção de textos de Argan. O artista é, assim, confinado a um papel lateral e decorativo.

Ao mesmo tempo, o destino da canção enquanto linguagem independe do grau de sua presença cultural – e o paralelo com as artes plásticas é novamente irresistível. A canção teria alcançado uma autonomia artística que, ainda segundo Mammì (no prefácio ao songbook de Chico Buarque), “já não depende tanto de sua inserção midiática, nem de sua referência a comportamentos ou situações imediatamente atuais, mas se apóia no prestígio e na riqueza de sua própria história”. Ou seja, a canção (de autor) se tornou um nicho cultural. O ofício do compositor de canções é comparável ao do literato ou poeta. O espaço de atuação é outro, distante dos holofotes da cultura de massa, destinado a pequenos grupos que cultuam uma forma artística exilada do mainstream – e que apesar disso segue adiante, qual um trovador de antigos tempos.

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