Nos últimos anos de sua vida, já consagrado após ter recebido o prêmio Nobel de literatura em 1954, o americano Ernest Hemingway viveu sobretudo na casa que comprara em Cuba em 1939 e que batizara de Finca Vigia. Hemingway adorava a cidade de Havana, vizinha de sua propriedade, mas a Cuba que conheceu melhor foi a dos ditadores que se sucederam até a Revolução Cubana, especialmente o último, Fulgêncio Batista, que presidiu o país de 1952 a 1959.
Hemingway teve simpatia por Fidel Castro e seus companheiros. Acreditou nas perspectivas idealistas que se abriam para o país que amava, mas não chegou a conviver com o novo regime, pois suicidou-se nos Estados Unidos em 1961, quando Cuba era dominada por Castro havia menos de dois anos. Há fotos suas com Fidel, cartas e declarações nas quais deseja “boa sorte” à Revolução Cubana, mas nada muito explicito além disso.
Com a morte de Hemingway, sua viúva Mary deixou de viver em Cuba e a casa, com a biblioteca e todos os seus pertences, foi transformada em museu. Sempre houve controvérsia a respeito da propriedade da casa. Havia sido pura e simplesmente confiscada pelo novo governo cubano, assim como ocorrera com as casas de todos os habitantes que haviam deixado o país? Ou teria a transformação da casa em museu sido desejada pelo próprio casal Hemingway?
O manuscrito recém-descoberto reproduzido nessa página traz nova luz sobre essa questão. Trata-se de um rascunho de um documento em inglês no qual Mary Hemingway, dois meses após o suicídio do marido, explicita a doação da casa ao povo de Cuba, para fazer dela um “centro ocupacional”. O original da carta em inglês foi entregue a um amigo próximo do casal americano, o fotógrafo espanhol radicado em Cuba, Roberto Herrera e traduzida para o espanhol por este:
“Considerando que meu marido, Ernest Hemingway, foi durante vinte e cinco anos um amigo do povo de Cuba. Considerando que ele nunca tomou parte da política de Cuba. Considerando que ele nunca vendeu nada que fosse de sua propriedade com exceção de seus escritos, tendo presenteado automóveis, fuzis, livros e até mesmo a medalha do prêmio Nobel, que foi doada à Virgem da Caridad del Cobre, creio portanto que seria de seu agrado que sua propriedade em Cuba, a Finca La Vigia, em São Francisco de Paula, província de Havana, fosse doada ao povo de Cuba, como um centro de educação e pesquisa para a preservação de sua memória.
Portanto, por meio desse documento e na qualidade de herdeira legal de Ernest Hemingway, cedo ao povo de Cuba essa propriedade, com a esperança de que possa ser utilizada de forma frutífera para que se aprenda mais e se adquira maiores conhecimentos, assim como ocorreu com Ernest e eu.
Escrito em Havana, no dia 25 de agosto de 1961, M. H.”.
Não é certo que uma cópia em espanhol do documento tenha sido entregue a Castro. Em todo caso, a história de que Mary teria sido constrangida a entregar a casa ganha agora novos contornos.
Autorizada a retornar brevemente para levar de volta aos Estados Unidos dois quadros valiosos e um caixote com os manuscritos de Hemingway, Mary abandonou Cuba e preferiu deixar as coisas correrem sem mais interferências de sua parte.
O documento e a transcrição em espanhol foram encontrados entre os papéis de Roberto Herrera, que teria deixado Cuba pelo Brasil e falecido décadas após seus amigos. Só foi divulgado quando apareceu num leilão no começo deste ano nos Estados Unidos, e a imprensa internacional interessou-se pelo caso. Nessa ocasião, foi adquirido por seu atual detentor."